Mãe de Johnatha, vítima da polícia há 10 anos: “Deboche com minha dor”
Condenação pela Justiça do Rio do PM acusado de assassinar o jovem em 2014 causa revolta e desenterra traumas da mãe de Johnatha
atualizado
Compartilhar notícia
No Brasil, 83,1% das vítimas de intervenções policiais são negros (pessoas autodeclaradas pretas ou pardas), de acordo com o dados presentes no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O caso de uma das vítimas da letalidade policial, Johnatha de Oliveira Lima, jovem assassinado em 2014 por um policial militar durante uma operação no bairro de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro, está quase completando 10 anos em meio a um processo judicial regado por questionamentos e críticas de familiares enlutados.
Em 6 de março deste ano, a Justiça do Rio decidiu condenar o PM Alessandro Marcelino de Souza por homicídio culposo — quando não há intenção de matar —, rejeitando a denúncia do Ministério Público de homicídio doloso — quando há intenção de matar. O crime ainda será julgado pelo Tribunal Militar, que também decide a pena do policial.
Johnatha tinha 19 anos quando foi morto com um tiro nas costas durante uma operação policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos. No momento do crime, ele retornava a pé para casa após levar uma travessa de pavê para a avó.
O jovem foi encaminhado à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), não resistiu aos ferimentos e morreu no local. Logo após o caso, familiares foram aconselhados a registrar um boletim de ocorrência e começaram a pressionar pelo andamento das investigações.
Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha e fundadora do grupo Mães de Manguinhos, afirma que interpretou a condenação do PM como “totalmente injusta” e um “deboche” com a dor de todos que lutam por justiça no caso.
“Para mim esse resultado da Justiça foi um deboche com a minha dor, com a dor da minha família, com a dor dos nossos vizinhos que sofreram e viram o Johnatha na minha barriga e crescer”, diz. “[Foi um deboche] para toda a sociedade de um país que se diz democrático e também para tantas outras mães que, assim como eu, tiveram seus filhos assassinados pela polícia”, completa.
À época do crime, a Polícia Militar chegou a alegar que Johnatha seria um traficante e teria entrado em confronto com policiais no dia da sua morte. Tal narrativa foi descartada logo após a divulgação dos resultados da perícia e relatos de testemunhas.
Há quase 10 anos tentando “limpar a imagem” do filho, Ana Paula faz duras críticas ao processo de criminalização de Johnatha, que, ainda segundo ela, foi taxado como criminoso devido à uma “narrativa falsa e mentirosa” responsável por trazer “tristeza, revolta e dor”.
Ela também questiona o porquê dos policiais presentes no dia do assassinato de Johnatha não terem sido indiciados pela Justiça e ainda terem recebido autorização para assumir o papel de testemunhas da defesa.
Ana Paula reforça que não aceitará o resultado de 6 de março porque, ainda conforme ela, todos os familiares e amigos não lutaram “por 10 anos para receber essa resposta da Justiça”. Ela pretende recorrer da decisão.
“Eu particularmente vou lutar até o fim porque fui condenada no dia que assassinaram o meu filho”, afirma. “Eu e minha família fomos condenados a viver o resto das nossas vidas sem o Johnatha, sem tudo o que ele representa para a gente, sem a alegria, a luz, os abraços e o sorriso dele”, desabafa.
O dia do assassinato de Johnatha pelos olhos de Ana Paula
Por volta das 16h do dia 14 de maio de 2014, uma quarta-feira
- Johnatha estava no quarto com a namorada
- “Nosso último momento foi na cozinha”. Ele entra no cômodo, abraça e dá um beijo na mãe. Johnatha brinca e pede para a mãe dar uma moral nos pratos sujos dele
- Ana Paula elogia o perfume do filho, que diz que vai deixar a namorada em casa
- Ela pede que Johnatha leve uma travessa com pavê para a avó no caminho, que também fica no mesmo bairro
- Minutos depois, Ana Paula sai de casa para ir até o mercadinho do bairro.
- Já no mercado, ela escuta sons de tiros e uma agitação ocorre nos arredores, viaturas passam e pessoas correm
- No caixa com as compras, Ana Paula recebe uma ligação da irmã dizendo que Johnatha tinha “sofrido um acidente” e combinou das duas se encontrarem na UPA
- Na saída, ela encontra a avó paterna do filho desesperada que afirma: “O Johnatha levou um tiro, a polícia atirou no Johnatha”
- Ana Paula vê duas viaturas estacionadas em frente a UPA, bem como um grupo de vizinhos, amigos e familiares dentro da unidade
- Ao entrar, o cunhado informa que Johnatha não resistiu aos ferimentos e morreu
- Os familiares registram um boletim de ocorrência logo após o crime
- Ana Paula volta para casa, na expectativa do filho entrar pela porta, sem acreditar que ele havia sido morto
“No fim, o Johnatha não voltou mais para casa. Eu tive que me despedir do meu filho no dia seguinte, 15 de maio. Eu tive que ver meu filho dentro de um caixão, coisa que nunca tinha imaginado”, desabafa a mãe.
A letalidade policial sob a ótica de cor e raça
Como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 99,5% das mortes violentas intencionais provocadas por intervenção policial ocorrem em decorrência do uso de arma de fogo.
Vale ressaltar que no recorte étnico-racial, 83,1% das vítimas de intervenções policiais são negros. Na sequência, brancos (16,6%) e amarelos (0,2%).
“Jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias seguem sendo alvo preferencial da letalidade policial e, em resposta a sua vulnerabilidade, diversos estados seguem investindo no legado de modelos de policiamento que os tornam menos seguros e capazes de acessar os direitos civis fundamentais à não-discriminação e à vida”, descreve a pesquisa do FBSP.
Para Amarílis Costa, advogada pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para a Inclusão Social, da Universidade de São Paulo (USP), e diretora executiva da Rede Liberdade, a letalidade policial e Justiça no Brasil estão estritamente relacionadas com questões de raça e cor.
Ela descreve essa problemática nacional como uma “terra de mortes” e “cemitério a céu aberto”. Segundo a pesquisadora, a violência policial “quando não mata as pessoas negras fisiologicamente, as mata no sentido simbólico”. Isso porque, ainda de acordo com ela, os filhos são tomados e as mães vivem como “verdadeiras zumbis, depressivas, doentes e morrendo”.
Desta forma, Costa destaca que é necessário assumir em um diálogo que essa “máquina de guerra” e de “anti negritude” é um braço do capitalismo. “Então acho que a gente precisa fazer um debate racial firme no debate social dentro do âmbito da segurança pública e da Justiça, que seja, de fato, enraizado nas mudanças”, defende.
Gabriel de Castro, advogado criminalista e mestre em direitos humanos, afirma que não é possível analisar como a violência policial influência o cotidiano de moradores de favelas e jovens negros sem associar essa questão com impactos da escravidão, que “continua viva e forte, infelizmente”.
Na maioria dos casos, esses locais abrigam “comunidades carentes” por não ter acesso a serviços públicos básicos, como saneamento básico, educação, saúde. Ou seja, carentes no sentido de ter acesso a poucas políticas públicas.
Ele avalia: “A única política pública voltada à essa população é a baseada na repressão policial que, obviamente, ocorre por meio do uso da violência”. Ainda de acordo com Castro, a letalidade policial trata-se de “um desenvolvimento de um processo histórico que tem a ver com as próprias raízes do nosso país”.
Na perspectiva de Edja Santiago, advogada integrante do WebVirtus e Momento Virtus do Programa Virtus, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), toda a violência que engloba alguma região impacta todos os moradores apenas com a “fama da violência”.
Ela lembra que há diversos lugares em que o único poder estatal presente é a polícia. “Então, quando falamos sobre o impacto na vida dos moradores de uma região violenta, estamos falando sobre direitos básicos que são essenciais à dignidade humana”, explica.
Para a advogada, o país não está bem em termos ligados ao respeito dos direitos humanos. “Eu diria que o agravamento da violência policial não é uma resposta válida ao combate da violência no Brasil”, diz.
“Então, essa lógica rasa, de que o agravamento da violência policial é uma resposta efetiva à violência, não consegue achar resposta positiva na realidade. Eu diria que a resposta para resolver essa problemática não é simples, não é única e tampouco rápida”, finaliza.
A Justiça
Castro observa que, em diversos julgamentos com presença de júri popular, os cidadãos ‘avalizam a violência policial” e acabam confundindo a definição de uma polícia efetiva com uma polícia dotada de alta letalidade.
Para ele, ambas as coisas não caminham juntas, isso porque “um policiamento efetivo não quer dizer que é um policiamento feito a base de alta letalidade”.
“A gente observa que a forma de socialização da sociedade brasileira é fundamentada na violência, no autoritarismo e com isso a gente olha pra alguém que foi vítima da violência policial e a primeira coisa que surge na nossa cabeça não é o questionamento da atuação do policial, mas a conduta daquele cidadão, que foi vítima de violência policial”, analisa o advogado criminalista.
Ele prossegue: pensamos se ele estava certo ou errado ao invés de sempre questionar a atuação do policial, que não pode e não deve de forma alguma ser fundamentada na questão da violência — esse deve ser o último recurso usado por um agente de segurança pública”.
Já Santiago ainda traz a consideração na Justiça de que a palavra do policial tem fé pública — termo jurídico para expressar o crédito que deve ser dado a declarações e atos de um agente estatal ou servidor público.
A advogada defende a necessidade de que “as provas desenvolvidas dentro de um processo não se reduzam apenas à palavra do policial”, sendo preciso considerar o arcabouço probatório e não apenas uma prova ou relato.
“É preciso perceber que, diante de dados tão alarmantes, situações tão grotescas e comprovadamente de violações dos direitos humanos, tem que haver um maior cuidado do Judiciário na comprovação plena dos crimes”, diz.
O desejo de uma “mãe zumbi”
Uma das grandes afetadas pela letalidade policial, a mãe de Johnatha acredita que a Justiça não funciona bem nesses casos: “A Justiça sempre falha, ela continua cega quando se trata de fazer justiça para as pessoas pobres como eu”.
Além dos policiais acusados e condenados por esses homicídios, Ana Paula afirma que “todo o sistema de justiça tem as mãos sujas com o sangue de cada filho que é tombado”.
“A justiça, na verdade, nunca vai acontecer porque ele [Johnatha] não vai voltar, nenhuma justiça vai trazer meu filho de volta. Mas o que me faz continuar nessa luta é saber que de alguma forma posso dar alguma contribuição a essa sociedade”, diz.
O objetivo da fundadora do grupo Mães de Manguinhos é dar fim à impunidade policial que alimenta e permite outros homicídios: “Me dói imaginar que muitos policiais estão por aí, cometendo crimes, porque sabem como é o agir da Justiça”.
“A polícia parar de matar é garantir a vida de outros jovens, como a do meu filho que amava a vida. É garantir também que outras mães moradoras de favela, assim como eu, possam ter o direito de conviver com seus filhos. Esse é meu maior desejo”, revela.
“Cada assassinato é uma ferida que se abre novamente. Eu sofro vendo outras mães sofrendo. Queria muito que isso tivesse parado, que meu filho tivesse sido a última vítima, mas não foi”, lamenta.
Ana Paula finaliza dizendo que essa luta por justiça não pode apenas dela. Para ela, essa obrigação deve ser de toda a sociedade porque é uma luta pela verdade, pela memória e pela justiça. “Acima de tudo é uma luta pela garantia da vida da população pobre, preta e favelada, que há tanto tempo é exterminada, excluída e invisibilizada pela sociedade”.