Peculato é o crime mais comum em ações do STF enviadas à 1ª instância
Fraudes em licitações e corrupção passiva também são recorrentes nesses processos. Lista inclui ainda delitos como lesão corporal e tortura
atualizado
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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de restringir o foro privilegiado de deputados federais, senadores e ministros de Estado delegou a instâncias inferiores o dever de apurar uma grande variedade de crimes supostamente cometidos por autoridades.
Desde o dia 3 de maio – quando o foro foi restrito – até a última semana, pelo menos 169 inquéritos, ações penais e pedidos de investigação foram enviados pela mais alta Corte à Justiça comum. Os processos apuram 56 tipos de crimes, e o delito que mais aparece é o peculato. A lista, no entanto, inclui ainda ilícitos como tortura, ameaça e lesão corporal.
O levantamento foi feito pelo Metrópoles com base em dados fornecidos pelo acervo processual do Supremo. Não existe uma relação oficial sobre a quantidade de ações remetidas à primeira instância após a restrição do foro, então o número é aproximado. Segundo o novo entendimento, só devem permanecer no STF os processos que tratam de crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo.
De acordo com a pesquisa, pelo menos 96 autoridades – 95 parlamentares e um ministro – tiveram ações enviadas à primeira instância até a última semana. Desse total, 22 (22,7%) são investigados por peculato, crime que mais aparece na lista e consiste na utilização de cargo público para o desvio de bens. Os membros do Legislativo são filiados a 11 partidos. As siglas com maiores números de casos são PSDB (3), PT (3) e PP (3).
Entre os investigados por peculato, estão o deputado federal e pré-candidato ao Governo do Distrito Federal (GDF) Izalci Lucas (PSDB). Em inquérito que foi remetido ao Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), o congressista é acusado de se apropriar de doações feitas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Receita Federal ao GDF. O político brasiliense nega todas as denúncias e, à época do envio da ação à primeira instância, afirmou: “Agora, a coisa deve ser mais rápida. Estou doido para resolver isso e mostrar a verdade”.Na lista, também aparece o líder do governo no Congresso Nacional, deputado federal André Moura (PSC-SE). O parlamentar é investigado por crimes supostamente ocorridos enquanto ele era deputado estadual em Sergipe. De acordo com a acusação, Moura participou de um esquema de fraudes em licitações na Assembleia Legislativa do estado. O político refuta as imputações.
Crimes de licitação e eleitorais
Os crimes envolvendo processos licitatórios, inclusive, aparecem em segundo lugar no rol de delitos mais recorrentes nas ações remetidas à primeira instância. Das 96 autoridades atingidas, 17 são investigadas por fraude nessa modalidade. Já 16 são acusados de envolvimento no delito de dispensa de licitação.
Na maioria dos casos, esses crimes ocorreram antes dos mandatos atuais, quando os acusados ocupavam cargos eletivos ou na administração pública local. Por isso, não cumpriram os requisitos necessários ao julgamento pelo STF e foram encaminhados à primeira instância.
Dezessete congressistas são alvo de apuração pelo crime de corrupção passiva: 14 deputados federais e três senadores. Existem ainda, pelo menos, 13 casos de parlamentares investigados por cinco tipos de ilícitos eleitorais. O mais comum é a falsidade ideológica, ou seja, a adulteração ou ocultação de documentos apresentados durante a prestação de contas de campanha. Só em virtude desse delito, 11 membros do Legislativo estão na mira de diligências.
Outros cinco são alvo de apuração por compra de voto. Um deles é o deputado federal pelo Distrito Federal Rogério Rosso (PSD). O parlamentar é acusado de ter participado de esquema para beneficiar a então candidata a deputada distrital Liliane Roriz. Ele nega e afirma que “sempre agiu de acordo com a legislação”. Já o senador Ivo Cassol (PP-RO) é réu em ação penal, acusado de ter negociado votos e coagido testemunhas para que negassem o delito. Cassol também refuta as imputações.
Ameaça, lesão corporal e tortura
Apesar de serem maioria, os crimes eleitorais e contra a administração pública não são os únicos de que tratam os processos contra autoridades enviados pelo STF à primeira instância. Na verdade, a lista inclui ainda ameaça, lesão corporal, assédio sexual, injúria, calúnia, justiça com as próprias mãos e até tortura.
Pelo menos quatro deputados federais são acusados de ameaça: Lúcio Vieira Lima (MDB-BA), Ronaldo Lessa (PDT-AL), Wladimir Costa (SD-PA), e Jozi Araújo (Podemos-AP). O primeiro é acusado de ameaçar o ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero. Ele nega. No mês passado, a Polícia Federal afirmou que as descrições do ex-ministro foram “genéricas” e nenhum fato específico foi comunicado.
Já Wladimir Costa é acusado de ameaçar uma mulher e seu filho. Segundo a imputação, o parlamentar teria ligado para Terezinha Ribeiro Nascimento e dito ao filho dela, Adelson Ribeiro de Assunção: “Olha, veado, vou te avisar uma coisa: fiz e faço, e vou meter bala na casa dela”. Em defesa, Costa nega as acusações, afirma que a denúncia é insustentável e não existem provas a respeito de o crime ter ocorrido.
O caso mais grave de ameaça, no entanto, envolve a deputada Jozi Araújo. Segundo o Ministério Público, ela pegou dinheiro emprestado com um empresário e, ao ser cobrada, teria ameaçado e agredido o homem. O responsável pela denúncia afirma que, após as intimidações da parlamentar, acredita ter sido sequestrado a mando dela.
Por volta das 19h, três pessoas encapuzadas chegaram na porta da sua casa, colocaram uma arma em sua cabeça, o conduziram até uma construção ao lado de sua casa, e o torturaram; que bateram no declarante, que arrancaram uma unha do declarante com um alicate, e que diziam que queriam os cheques […] os três indivíduos encapuzados falaram que se ‘você ficar falando muito, da próxima vez vamos amputar sua mão’
Relato de homem que afirma ter sido ameaçado pela deputada Jozi Araújo
Ao Metrópoles, a deputada Jozi Araújo afirmou, por meio de nota, que “tais fatos não condizem com a realidade” e “o laudo do IML feito pela suposta vítima afirma de forma categórica que não se pode aferir que os ferimentos encontrados são resultantes de prática de crime de lesão grave ou tortura”. Ainda conforme a parlamentar, ela já se manifestou junto ao Supremo Tribunal Federal quando intimada “e tem certeza de que a justiça será feita e será constatada a sua inocência”.
Além da parlamentar – que, no total, teve três inquéritos declinados pelo STF –, também foram enviadas à primeira instância duas investigações por lesão corporal contra o deputado federal Roberto Góes (PDT-AP). Na primeira, ele é acusado de dar um soco em um homem no dia do segundo turno das eleições de 2014. Já na segunda, ele supostamente agrediu uma pessoa e chegou a causar a queda de dente da vítima. Em defesa, alegou acreditar que o indivíduo cometeria um roubo contra seu pai.
Tortura
No grupo dos crimes violentos, existem ainda duas investigações por acusação de tortura contra o deputado federal Delegado Éder Mauro (PSD-PA). Os dois episódios teriam ocorrido enquanto ele atuava na Polícia Civil do Pará. Em um inquérito, o parlamentar é acusado, junto com outros três policiais, de torturar dois homens que teriam negado saber o paradeiro de um procurado, em 2008. Segundo as vítimas, o grupo os teria “colocado de joelhos, algemado com as mãos para trás, asfixiado com sacos de lixo e espancado até desmaiarem”. Mauro nega.
Já em outra ação penal, o deputado é acusado de tortura e falsidade ideológica. Em 2013, antes de Éder Mauro assumir mandato na Câmara, a Justiça do Pará o inocentou das acusações. O Ministério Público do estado, então, recorreu da decisão. Como, à ocasião, o delegado já atuava como parlamentar, o caso foi enviado ao STF. Agora, com a restrição do foro, volta ao tribunal de origem.
Ranking
O levantamento permite ainda descobrir quais foram os parlamentares mais afetados pela restrição do foro privilegiado. O grande “campeão” é o deputado federal licenciado Roberto Góes (PDT-AP). Entre o dia 3 de maio e a última semana, o Supremo declinou da competência para analisar 10 processos contra Góes: quatro inquéritos e seis ações penais. Além da lesão corporal, ele é acusado de crimes como peculato, corrupção passiva, desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e crime ambiental, entre outros.
Em seguida, aparece o deputado Zeca do PT (PT-MS), com oito processos – duas ações penais e seis inquéritos. Sete feitos tratam de um escândalo de desvios em contratos de propaganda que ficou conhecido como Farra da Publicidade, ocorrido enquanto o parlamentar era governador do Mato Grosso do Sul, entre 1999 e 2006. Pelo esquema, Zeca do PT é acusado de crimes como peculato e falsidade ideológica.
Em terceiro lugar no número de ações enviadas à primeira instância, empatam dois parlamentares: os deputados federais Valdir Rossoni (PSDB-PR) e Zeca Cavalcanti (PTB-PE). Cada um teve pelo menos cinco ações remetidas à Justiça comum. O primeiro é investigado por crimes como prevaricação e lavagem de dinheiro, e o segundo, por desvio de recursos públicos e fraude em licitação.
Outros quatro parlamentares aparecem em quarto lugar no ranking, sendo que cada um teve quatro inquéritos retirados do Supremo. O grupo é formado pelos deputados federais Andres Sanchez (PT-SP), Ezequiel Fonseca (PP-MT) e Wladimir Costa (SD-PA), e pelo senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE). Dez autoridades tiveram três ações enviadas à primeira instância, 12 tiveram duas e 67 tiveram uma. Outras quatro ações tramitam em segredo de Justiça e não permitem o conhecimento do nome dos investigados.
Outro lado
Questionado pelo Metrópoles, o gabinete do deputado Andres Sanchez afirmou que, das quatro ações remetidas pelo STF, três tratam de questões fiscais ocorridas enquanto ele era presidente do time de futebol Corinthians. Segundo o parlamentar, a equipe está quitando a dívida que tem. O quarto processo seria relacionado a uma empresa da qual Sanchez era sócio, mas com a qual já não possui ligação alguma.
Por meio de sua assessoria, Wladimir Costa afirmou que “sobre as ações remetidas à Justiça comum, o deputado Wladimir Costa se resguarda [o direito] a fazer sua defesa técnica nos autos. O parlamentar ainda declarou sua confiança na independência e na competência dos órgãos do Poder Judiciário, independentemente da instância”.
Já o senador Fernando Bezerra Coelho disse, também por meio de assessores: “A defesa de Fernando Bezerra Coelho, representada pelo advogado André Luiz Callegari, reforça que as investigações são baseadas em ilações e que o senador continua, como sempre esteve, à disposição das autoridades para comprovar a verdade dos fatos, prestando todos os esclarecimentos e informações que lhe forem solicitados, independentemente da instância judicial. Callegari destaca, ainda, que, em 35 anos de vida pública de Fernando Bezerra, não existe qualquer decisão judicial definitiva em desfavor do parlamentar”.
O Metrópoles não conseguiu contato com o deputado licenciado Roberto Góes. As assessorias de Zeca do PT e Valdir Rossoni não haviam se posicionado até a última atualização desta matéria. A reportagem não recebeu retorno dos parlamentares Zeca Cavalcanti e Ezequiel Fonseca.