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Na maior colaboração jornalística já feita na história, o Metrópoles e dezenas de alguns dos principais veículos de todo o mundo começam a publicar a partir deste domingo (3/10) o Pandora Papers, uma investigação que se estendeu ao longo de 2020 e 2021, a partir de milhões de documentos que revelaram os segredos financeiros de 35 atuais e ex-líderes mundiais e mais de 300 ocupantes de cargos públicos em mais de 90 países e territórios. Sob a coordenação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), cerca de 600 jornalistas em 117 países vão contar a partir de hoje histórias sobre esses políticos e um elenco global de foragidos, estelionatários e homicidas. Documentos sobre o Brasil mostram empresas em paraísos fiscais de ministros do governo Bolsonaro, grandes empresários e um punhado de investigados e réus por corrupção.
No mundo, os documentos secretos expõem as transações fora de seus países do rei da Jordânia, dos presidentes da Ucrânia, Quênia e Equador, do primeiro-ministro da República Tcheca e do ex-premiê britânico Tony Blair. Os arquivos também detalham atividades financeiras do “ministro extraoficial de propaganda” do presidente russo, Vladimir Putin, e de mais de 130 bilionários da Rússia, Índia, Estados Unidos, México e outros países.
O ICIJ obteve um lote de 11,9 milhões de arquivos confidenciais e coordenou uma equipe de jornalistas de 150 veículos de comunicação que passaram dois anos filtrando-os, localizando fontes e mergulhando em processos judiciais e outros documentos públicos de dezenas de países. Os documentos provêm de 14 empresas de todo o mundo que prestam assessoria a offshores, estabelecendo companhias e outros refúgios fiscais para clientes que frequentemente buscam manter suas atividades financeiras à sombra.
Numa era de crescente autoritarismo e desigualdade, a investigação do Pandora Papers oferece uma visão inigualável de como o dinheiro e o poder operam no século XXI – e como o Estado de direito tem sido distorcido e fraturado mundo afora por um sistema de sigilo financeiro que se tornou possível graças aos Estados Unidos e a outras nações ricas.
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Na imaginação popular, o sistema das offshores costuma ser visto como um conjunto de remotas e esparsas ilhas sombreadas por palmeiras. Mas o Pandora Papers mostra que a máquina de dinheiro das offshores opera em todos os cantos do mundo, inclusive nas capitais financeiras das mais ricas e poderosas economias.
As conclusões do ICIJ e dos seus parceiros na mídia permitem ver até que ponto o sigilo financeiro se infiltrou na política global — e por que governos e organizações globais têm avançado tão pouco no sentido de erradicar os abusos financeiros das offshores.
A investigação do Pandora Papers revela os proprietários ocultos de empresas offshore, contas bancárias anônimas, jatos particulares, iates, mansões e obras de Picasso, Banksy e outros grandes artistas.
Pelo menos US$ 11,3 trilhões são mantidos fora de seus países de origem, segundo um estudo de 2020 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), com sede em Paris. Dada a complexidade e sigilo que cercam o sistema de offshores, não é possível saber quanto desta riqueza está associada à evasão fiscal e outros crimes, e quanto foi devidamente declarado às autoridades.
Intrigas e privilégios
Pessoas associadas pelos documentos secretos a patrimônios offshore incluem a diva pop Shakira, a supermodelo Claudia Schiffer e Lell Gordo, o mafioso italiano que foi uma das inspirações do filme Gomorra.
Esse mafioso, Raffaele Amato, está vinculado a pelo menos uma dúzia de homicídios. Os documentos vazados revelam detalhes sobre uma empresa de fachada, registrada no Reino Unido, que Amato usou para comprar terrenos na Espanha, logo antes de fugir da Itália para lá e montar sua própria facção criminosa. Amato, cuja história foi uma das inspirações para o elogiado filme Gomorra, cumpre pena de 20 anos de prisão. Os advogados de Amato e Tendulkar não quiseram fazer comentários.
O de Shakira disse que a cantora declarou o seu patrimônio fora da Espanha, o que, segundo o advogado dela, acaba não representando nenhuma vantagem fiscal. Os representantes de Schiffer afirmaram que a modelo paga corretamente seus impostos no Reino Unido, onde vive.
Na maioria dos países não é ilegal ter patrimônio no exterior ou usar empresas de fachada para fazer transações internacionais. Executivos que operam fora de seus países dizem necessitar das offshores para conduzir suas operações financeiras. Mas essas operações geralmente consistem simplesmente em transferir lucros dos países onde eles são obtidos, e que cobram impostos elevados, para companhias que existem só no papel, em jurisdições com baixa tributação.
O uso de refúgios tributários é particularmente controverso no caso de figuras políticas, porque frequentemente isso é uma forma de manter a opinião pública alheia a atividades politicamente impopulares ou simplesmente corruptas.
Um grande número de ocupantes de cargos públicos e indivíduos ultrarricos – que em alguns casos são a mesma pessoa – usam o sistema de offshores para administrar, movimentar e muitas vezes ocultar suas fortunas. Eles seguem regras diferentes do resto da humanidade, num jogo de intrigas e privilégios que alimenta a criminalidade e a corrupção, permitindo que as elites políticas e econômicas do mundo se entrincheirem em seu poder.
Outros registros vazados mostram que o presidente do Equador, Guillermo Lasso, manteve contas bancárias nos bancos Morgan Stanley e JPMorgan Chase por meio de uma fundação ultrassigilosa no Panamá. Em 2017, o milionário ex-banqueiro transferiu a propriedade das suas contas bancárias a sociedades fiduciárias confidenciais que ele criou em Dakota do Sul. Ao preencher seu endereço num formulário bancário, Lasso não mencionou sua casa no Equador, e sim um prédio de escritórios de Coral Gables, na Flórida.
Procurado, Lasso disse que seguiu as leis equatorianas que proíbem candidatos e servidores públicos de terem offshores em todo o tempo e que isso foi apontado em suas declarações de renda. “Todo o uso passado de qualquer entidade internacional foi perfeitamente legal e legitimo e tal uso representa a organização legal e ordinária de atividades internacionais lícitas”, acrescentou.
Os documentos mostram também que um contabilista inglês fixado na Suíça trabalhou com advogados nas Ilhas Virgens Britânicas para ajudar o monarca da Jordânia, rei Abdullah II, a comprar secretamente 14 imóveis de luxo nos Estados Unidos e no Reino Unido, avaliados em mais de US$ 106 milhões. Os consultores o ajudaram a abrir pelo menos 36 empresas de fachada entre 1995 e 2017.
Em 2017, o rei comprou um imóvel de US$ 23 milhões com vista para uma praia de surfe da Califórnia através de uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Pagou um adicional para que outra empresa com sede nas ilhas, de propriedade do seu gestor suíço de capitais, atuasse como “diretora indicada” da companhia das IVB que adquiriu o imóvel.
No mundo das offshores, “diretores indicados” são pessoas ou empresas pagas para servirem como laranjas de quem está realmente por trás da empresa. Formulários enviados aos seus clientes pelo Alcogal, o escritório de advocacia que trabalha para o rei, dizem que o uso de diretores indicados ajuda a “preservar a privacidade por evitar que a identidade do responsável máximo (…) fique publicamente acessível”.
E-mails internos mostram que o Alcogal e o assessor da Suíça também discutiram formas de não revelar o nome do monarca às autoridades das Ilhas Virgens Britânicas. Nesses e-mails, os consultores para offshores usam um codinome para identificar o rei da Jordânia: “Você sabe quem”.
Advogados de Abdullah II no Reino Unido observam que a lei jordaniana o exime de pagar impostos e que ele tem razões de segurança e privacidade para manter seu patrimônio em empresas no exterior. Dizem ainda que o rei jamais desviou verbas públicas e acrescentam, sem dar detalhes, que a maioria das empresas e propriedades identificadas pelo ICIJ não têm conexão com o rei ou não existe mais.
Os documentos também revelam offshores do ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, tornando incoerente alguns de seus posicionamentos públicos. Em fevereiro, o Instituto Tony Blair para a Mudança Global conclamou os gestores públicos a buscarem, entre outas medidas, aumentar a tributação sobre terrenos e imóveis. Blair, fundador e presidente-executivo do instituto, falou sobre como os ricos e bem conectados já relutavam em pagar seus impostos em 1994, quando ele fez campanha para se tornar o líder do Partido Trabalhista britânico. “Para quem pode empregar os contadores certos, o sistema tributário é um refúgio para golpes, benesses… e lucros”, disse Blair durante um discurso na região inglesa de West Midlands. “Não devemos transformar nossas regras tributárias em um playground para quem burla a Receita e infratores tributários que pagam pouco ou nada, enquanto outros pagam mais do que deveriam.”
O Pandora Papers mostra que em 2017 Blair e sua mulher, Cherie, se tornaram os proprietários de um casarão vitoriano de 8,8 milhões de dólares ao adquirirem a companhia das Ilhas Virgens Britânicas que detinha aquele imóvel. O casarão londrino atualmente abriga o escritório de advocacia de Cherie Blair.
Os registros indicam que Cherie Blair e seu marido, que serviu como diplomata no Oriente Médio após deixar o cargo de primeiro-ministro em 2007, compraram a empresa imobiliária offshore da família do ministro da Indústria e Turismo do Bahrein, Zayed bin Rashid al Zayani.
Ao comprar ações da empresa, e não o imóvel em si, o casal Blair se beneficiou de uma manobra jurídica que evitou o pagamento de mais de US$ 400 mil em impostos imobiliários. O casal Blair e a família Al Zayani disseram que inicialmente não sabiam do envolvimento da outra parte na transação.
Cherie Blair declarou que seu marido não se envolveu na compra e que o objetivo dela era “trazer a empresa e o imóvel de volta ao regime tributário e regulatório do Reino Unido”. Ela também disse que “não queria ser a proprietária de uma empresa nas IVB”, mas que “o vendedor, por seus próprios motivos, só queria vender a empresa”. A companhia já foi desativada.
Por meio de seus advogados, a família Al Zayani disse que suas companhias “cumpriram as leis do Reino Unido no passado e no presente”.