Justiça amarrada. Milhares de habeas corpus travam STF e STJ
Tribunais superiores acumulam mais de 38 mil ações do tipo em tramitação. Medida possui críticos e defensores ferrenhos
atualizado
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Lula, Antonio Palocci e Paulo Maluf. Além de fazerem parte de um grupo de políticos envolvidos em escândalos de corrupção, os três possuem mais um ponto em comum: tiveram pedidos de habeas corpus analisados pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nas últimas semanas e reacenderam debates sobre a competência das Cortes superiores para julgar HCs.
O tema é alvo de polêmica e divide ministros do Supremo. Parte afirma que o crescimento no número desses pedidos é uma das razões para a lentidão e o abarrotamento de processos nos dois tribunais. Já outra corrente defende a manutenção do modelo para manter a ordem social. Enquanto isso, cresce o número de HCs em tramitação no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Atualmente, essas ações passam de 38 mil.
No Supremo Tribunal Federal, até a última sexta-feira (27/2), tramitavam 5.233 HCs e recursos em habeas corpus, ou seja, 11,8% do total de 44.058 ações que correm na Corte. Até recentemente, faziam parte do número os pedidos apresentados pelas defesas dos três políticos citados no início da reportagem.
Todos tiveram os processos julgados pelo plenário em três semanas consecutivas, entre março e abril, e ocuparam completamente seis sessões da Corte. Como o remédio jurídico tem prioridade na tramitação — por tratar do direito imediato de ir e vir, a lei prevê que ele seja julgado antes de ações menos urgentes —, os pedidos dos políticos passaram na frente de outras ações que aguardavam apreciação há mais tempo.
Para acomodar os HCs, foram retiradas de pauta ações que tratavam de temas como a definição de limites da Amazônia, questões de previdência, regras para criação de partidos políticos, entre outras.
Discussão no STF
Lula queria evitar a execução da pena após segunda instância, Palocci pedia para ser libertado, após um ano e meio preso preventivamente, e Paulo Maluf tinha intenção de cumprir prisão domiciliar. Entre os três, apenas Maluf foi beneficiado, e por um habeas corpus de ofício concedido pelo ministro Edson Fachin. Foi no julgamento do HC de Antonio Palocci — negado por 7 votos a 4 —, no entanto, que a discussão sobre o tema voltou à tona e provocou alfinetadas entre membros do Supremo. Ao proferir voto, o ministro Luís Roberto Barroso fez uma crítica ao sistema atual e pressionou por mudanças.
“No Brasil, por uma lógica equivocada e totalmente disfuncional, que descaracteriza o habeas corpus, nós julgamos de 2010 a 2017 mais de 42 mil habeas corpus. Se contar isso em algum lugar do exterior, é embaraçoso. As pessoas acham que a gente se enganou quando diz esse número”, afirmou Barroso, ao citar os exemplos de Canadá, Alemanha e Estados Unidos, nos quais as Supremas Cortes costumam analisar menos de 10 pedidos de habeas corpus por ano.
O ministro disse ainda que o sistema de HCs no Brasil “está completamente desarrumado”, e sugeriu a criação de novos pressupostos para a aceitação desses instrumentos no STF, como casos em que a decisão questionada contrarie jurisprudência da Corte, desrespeite alguma norma constitucional, ou em casos de decisões claramente teratológicas, ou seja, que possuam erros fundamentais.
As declarações não foram bem recebidas pelos ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, que rebateram. Toffoli disse que tais ações são “de uma importância ímpar em um país desigual como o nosso”, e alfinetou o discurso de Barroso: “Em outros países, onde não há tanta desigualdade, talvez não [sejam tão importantes]. Mas aqui, sim”.
Lewandowski disse que a ampla aceitação de HCs no STF foi reafirmada em plenário e que “os números veiculados por alguns ministros a mim não impressionam”. Gilmar Mendes, por sua vez, afirmou que caso esses pedidos fossem restritos, “seria mais sincero propor a declaração de inconstitucionalidade do habeas corpus”. “O que se quer é criar um estado policial?”, indagou.
No julgamento dos HCs dos três políticos, Barroso fez parte da maioria que votou contra os pedidos. Toffoli, Lewandowski e Gilmar foram favoráveis.
Especialistas
Para o professor de direito constitucional do UniCeub Rodrigo Pereira de Mello, o grande volume desse tipo de recurso trava a pauta do Supremo. “Não há analista da situação jurídico-processual do STF que discorde da afirmativa de que o perfil atual dos habeas corpus prejudica, e muito, a pauta do tribunal. Obviamente, a Corte não deveria lidar com esse número na forma como lida”, afirma.
Segundo o especialista, com o julgamento dessas garantias ocorrendo principalmente nas Turmas do STF, essas ações passaram a “perturbar menos”. “Mas quando eles ainda eram apreciados no plenário, inviabilizavam pautas importantes por semanas. Por mais importante que seja a questão da liberdade individual, esses pedidos atrasam a análise de processos com repercussão para muito mais gente”, explica.
Rodrigo Mello afirma ainda que o sistema atual só se mantém pelo desejo de determinados ministros do STF. Para o professor, os contrários à mudança o são ou “pelo poder envolvido quando sem tem autoridades como pacientes do habeas corpus ou porque vários ministros veem nos HCs a oportunidade de efetivamente afirmar uma posição sua ou do Supremo de maneira mais ágil”.
Pensa diferente o professor de direito penal da Universidade Católica de Brasília (UCB) Manoel Aguimon Pereira Rocha. Para o especialista, é um equívoco considerar a medida como espécie de tranca para o julgamento de outros processos. “Nós temos o habeas corpus como garantia constitucional para quando alguém se considerar vítima de constrangimento ilegal. Se um tribunal de justiça pratica um ato que eu considero irregular, só me resta o habeas corpus aos tribunais superiores”, afirma.
“Não consigo visualizar a utilização do habeas corpus como uma via de empecilho ao processo em julgamento perante as cortes superiores. Me parece que falta é uma jurisprudência mais sedimentada, tanto no STJ quanto no STF, para que certas condutas entendidas como violadoras de garantias constitucionais não sejam cometidas pelos tribunais. Assim, a análise desses HCs poderia acontecer de forma muito mais rápida”, finaliza.