Militares doentes questionam Exército por direito a aposentadoria
Praças e oficiais com enfermidades previstas em lei são dispensados sem benefícios após laudos oficiais negarem invalidez
atualizado
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O militar Hecliton Dourado, 30 anos, recebeu a notícia de sua dispensa do Exército, em abril de 2015, quando sacou no banco um valor menor do que o seu salário usual. “Achei estranho e fui no setor de pagamentos. Me avisaram que eu tinha tido baixa”, lembra. A desincorporação veio um ano após o cabo receber o diagnóstico de espondilite anquilosante – inflamação crônica na coluna e articulações que provoca dificuldade de locomoção e pode levar à paralisia.
“A doutora me deu o resultado dos exames e já me mostrou uma mesa de medicamentos. Tudo que ela falava batia com o que eu sentia. Eram dores horríveis, inchaço nas mãos e nos pés”, lembra o ex-militar. O diagnóstico, obtido no Hospital Militar de Área de Brasília (Hmab), não foi suficiente, contudo, para garantir a reforma do militar. Na inspeção de saúde realiza pelo Exército, Hecliton foi enquadrado com “dores articulares” e dispensado do serviço.
Hecliton faz parte do grupo de centenas de militares que questionam o Exército na Justiça pelo direito à reforma por doença grave. A medida está prevista no Estatuto dos Militares, legislação editada em 1980 que regula a situação de membros das Forças Armadas. Em seu artigo 106, o dispositivo prevê a passagem à inatividade do militar que “for julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas”.
Para ter acesso à reforma, espécie de aposentadoria dos militares em que o oficial permanece na inatividade recebendo um soldo mensal, a incapacidade precisa ser comprovada por meio de inspeção realizada por uma Junta Superior de Saúde. Nela, os exames são feitos por médicos integrantes dos quadros das Forças Armadas.Segundo a legislação, a incapacidade definitiva pode ser motivada por ferimento ou enfermidade contraídos em missões; acidentes de serviço ou doenças graves capituladas em lei, como tuberculose ativa, esclerose múltipla, mal de Parkinson, cegueira, entre outras.
Vítima de uma endocardite aguda em 2014, o ex-militar Lucas Marques Lobo, 27, teve o diagnóstico de “cardiopatia grave”, uma das doenças capituladas em lei para invalidez, questionado por uma médica do Exército. A infecção no coração, contraída durante o período de serviço militar, resultou em desgaste na válvula mitral, reparado após cirurgia.
A intervenção cirúrgica, em junho de 2014, foi seguida de sucessivos períodos de licença. Nas inspeções de saúde, realizadas regularmente por quem é afastado do serviço militar, Lucas viu seu estado de saúde piorar. Recebeu nota B1 de incapacidade temporária, seguida por uma B2. No último exame, foi classificado como C: incapaz definitivamente para o serviço militar, mas não inválido.
Com o relatório, o então terceiro sargento recebeu recomendação de ser desincorporado, ou seja, desligado do Exército sem direito a compensação financeira ou carta de apresentação.
O diagnóstico, dado por uma médica militar registrada no Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) como ginecologista, divergia do laudo da equipe de cardiologistas que o acompanhava. Para os médicos, Lucas deveria ser enquadrado como portador de cardiopatia grave, com necessidade de uso contínuo de anticoagulante. O militar recebeu a sua dispensa do Exército, força que ele integrava desde os 18 anos, em dezembro de 2017.
Depois que eu fiz a cirurgia, nunca mais fui quem era antes. Eu era um atleta e, hoje, se eu subir uma escada ou falar muito, chego cansado. Tinha planos de trabalhar na área de segurança quando deixasse o Exército, mas quem vai querer contratar alguém com doença grave no coração?
Lucas Marques Lobo, ex-militar
O direito à assistência médica e vinculação às Forças Armadas a militares temporários, aqueles que ingressaram por meio do alistamento obrigatório, em situação de incapacidade total ou parcial é alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal. Em 2016, o braço do órgão no Distrito Federal questionou a União sobre desligamentos irregulares de integrantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha.
Segundo o MPF-DF, “a expulsão de agentes temporários incapacitados se multiplica na realidade do serviço militar temporário, dando causa a inúmeras decisões que rebatem a medida”. Na ação, o órgão afirma que informações recentes obtidas pela Justiça Federal comprovam que a desincorporação de militares temporários é “corrente”.
O Ministério Público recomenda, entre outras medidas, a proibição de licenciamento ou aplicação de qualquer outra medida não remunerada de exclusão do militar temporário nas situações em que existe causa incapacitante, decorrente ou não de acidentes de trabalho. A ação, no entanto, ainda aguarda o julgamento do mérito na 21ª Vara do Distrito Federal.
“Quando o Exército desincorpora, é como uma demissão sem direito a nada. Eles perdem o salário, o tempo de serviço acumulado, que é a compensação pecuniária, e o vínculo com o FUSEx [Fundo de Saúde do Exército]”, explica o especialista em direito previdenciário militar e vice-presidente da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), Gregory Brito.
Preconceito
O caminho até a reintegração e a reforma, no entanto, é árduo. Diagnosticado com hanseníase com sequelas graves em 2012, o ex-militar Bruno de Sousa, 27, recebeu a desincorporação do Exército em 2014, mesmo após a própria corporação ter aberto um ato administrativo para a reforma do cabo. No mesmo ano, Bruno entrou na Justiça Federal com um pedido de reintegração.
O laudo utilizado pelo Exército para justificar o desligamento do militar contradizia perícias antigas realizadas pela própria corporação. Um dos documentos, emitido em 2013, afirmava que Bruno havia sido considerado curado da doença em setembro de 2012. Um parecer da Junta Médica de dezembro de 2012, no entanto, mantinha o diagnóstico de hanseníase.
“Eu estava esperando a reforma. Mal cheguei a receber o salário do mês completo e entrei direto no desemprego. Hoje, eu vivo com ajuda da minha família. A vida que tinha construído não existe mais”, afirmou o ex-militar. Doença prevista em lei para o procedimento da reforma, a hanseníase de Bruno o deixou com sequelas permanentes, como a atrofia em dedos das duas mãos e a perda de sensibilidade no pé esquerdo, além do estigma do preconceito.
Quando as pessoas veem as minhas mãos e as minhas cicatrizes, elas já não me veem mais. Você sente o preconceito quando as pessoas não te olham mais no olho.
Bruno de Sousa, ex-militar
Após perícia realizada no ano passado, Bruno já recebeu decisões favoráveis na Justiça Federal e espera agora a sua reintegração aos quadros das Forças Armadas. “A gente fica aguardando uma solução para ter uma vida mais digna, não passar necessidade. Esse era um direito que eles não poderiam ter me tirado”, afirma.
O que diz o Exército
O Metrópoles enviou questionamentos ao Exército Brasileiro sobre os procedimentos adotados para a desincorporação de militares temporários classificados como incapazes e sobre o número de desligados e reformados em 2017.
Por meio de nota, a corporação respondeu apenas que 240 militares temporários foram reformados no ano passado. Desses, 63 por motivos de doença grave capitulada em lei.