Juiz relativiza cultura machista ao inocentar marroquino que ameaçou “beber sangue” de ex
Na decisão, Paulo Ernane Moreira Barros absolveu o empresário e declarou que ele apenas agiu levando em consideração os costumes do seu país
atualizado
Compartilhar notícia
O juiz federal Paulo Ernane Moreira Barros, da 5ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Goiás (SJGO), absolveu o empresário marroquino Ismail Sbai, acusado de ameaçar de morte a ex-esposa, uma brasileira de 36 anos, e as próprias filhas. Na decisão, o magistrado diz que a mulher deveria ter pesquisado sobre os costumes do Marrocos antes de se casar e de ter filhos com o estrangeiro.
De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), o empresário teria dito à vítima que iria “beber o sangue dela” e chegou a jurar por Deus que mataria a mulher. O juiz, no entanto, apontou “abalo emocional” do acusado e relativizou as ameaças em razão da cultura machista do Marrocos.
O Metrópoles teve acesso à denúncia apresentada pelo Ministério Público e à sentença de Moreira Barros, assinada no último dia 2 de setembro.
Na denúncia, a denunciante diz que as discussões começaram quando ela decidiu se divorciar e voltou para o Brasil com as filhas, no fim de 2019. No dia 26 de dezembro daquele ano, o empresário ligou para a mulher e pediu para ela fazer um “strip-tease“, mas a brasileira recusou.
“Você não é nada. Você é uma merda. Quem você pensa que é? Você é minha propriedade. Você tem de fazer o que eu mandar. Quem é você que veio de um país de merda, querer pedir divórcio de mim?”, teria dito o marroquino, por ligação, após ter o pedido negado.
“Toma seu café devagar, porque é o último que você vai tomar. Se você voltar com suas filhas, volte sabendo que eu vou te educar como se educa mulher de um árabe. Até meus inimigos fazem o que eu mando. Depois que eu te educar, vou beber o seu sangue da hora que acordar até a noite”
Sbai em ligação para a ex-mulher
Dois dias depois, de forma mais enfática, o empresário teria deixado claro que tinha a intenção matá-la. “Juro por Deus que vou te matar. Não existe ninguém que me humilhe diante do meu povo.”
O documento mostra também o depoimento de Sbai, que nega ter feito as ameaças. O marroquino afirma que não foi educado para “fazer mal às pessoas” e garante que não tocaria na mulher, nem nas filhas.
“Mulher que se propõe a casar tem que pesquisar costumes do país do marido”
Na decisão em que absolveu o empresário marroquino, o juiz alegou que a mulher brasileira que se propõe a casar com estrangeiro precisa procurar saber mais sobre os costumes do país de origem do marido.
“Sem a intenção de deslegitimar grandes conquistas femininas, não há dúvida de que a mulher brasileira que se propõe ao casamento com estrangeiro deve, no mínimo, procurar saber quais são os usos e costumes naquele país. Se pretende com ele ter filhos, mais ainda”, diz trecho da sentença.
Para Moreira Barros, também é “inegável” que o término do relacionamento “abalou o emocional” do ex-marido, porque se trata de um estrangeiro, de país árabe, “cujos usos e costumes são peculiares”.
O juiz ainda citou pesquisa realizada no Marrocos pela ONU Mulheres, a qual revelou que 69% dos homens decidem quando e se as esposas podem sair de casa, sendo que 91% querem saber o tempo todo onde a parceira está. A sondagem apontada pelo magistrado mostra também que 38% dos homens e 20% das mulheres disseram que a esposa “às vezes deve apanhar”.
“Portanto, para os marroquinos, o controle sobre o cônjuge do sexo feminino é perfeitamente normal”, escreveu Moreira Barros.
O magistrado ainda afirma que é preciso ser demonstrada a intimidação à vítima para que a denúncia seja levada em consideração, o que, para ele, não ocorreu.
“A frase ‘toma seu café devagar, porque é o último que você vai tomar’, não me parece ameaçadora, uma vez que a vítima se encontrava no Brasil e ele no Marrocos. Portanto, não é crível que ele conseguisse praticar algum mal à vítima”, diz trecho da decisão, em que o juiz desqualifica, frase por frase, as supostas ameaças do empresário marroquino à brasileira.
Em nota, a assistência de acusação da vítima, representada pelo advogado Iure de Castro, do escritório Castro e Alarcão Advogados, afirmou respeitar a decisão judicial, mas ressaltou ter entrado com um recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e que buscará a modificação da sentença judicial.
“É importante, a cada dia, lutar por uma sociedade sem violência doméstica, ainda que praticada em território estrangeiro contra as nossas cidadãs”, afirmou Iure.
O Metrópoles entrou em contato com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), questionando sobre o teor da sentença do magistrado. O órgão, no entanto, disse que “não se manifesta a respeito de processos em tramitação nos tribunais”.