STF julgará limites da liberdade religiosa em ações de adventistas que “guardam o sábado”
Homem aprovado em concurso em 2007, que tenta assumir o cargo, e professora acusada de faltas em série processam a União
atualizado
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O servidor público Geismario Silva dos Santos, 43 anos, dedicou muito tempo e esforço à preparação para o concurso de técnico judiciário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Depois de muitas noites de sono perdidas, ele finalmente conseguiu a aprovação, em 1º lugar. Mal sabia ele, contudo, que esse era apenas o início de uma jornada incansável – e longuíssima – na Justiça em busca da nomeação. Isso tudo por causa de sua crença religiosa.
A história guarda simetria com a de Margarete da Silva Mateus Furquim, 56, que foi exonerada de uma escola pública municipal por conta de 90 faltas registradas, sempre às sextas-feiras à noite. Ela se recusava a lecionar nesse período por causa da religião que segue. Os dois impasses serão discutidos pelos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), na próxima quinta-feira (29/10).
A Corte vai decidir se o Estado deve oferecer alternativa a quem, por causa de sua fé, como adventistas e judeus, não pode exercer atividades aos sábados. Como os casos são de repercussão geral reconhecida, o entendimento a ser firmado pelo STF deve seguir de parâmetro para as instâncias inferiores.
Mudança de data
A saga de Geismario começou em 2007, quando, após ter sido aprovado na prova teórica, ele precisou realizar um segundo exame, dessa vez, prático. Em uma escolha aleatória, os organizadores do certame designaram duas turmas para as provas de aptidão física: uma faria no sábado, em Rio Branco (AC), e a outra no domingo, em Manaus (AM). O servidor, que é adventista, caiu no primeiro grupo – e o problema começou.
Devido à crença religiosa seguida por Geismario, de que o sábado deve ser guardado para atividades ligadas à Bíblia, ele resolveu pedir para fazer a prova no domingo. “Encaminhei um e-mail, já que a mudança não iria ferir nenhum tipo de isonomia. Como [o pedido] foi negado e a justificativa era de que contrariava um ato do tribunal, vi que não teria jeito de ficar lutando. Então, ingressei com um mandado de segurança na Justiça”, contou.
O servidor conseguiu uma liminar para fazer a prova e, mais uma vez, foi bem classificado e manteve o 1º lugar no concurso. No entanto, outro impasse surgiu quando a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com recurso. Após tramitar em instâncias inferiores, o caso foi parar no Supremo e – se nenhuma nova surpresa surgir – será julgado depois de 13 longos anos de espera.
“Acúmulo de perdas”
Ao Metrópoles, Geismario conta que abdicou de prazeres com a família e privilégios em busca da nomeação. “Eu acumulo muitas perdas. Eu poderia estar concursado há 13 anos. Minha ideia era crescer. Eu não entendo que não haja um severo prejuízo. Tanto de vista material quanto moral. Eu vejo o Estado como sendo autor de um dano moral severo contra um cidadão”, diz.
Somente no Supremo, o caso tramita há 10 anos, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, e já foi incluído e retirado de pauta inúmeras vezes. “Esse dano se agiganta porque a cada dia eu alimentava essa esperança. De dois em dois dias eu abria a página do STF pra ter certeza de que o processo estaria lá na pauta”, lamenta o servidor.
“Me iludi durante esses treze anos”
Geismario dos Santos, servidor
“Mártir da crença religiosa”
O caso da adventista Margarete da Silva Mateus Furquim, que também será analisado pela Suprema Corte, guarda semelhanças com o de Geismario. A professora foi exonerada após deixar de ministrar 90 aulas às sextas-feiras, depois do pôr do sol, devido à crença religiosa. Ela afirma que no edital do concurso da rede municipal de ensino em São Bernardo do Campo (SP) não constava o horário de trabalho e, por isso, ela decidiu fazê-lo.
Apesar disso, na hora de começar suas atividades, depois de nomeada, veio a surpresa: teria de lecionar todas as noites, inclusive às sextas. A professora, então, tentou dialogar com os superiores sobre compensar as aulas, mas acabou sendo exonerada.
Ao comentar o caso semelhante, Geismario afirmou que espera que outros religiosos, que estão na mesma situação, sejam beneficiados.
“Uma das razões que alimentou essa espera é o fato de poder contar que esse processo vai criar um parâmetro para outros sabatistas. Isso sempre me manteve de cabeça em pé. Se não servir para mim, que sirva para outros, como um tipo de mártir da crença religiosa.”
Enem
A partir de 2017, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que era aplicado em apenas um fim de semana (sábado e domingo), passou a ser realizado em dois domingos. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a mudança foi feita após sabatistas solicitarem atendimento diferenciado para a realização das provas.
Levantamento feito pelo Inep mostra que o número de religiosos que solicitaram datas diferenciadas para a aplicação do exame subiu desde 2009, quando foram feitos 17 mil pedidos. Sete anos depois, em 2016, ano anterior à mudança, as solicitações chegaram a 76 mil.
Uma das justificativas do ministro da Educação na época, Mendonça Filho, para efetuar a mudança do Enem para dois domingos, foi a economia financeira. Segundo o órgão, cada candidato sabatista custava para o governo R$ 16,39 a mais do que os demais participantes, por conta das despesas extras de ter de aplicar o exame no período noturno.
“Embora a decisão não tenha sido tomada no âmbito legislativo (o que daria força de lei para a mudança) uma situação muito angustiante e desconfortável que perdurava por 19 anos foi resolvida e representa uma grande conquista para a liberdade religiosa”, disse Helio Carnassale, diretor de Assuntos Públicos e Liberdade Religiosa da Divisão Sul-Americana da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
A advogada e especialista em direitos fundamentais Maria Cláudia Bucchianeri, que defende Gesmario, afirmou que a mudança no Enem derrubou alegações de que o Estado não daria conta de custear a realização de provas em datas diferentes devido à crença religiosa.
“Foi um gasto irrisório. Não houve risco para a integridade do exame e nem de longe a experiência pode ser dita como vantagem”, avaliou a advogada. Ela conta que os estudantes sabatistas chegavam para fazer o exame ao meio dia e saíam perto da meia noite, enquanto os outros alunos já estavam repousando.
“Isso é importante porque revela a centralidade da guarda aos sábados. Quando você percebe o esforço, você tem o mínimo de empatia e compreensão que é algo central da existência dessas pessoas”, disse Maria Cláudia.
Esperança
Geismario afirmou que tem esperança de que seja feito o julgamento e que o STF module a decisão e vincule imediatamente a nomeação dele. “Eu entendo que o Estado tem que fazer uma reparação mínima depois de 13 anos de espera. Que seja a reintegração da Margarete”, falou.
“O meu coração guarda expectativas, tanto em relação ao julgamento do mérito, para que sirva de parâmetro, para que promovam e supram essa lacuna que existe no Judiciário, como para todos os jovens, judeus e sabatistas que precisam disputar em igualdade com outras pessoas”
Geismario dos Santos, servidor
A advogada Maria Cláudia, que defende Geismario, diz que “hoje o Brasil está muito mais pronto para debater esse ponto do que quando os questionamentos surgiram”. “A grande maioria dos concursos já prevê provas apenas nos domingos. Não há litigiosidade”, argumentou.
“A gente tem que retirar a sobrecarga excessiva que recai sobre aqueles que seguem essas religiões minoritárias. Quando você fala em liberdade religiosa, é você permitir que os aderentes de todas as crenças fiquem em pé de igualdade”, finalizou.