Laudos falsos de comorbidades são vendidos no país de R$ 20 a R$ 250
Comerciantes agem nos grandes centros das capitais e via redes sociais. Metrópoles acompanhou compra de documento por R$ 80
atualizado
Compartilhar notícia
Brasília, Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo – Com a inclusão de pessoas que têm comorbidades no grupo prioritário da campanha de vacinação contra o novo coronavírus (Sars-Cov-2), em várias localidades do país, grupos especializados em falsificar atestados médicos proliferam nas cidades e agem às claras em redes sociais, em busca de clientes que anseiam por furar a fila da imunização. O Metrópoles acompanhou esse comércio ilegal e conseguiu flagrar vendas de laudos falsos de comorbidades a valores que variam entre R$ 20 e R$ 250.
As negociações ocorrem nos centros das grandes capitais, entre os transeuntes, ou por meio de aplicativos de conversas, nos quais técnicas são usadas para que o cliente não suma sem pagar. Com o avanço dos esquemas e a grave interferência no Plano Nacional de Imunização (PNI), conselhos regionais de medicina (CRMs), Ministério Público (MP) e polícias do país se mobilizam para investigar as denúncias de fraudes.
O Metrópoles entrou em contato com vários perfis que vendem atestados médicos no Facebook. Com um deles, conseguiu acompanhar todo o processo de compra até o recebimento do PDF de um documento falsificado. Custou R$ 80 ao comprador, e chegou personalizado – com nome, cidade e a falsa comorbidade do paciente; endereço e logo do hospital onde teria sido realizado o exame; e até o carimbo de uma médica, com registro no CRM ativo desde 2007.
Após a impressão do laudo, a assinatura deve ser forjada à caneta, pelo próprio “paciente”, segundo a orientação do vendedor. “Vc q escolhe”, disse o fornecedor, após ser questionado sobre qual comorbidade poderia se colocar no falso atestado. Em seguida, ele manda o exemplo de um documento produzido. “A clinica ou hospital vc tbm escolhe. Na hora vc so me passa os dados”, prosseguiu o homem. A grafia foi mantida conforme as mensagens trocadas entre comprador e vendedor.
A compra foi fechada. O vendedor, que em nenhum momento se identificou, informa que irá fazer o atestado do cliente após finalizar um outro. Após cerca de 40 minutos, aparece com a imagem de um laudo personalizado e pede para o cliente conferir as informações. Essa foto vem com uma marca d’água, com os dizeres “atestado falso”, para evitar com que o cliente saia sem pagar, uma vez que a negociação é feita de forma on-line.
A ideia é que o “paciente” veja se está tudo certo, se aprova o que receberá, e só então pague. Após receber a aprovação do comprador e, depois, a transferência bancária, o suspeito encaminha o documento (PDF), desta vez sem a marca d’água – ou seja, pronto para ser impresso – via WhatsApp ou e-mail.
O Metrópoles reproduz, a seguir, o atestado médico falso e a íntegra da negociação:
Atestado médico falso by Tacio Lorran Silva on Scribd
Em seguida, o vendedor chamou o Metrópoles no WhatsApp:
O dinheiro caiu na conta de José Fabio Nunes Lima. Trata-se de um morador da Vila Cordeiro, bairro nobre da zona sul de São Paulo (SP). Nasceu em Santa Terezinha, no interior de Pernambuco, e tem 32 anos. O Metrópoles confirmou a identidade dele junto à Receita Federal e ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Já a localidade do suspeito foi confirmada pelo Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que apurou que a conta de destino fica na capital paulista.
José Fabio tem um dia a dia aparentemente corrido no bairro onde atua, na Vila Cordeiro. Quando o comprador fez uma ligação ao telefone dele, na tarde da quinta-feira (27/5), quem respondeu foi uma mulher, que se identificou como “secretária Laís”. Ela é encarregada de anotar os pedidos, que parecem ser muitos. “Quer atestado, né?! Ele [José Fábio] deu uma saidinha. Quer deixar algum recado?”, indagou a suposta secretária.
Questionada sobre a volta de José Fabio, a mulher diz que ele voltaria dentro de uma hora e trabalharia “até umas 19h, 20h”. No entanto, poucos minutos após o comprador encerrar a ligação, o suspeito retornou a chamada, mas com um DDD do interior paulista. O vendedor de atestados falsos salientou que Laís fez a ponte entre as duas partes. Ele titubeia e se apresenta como “Rodrigo”, mas logo volta atrás e garante que seu nome é “José Rodrigo”.
Após acompanhar a consumação da compra, a reportagem ligou ao vendedor e questionou sobre a venda ilegal de documentos para a vacinação contra Covid-19. O homem desconversou, ficou em silêncio por alguns segundos e, finalmente, respondeu: “Não, eu não vendo, atestado, amigo”. Desligou o telefone e, em seguida, bloqueou o contato.
O advogado criminalista David Metzker, sócio da Metzker Advocacia, explica que a pessoa que compra atestado médico adulterado poderá incorrer no crime de uso de documento falso, previsto no artigo 304 do Código Penal. A pessoa que edita e produz o laudo, como fez José Fabio, poderá responder por crime de falsificação de documento particular, previsto no artigo 298, com pena de 1 a 5 anos. “Caso o documento seja verdadeiro em sua forma, mas as informações, falsas, o crime será de falsidade ideológica”, prosseguiu o especialista.
“Tenho de comorbidade e de teste rápido”
O Metrópoles participou diretamente de outras duas negociações, com outros vendedores de atestados médicos falsos para furar a fila da vacina contra a Covid-19, também expostos no Facebook, mas não consumou a compra. Um deles cobrou R$ 250. “Nosso envio é por PDF. Precisa de nome completo, cidade, e-mail e data de nascimento”, assinalou.
O vendedor afirmou que a transferência deveria ser realizada via Pix e, para garantir a confiança do cliente, encaminhou prints de 11 conversas com supostos clientes que demonstraram satisfação com o trabalho realizado. “Chegou!!! Perfeito. Muito obrigada e boa noite”, agradeceu uma mulher, em uma das imagens enviadas.
Neste caso, o homem criou um e-mail próprio para a fraude, com os dizeres “atestado” no endereço. É o mesmo utilizado como chave para o Pix, que vai parar na conta de Jefferson Vicente de Oliveira.
Na mesma rede social, o Metrópoles também ingressou em um grupo privado e entrou contato com o seu criador, que promete atestado médico com “registro no sistema e cadastro em prontuário”. Por estar, teoricamente, menos exposto, ele usa o perfil pessoal, onde compartilha outros conteúdos, para realizar a negociação. O nome que consta na página dele é Ramon Maia, que se diz morador do Rio de Janeiro e servidor do Exército Brasileiro (EB).
“Trabalho com Atestado Público do SUS com Registro no Sistema e Cadastro em Prontuário. No caso, Clínica da Família”, diz Ramon, logo depois de se apresentar. Questionado se faz o atestado de comorbidade para se vacinar, ele responde que sim e acrescenta: o do “teste rápido” também. “Caso queira fazer o pedido, vou precisar de alguns dados”, prossegue ele.
Diferentemente dos outros vendedores, porém, ele pede a foto da carteira de identidade (RG) do paciente. “[O RG] É preciso para fazer o Registro e o Cadastro no Sistema lá da Clínica da Família. Caso a Empresa precise ligar para verificar junto ao Órgão de Saúde. Entendeu?”, escreve.
Custa R$ 80. O Pix cai na conta de Antônia Manuela Leite da Silva. Segundo Ramon, ela é a “menina da clínica que faz o procedimento”. “Ela que faz o procedimento. Eu faço as indicações e as entregas via e-mail”, detalhou à reportagem, que não se identificou.
O Metrópoles apurou que Antônia também mora no Rio de Janeiro, segundo informações do Portal da Transparência do governo federal, e, inclusive, é beneficiária do programa Bolsa Família. Além disso, recebeu, em 2020, ao menos cinco parcelas do auxílio emergencial, criado para financiar famílias de baixa renda durante a grave crise econômica causada pela pandemia do novo coronavírus.
Desconto por “mais clientes”
Em Goiás, não foi difícil achar quem providenciasse um laudo médico ilegal para furar a fila da vacina contra a Covid-19. Durante busca rápida pela internet, a reportagem encontrou um site com várias orientações para o cliente que deseja comprar o laudo adulterado, incluindo informações sobre a legislação trabalhista e o que verificar ao receber um atestado médico.
“Em primeiro lugar, é fundamental avaliar se o documento é legítimo, de acordo com as especificações legais. Para isso, o responsável deve conferir se todas as informações obrigatórias, que listamos acima neste texto, estão presentes. Os principais dados também devem ser conferidos, como o número do CRM do médico”, diz um dos textos.
No endereço eletrônico, um link leva o cliente diretamente a uma conta comercial no WhatsApp, com prefixo 62, de Goiás. O Metrópoles entrou em contato e foi rapidamente respondido por uma pessoa que faz a intermediação dos laudos. Muito atenciosa e sem nenhum tipo de dificuldade, a vendedora confirma que também é possível comprar um atestado médico de comorbidade para comprovar a prioridade na vacinação contra Covid-19.
O valor individual de cada atestado é R$ 200, mas, caso um grupo maior de pessoas se interesse, o preço pode cair para R$ 180. Segundo o intermediador, o “laudo é detalhado assinado e carimbado com CRM ativo”.
De forma ágil e sem entraves, o pagamento pode ser feito por Pix, com prazo de 1h30 para o envio da cópia do documento por e-mail. Ainda na conversa, a atendente questionou à reportagem qual cidade deveria ser indicada no laudo. Quando informada de que o suposto paciente seria de Goiânia, a pessoa afirmou ao Metrópoles que ainda não havia recebido o formulário específico da capital, mas que conseguiria para Aparecida de Goiânia, na região metropolitana. No mesmo instante, o formulário-padrão foi encaminhado. Veja:
O comércio de falsos atestados médicos também ocorre livremente na região da Praça da Sé, em São Paulo. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, a oferta acontece na frente de policiais militares. O kit completo sai por R$ 220, e inclui o atestado com a suposta doença e receituário de medicamento usado. Nessa situação, o vendedor, que se apresentou como Rogério, afirmou que o atestado vem com o nome completo do suposto paciente, número da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), além da assinatura e carimbo de uma médica registro no Conselho Regional de Medicina “quente”. A reportagem, porém, não finalizou a compra.
Procurado, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) informou que aguarda as providências policiais para se apurar os fatos. “Trata-se normalmente de falsificação grosseira, mas que exige investigação. A polícia já está apurando os fatos e remeterá ao MPSP suas conclusões. Estamos acompanhando e conversando com a Polícia Judiciária sobre essa apuração”, assinalou.
Clínicas especializadas
Sobre a fraude envolvendo falsos atestados de comorbidades produzidos por médico, o diretor da Coordenação de Repressão às Fraudes (Corf) da Polícia Civil do DF (PCDF), delegado Wislei Salomão explicou sobre as incidências penais envolvendo as fraudes. “Se o médico emite um atestado falso, ele responde por crime de falsidade de atestado médico, que tem pena de 1 mês a 1 ano de prisão. Claro, se o caso, de fato, envolver um médico”, detalhou.
Se o golpe envolver atestado falsificado produzido por médico de órgão público, como hospital ou posto de saúde, a pena é mais alta: de 2 a 6 anos de reclusão. “Se a falsificação for de um atestado de um médico particular, a pena é de 1 a 5 anos. É preciso destacar que, se alguém, no momento da vacinação, apresentar falso laudo de comorbidade, pode ser preso em flagrante pelo crime de uso de documento falso. A pena é de reclusão de 1 a 6 anos”, finalizou.
O secretário de Saúde do Distrito Federal, Osnei Okumoto, disse que ainda não recebeu denúncias sobre atestados que não condizem com a verdade sobre a comorbidade das pessoas que se apresentam para vacinar. De acordo com o gestor distrital, quando isso ocorrer, será encaminhado para investigação policial e para apuração do Ministério Público do DF.
No Rio de Janeiro, duas pessoas foram presas na quinta-feira (27/5), em Pilares, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), acusadas de vender atestados médicos falsos para que golpistas furem a fila de vacinação contra a Covid-19. As prisões foram realizadas pela Delegacia de Defraudações (DDEF), na clínica onde trabalhavam. Os suspeitos foram identificados como o Sérgio Mendes Izidoro, que é médico, e Augusto Guedes de Carvalho Filho, apontado como dono da clínica. Cada atestado falso era vendido por R$ 20.