Lei Maria da Penha: 13 anos de uma luta sem vencedores
De janeiro a junho deste ano, 46.510 mulheres denunciaram atos de violência pelo Disque 180 – 10,93% a mais que no mesmo período de 2018
atualizado
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“Quando ele bebia, se transformava totalmente. Chegava em casa me chamando de vagabunda e puta, dizendo que eu não prestava para nada. E nisso foram crescendo as agressões, eram cada vez piores. Fui me fechando. Ficava pensando o que estava fazendo de errado para merecer tudo aquilo. Eu trabalhava manhã, tarde e noite e sustentava a casa. Ele não fazia nada… Por que ele fazia isso?”, diz Lúcia*, 55 anos, professora aposentada da rede pública do Distrito Federal, que sofreu violência doméstica por 33 anos.
Com o objetivo de ajudar outras mulheres, Lúcia aceitou falar com o Metrópoles sobre as vezes em que “quase morreu” por causa das agressões do marido. Durante a entrevista, a voz estava tremida pela emoção e pelas lágrimas contidas.
Após ver o pai bater na mãe durante toda infância, ela assistiu ao marido colocar fogo no sofá e no guarda-roupas e quebrar o computador e a televisão. O casal tem três filhas. Lúcia contou que, apesar de todo o sofrimento vivido durante o casamento, nada se compara à época em que foi agredida durante a gravidez, que o esposo se recusava a assumir.
Por desejo de proteger a família e as filhas, Lúcia pediu para ter seu nome preservado. Ela poderia, porém, ser a Ana, a Maria ou qualquer uma das 46.510 vítimas de violência doméstica que recorreram ao Disque 180 (canal de atendimento à mulher) nos primeiros seis meses de 2019. O número é 10,93% maior que o do mesmo período do ano passado. Ao total, foram registradas 92.663 ligações ao longo de 2018.
Nesta semana, a Lei Maria da Penha (nº 11.340), que tornou mais duras as penas para a violência doméstica contra mulheres, comemorou 13 anos de existência. Criada em 2006 e nomeada em respeito à luta da farmacêutica Maria da Penha, que ficou paraplégica após levar, enquanto dormia, um tiro do marido nas costas, a legislação já foi acionada por 5.245 vítimas neste ano no Distrito Federal. Os dados são do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT). .
Em âmbito nacional, os registros de socorro mais comuns foram de ameaça (12.878), cárcere privado (3.065), moral (2.320), sexual (2.317) e tentativa de feminicídio (2.075). O Sistema Integrado de Atendimento à Mulher, o Disque 180, faz parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
A chefe da pasta, Damares Alves, avalia que, nos próximos anos, o número de assassinatos contra mulheres deve aumentar. Ela justifica a previsão com uma melhora no sistema de notificação desses casos. A vice-presidente da Comissão de Direitos da Família, Sucessões e Violência Doméstica da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Núcleo Bandeirante, Tatyanna Zanlorenci, concorda com a ministra e diz que esse processo já começou a ser aperfeiçoado: “As pessoas denunciam mais, e antes os dados não eram divulgados”, disse.
Para a advogada, outro fator que encoraja as mulheres às denúncias é seu melhor posicionamento perante a sociedade. “Também teve a quebra de paradigma da sociedade. Hoje a mulher vota, trabalha, é mãe. E o pai também participa mais em casa e cuida dos filhos”, continuou.
Na Justiça
No âmbito do Judiciário, 507.984 mulheres recorreram à Justiça em 2018. A pesquisa foi divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nessa quinta-feira (08/08/2019). Em dois anos, o número cresceu 26,4%.
Segundo a pesquisa do CNJ, uma a cada 10 mulheres são responsabilizadas pela Justiça pela violência sofrida. Lúcia contou que sua primeira experiência buscando ajuda na polícia foi “completamente frustrada”. No ato de coragem, recorreu a uma delegacia comum e os policiais foram “superficiais”, não quiseram ouvir detalhes sobre o caso.
“Tanto que o juiz não aceitou minha apelação, porque não havia provas de que eu sofria violência. Não tinha nada anexado no processo”, contou.
Com a recusa, ela levou à Delegacia da Mulher um vídeo, feito pela filha mais velha, em que o pai ameaçava a mãe de morte. Lúcia relatou que foi atendida “muito bem” e recomenda a todas mulheres que já passaram pela situação procurar uma delegacia especializada. “Me senti segura, eles me ouviram e quiseram saber o que eu tinha para dizer. Foi muito bom pra mim”, confessou.
A advogada Tatyanna Zanlorenci alertou que o sentimento de culpa não pode estar presente nas vítimas. Ela insiste que, mesmo que a delegacia desdenhe do caso, a mulher não pode perder a esperança em seus direitos. “Olha, quando atendo uma vítima, digo que nem para o divórcio a culpa é necessária. Não se pode falar em culpa quando se trata de violência em casa. Geralmente, só chama atenção na delegacia se há agressão física. Mas existem outros tipos de violência que também têm de ser levados a sério”, afirmou.
A advogada alerta: ao perceber o primeiro sinal de violência doméstica, procure ajuda. “A primeira coisa é saber que a vítima não está sozinha. Procure um amigo, um vizinho, um parente ou um advogado. Mas procure! Romper esse ciclo violento é difícil, mas ela tem que saber que estará protegida”, disse.
Outra dica da especialista é: “Não tenha medo”. Em muitos casos, o agressor ameaça tirar os filhos e os bens da vítima caso seja denunciado. “Procure um advogado para saber seus direitos, para entender que você será sempre protegida. Não tema!”
Lúcia conseguiu abrir processo contra o marido e recorreu à Lei Maria da Penha para afastar o esposo. Tomou coragem para pedir o divórcio, recusado por várias vezes pelo agressor. “Ele dizia que ia melhorar, que não faria mais aquilo. Mas até quando? Sempre me dizia a mesma coisa.”
Com muita insistência, ela conseguiu a separação legal. Continua, todavia, sustentando financeiramente o agressor, que ocasionalmente recebe visita das filhas.
Lúcia faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico desde o início das agressões. Divorciada há um ano, ainda não conseguiu abandonar os remédios, mas tem esperança de deixá-los até o fim do ano.
Entre seus grandes sonhos, está a simples vontade de tirar carteira de motorista. Durante os 33 anos casada, ela escutava do marido que “não servia para nada” e “não prestava nem para tirar uma carteira”. Agora divorciada e protegida, ela pretende, algum dia, dirigir sem medo um carro.
Congresso Nacional
Em comemoração à data, o Senado Federal aprovou, nesta semana, uma série de projetos de lei (PLs) que ampliam as previsões da Maria da Penha. Entre eles, o que determina a apreensão imediata de arma de fogo em posse do agressor e o que assegura prioridade nos processos de divórcio para a vítima de violência doméstica.
O primeiro segue para sanção presidencial. Já o segundo, por se tratar de um substitutivo ao original, deve retornar à Câmara dos Deputados.
Outra conquista das mulheres foi a aprovação, pela Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH), do PL que proíbe a nomeação de agressores para cargos públicos e impõe indenização por danos morais às vítimas.
Além disso, foram designados pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), os parlamentares que farão parte da composição da Comissão Mista de Combate à Violência Contra Mulher (CMCVCM).
A deputada Flávia Arruda (PL-DF) foi convidada a participar da comissão. Para ela, apesar dos 13 anos da legislação, devido ao grande número de casos de violência doméstica no país, ainda não há o que comemorar.
“Já foi um avanço muito grande, mas pelos números ainda não há muito o que comemorar. Ainda somos o quinto país que mais agride mulheres. Ainda não podemos comemorar nada”, comentou. “Apesar de tudo, a Maria da Penha foi um marco na nossa história e serve de inspiração a muitos países.”
A comissão mista servirá de aprimoramento às matérias que devem ser acrescentadas na lei ou postas em prática pela Justiça. “Precisamos ver o que precisa melhorar, vamos aprimorar todos os pontos da lei para deixar a legislação cada vez mais acessível”, explicou.
Atualmente, apenas 77 mulheres ocupam cargos no parlamento. No total, há 81 senadores e 513 deputados.
*Nome fictício, a pedido da personagem