Livro sustenta tese de que transporte público atua “como navio negreiro”
Escritores, pesquisadores e artistas, como Gog, BNegão e MC Martina, debatem estruturação racista do transporte e propõem soluções
atualizado
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Caro, cheio, de má qualidade e restrito, o transporte público no Brasil é apontado por usuários negros que pesquisaram sobre o tema como um dos alicerces do racismo no nosso país. Por meio de uma análise das heranças da escravidão, que acabou há menos de 150 anos por aqui, e da experiência em ônibus e trens que atendem as periferias das grandes cidades, onde vivem a maioria dos negros brasileiros, poetas, cientistas sociais, músicos e escritores se uniram para produzir o livro Mobilidade Antirracista.
A publicação, que está sendo lançada pela editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, aborda o problema e propõe soluções que podem soar radicais para alguns, como o fim da cobrança de tarifa, mas que são urgentes para quem tem o direito de ir e vir, além de muitos outros, restringido por um modelo de transporte que pune os mais pobres – a maioria, negros.
Com a participação de celebridades, como os músicos BNegão, MC Martina, Gog e Lucas Koka Penteado, que contribuem com rimas e reflexões sobre o racismo e o lugar do negro na sociedade, o livro foi coordenado por três autores que aliam a militância antirracista à produção acadêmica: Daniel Santini, Paíque Santarém e Rafaela Albergaria.
Os dois últimos conversaram com o Metrópoles para explicar como o racismo influenciou desde a fundação do transporte público no Brasil e como opera para restringir a circulação de pessoas negras em certos espaços. Conforme essa tese, o sistema está voltado quase exclusivamente para atividades econômicas, tendo como lógica o maior número de transportados possível, sem dar importância para o conforto, não muito diferente dos navios negreiros que trouxeram milhões de africanos escravizados para o Brasil durante séculos.
“Quem pega o trem todo dia sabe das relações de violência, das relações de desigualdade que se experimenta quando se circula pelo território de periferia, pelo subúrbio, e quando se anda pelos territórios mais elitizados da cidade”, diz a escritora Rafaela Albergaria, que cresceu em Belford Roxo, na periferia do Rio de Janeiro, e já se dedicava a tentar entender o racismo quando perdeu uma prima atropelada por um trem, em 2017.
“Então eu comecei a construir esse pensamento; por que desumanizaram minha prima? A concessionária disse que era suicídio, depois imprudência, mas ela foi tirada de nós por uma violência que tantos vivenciam todos os dias”, analisa ela, que denuncia a presença do racismo na elaboração e na condução das políticas de transporte.
“O racismo inaugura a própria modernidade no Brasil, construída pela divisão do mundo entre aqueles que são reconhecidos como sujeitos, como cidadãos, como marcos da civilidade, e aqueles que são destituídos de humanidade por uma marca essencialmente racializada, da cor da pele, que os torna mercadoria passível de ser sequestrada nos territórios da África Negra, passível de ser transportados nos tumbeiros Atlântico adentro”, explica Rafaela.
“Então, é impossível pensar a própria história da constituição do Brasil sem entender que ela é atravessada pela mobilidade e pela imobilidade de determinados corpos”, completa a escritora carioca.
Segundo Rafaela, vivemos hoje heranças desse tempo não tão distante, em que os negros tinham sua liberdade restrita por grilhões. “Os corpos sequestrados de seu continente e transformados em mercadoria foram constituídos aqui a partir de um lugar de imobilidade, enquanto os corpos brancos foram constituídos como dominadores”, explica ela.
“Há pouco mais de 100 anos é que somos entendidos como sujeitos possuidores de alma. O projeto eugênico no Brasil ainda está em curso, essa desconstrução de humanidade ainda nos abarca. E isso chega, claro, na mobilidade”, continua Rafaela Albergari, cuja entrevista completa pode ser vista ver no vídeo abaixo.
Relações diretas do transporte com o período da escravidão
Mestre em Antropologia e escritor Paíque Duques Santarém dedica parte de suas colaborações no livro a análises históricas sobre como a lógica e o dinheiro do tráfico de pessoas escravizadas possuem continuidades na constituição do transporte brasileiro até a atualidade.
“Nas cidades, no período escravista, a rua era ocupada majoritariamente pela população negra, ao contrário do que a gente imagina. A população branca escravista ficava nas casas, restrita. Quem circulava era a população negra, escravizada ou não: vendendo coisas, fazendo trabalhos, serviços”, conta ele, lembrando depois que foram instituídas, após a abolição da escravidão em 1888, políticas públicas que segregaram os negros dos bairros mais centrais, como a demolição de cortiços e construção de assentamentos periféricos.
“Numa sociedade em que a educação, o acesso à ciência e o acesso à técnica são determinados racialmente, uma determinação bêbada de racismo constrói um conjunto de técnicas na sociedade reféns ou muito comprometidos com essa segregação racial”, continua Santarém, que seguiu o dinheiro: “As primeiras empresas de transporte no Brasil têm capital diretamente egresso do tráfico de pessoas escravizadas”.
“Quando paulatinamente vai acabando o tráfico escravista no Brasil, esse capital vai pros setores de infraestrutura urbana, de transporte de mercadorias, de transporte de cargas e, finalmente, de transporte de pessoas. Um consórcio de empresas brasileiras e inglesas formadas pelo excedente monetário do tráfico de pessoas foi o ponto de partida para o transporte de massa no Brasil”, completa Santarém.
Navio negreiro
Para Paíque Santarém, a comparação entre o transporte coletivo no Brasil e o navio negreiro, onde centenas de seres humanos viajavam espremidos, sem condições de higiene e privados da mínima dignidade humana, vai além da alegoria literária, é uma relação de continuidade.
“A estrutura do transporte escravista fundou a sociedade brasileira e também enriqueceu muitos setores. O tráfico transatlântico gerava mais receita para o Brasil do que a produção escravista. E esse dinheiro financiou o transporte no Brasil, como já falamos”, introduz o cientista social. “A forma do transporte coletivo, que é circular pessoas pelo espaço, entulhadas num veículo em que, quanto mais pessoas couberem nele, melhor, e esse veículo nas piores condições possíveis e para realizar funções de produção, essa dimensão é muito semelhante à forma como o tráfico escravista funcionava. A compreensão do transporte coletivo foi fundada no tráfico escravista”, analisa ele.
“O transporte coletivo hoje é calculado em termos de produtividade. E é mais produtivo o transporte que carrega mais passageiros. O transporte, em sua tecnologia de cálculo, é uma tecnologia que compreende o passageiro enquanto mercadoria. Me parece, e isso não é uma alegoria literária, que isso é muito parecido com o tráfico transatlântico, em que mais produtivo era o navio quanto mais pessoas escravizadas tivesse nele”, completa Santarém.
Ele admite que a ideia pode soar exagerada para algumas pessoas, e espera que o lançamento do livro lhê dê a oportunidade de debater a questão.
“O transporte de mercadoria do Brasil se desenvolveu e desenvolveu uma tecnologia própria, em torno de caminhões e de transporte pelas estradas. Quando o transporte coletivo no Brasil se transforma em transporte de massas, são essas empresas de transporte de mercadorias que assumem boa parte do transporte coletivo no Brasil. E as montadoras que faziam os caminhões são as que fornecem para as primeiras empresas de transporte coletivo o chassi de caminhão pra colocar lataria de ônibus. Então, tem uma linearidade direta do transporte escravista para o transporte de mercadorias e para o transporte de pessoas”, completa ele.
Passe livre e mais soluções
Os autores apontam para a necessidade de o transporte deixar de ser um negócio voltado ao lucro e se tornar um direito universal, como a saúde pública ofertada pelo SUS ou a educação nas escolas estatais. “Para desmontar o transporte escravista colonial, precisamos transformá-lo em direito orientado à necessidade, à vontade e ao prazer das pessoas”, defende Paíque Santarém.
“Na medida em que o transporte gera lucro, por meio das tarifas, ele gera segregação e prejudica o serviço, porque quanto mais pessoas entram no ônibus, mais lucrativo ele será. Nós temos que mudar essa lógica. O transporte tem que estar mais vazio, mais confortável e mais barato. Então, ele tem que ser pago por toda a sociedade, especialmente pela sua parcela mais rica”, resume o autor.
“Então, essa solução passa por tomarmos o leme do ‘navio negreiro’ e transformarmos ele na embarcação da nossa liberdade, na embarcação do nosso prazer, da nossa alegria, numa embarcação antirracista”, conclui Paíque Santarém.
E nós concluímos esta reportagem pegando emprestados alguns versos do poema “Passageiro do último vagão”, de Elisa Lucinda, que abre o livro Mobilidade Antirracista:
“Eu a vida toda tive medo de perder o trem.
Sempre morei longe do sonho, do dinheiro, da formação, de um tipo de arte, do descanso.
Calculei a vida pra não perder o trem.
(…)
Quem mora longe do sonho,
arrisca, tudo, todo dia,
sem tempo, espremendo no meio da madrugada,
muitos copos de gelada alegria.
E agora, nesse fim de noite me apontou pontualmente, como faço todo dia, porque a vida toda eu andei para não perder o trem agora.
Uma confusão, gritos, socorros,
gente gritando para,
outro perguntando quem?
Metade do meu corpo, se separa, e é recolhido no vão.
E eu, toda vida, lutei para não perder o trem. Perdi a vida no trem.”