Especialistas explicam o termo “estupro culposo” usado no caso Mari Ferrer
Após o julgamento que inocentou o empresário André Aranha, acusado de estupro, a expressão – que não existe na lei – repercutiu na internet
atualizado
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O caso da influencer Mariana Ferrer, de 23 anos, que alega ter sido estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha, em 2018, tomou conta das redes sociais na última terça-feira (3/11). De acordo com a defesa e o Ministério Público, o acusado não sabia que a vítima estava incapaz de consentir a relação. O argumento acabou gerando o termo “estupro culposo”, duramente criticado nos últimos dias, mas que não consta na sentença que inocentou Aranha. Especialistas ouvidos pelo Metrópoles explicam a situação.
Segundo a advogada criminalista Ana Carolina Bettini, sócia do escritório Guimarães Parente Advogados, ao fundamentar a decisão, o juiz esclareceu que o crime de estupro, do qual o empresário foi acusado e absolvido, não admite a forma culposa, ou seja, sem intenção, mas ressaltou a necessidade de se comprovar que a vítima estava em estado de incapacidade para oferecer resistência.
“Aparentando a vítima ter plena capacidade de oferecer resistência, ou seja, uma mulher adulta que não estava visivelmente embriagada ou ainda sob efeito de outras drogas, nem tampouco possuía enfermidade mental que reduzisse sua capacidade, não há como atribuir dolo e, se não há dolo, não há crime de estupro de vulnerável”, explica a especialista.
Dolo significa a intenção de fazer alguma coisa. A culpa acontece quando não há intenção e se faz mesmo assim. Isto é, entendeu-se que não houve dolo e, sem o dolo, não há crime de estupro. Segundo a especialista, esse argumento pode ter gerado o termo “estupro culposo” – que não existe na lei –, usado pelo site The Intercept ao divulgar o caso de Mari Ferrer, que culminou em repercussões negativas nas redes sociais.
Falta de provas
Ainda segundo a advogada Ana Carolina, o juiz decidiu pela absolvição com base na falta de provas da ausência de discernimento de Mariana Ferrer, que seria um elemento essencial para caraterização do crime de estupro de vulnerável. Esse foi o argumento usado pela defesa de Aranha e acolhido pela Justiça.
“De acordo com as provas mencionadas pelo juiz na sentença, houve prática de ato sexual, mas não há como estabelecer que Mariana estivesse sob efeito de drogas, pois o exame toxicológico não constatou a presença de qualquer substância, bem como as testemunhas afirmaram categoricamente que ela, apesar de ter ingerido bebida alcoólica, não aparentava embriaguez”, falou a especialista.
O advogado criminalista Andrew Fernandes Farias, sócio proprietário da Bayma & Fernandes Advogados Associados, também avalia que o único argumento usado pelo juiz para absolver o empresário foi a falta de provas.
“A galhardia e a urbanidade devem ser observadas nos atos processuais, contudo, em algumas situações, diante da dialética própria do ambiente forense, a defesa da causa convida a posturas mais enérgicas dos operadores do direito”, falou o criminalista.
Consequências
Após a repercussão do caso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu analisar um pedido de investigação contra o juiz. Isso porque, durante audiência de instrução e julgamento do processo, o magistrado não interveio quando o advogado do acusado afirmou que a jovem tem como “ganha pão” a “desgraça dos outros”, nem quando foram mostradas fotos da influencer, sem qualquer relação com o fato apurado.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Catarina e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) solicitaram esclarecimentos ao advogado e ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre a conduta do juiz durante o interrogatório.
De acordo com o advogado criminalista Thiago Turbay, sócio do Boaventura Turbay Advogados, em tese, a conduta do advogado poderia tipificar os delitos relacionados à honra, especialmente injúria e difamação. Contudo, há em relação ao exercício da advocacia uma imunidade, ou seja, ele não pode ser punido em razão da posição que ocupa como defensor.
“Há um limite que precisa ser estabelecido. Praticar crimes, estando ele no exercício profissional não lhe dá uma imunidade contra esses delitos. Essa matéria precisa ser discutida. Mas, no caso do advogado, pode haver alguma sanção disciplinar, que seria aplicada pela OAB”, explicou.
O criminalista também afirma que a omissão do promotor e do juiz poderiam, do mesmo modo, configurar uma conduta que não é admitida pelo código disciplinar. “Eu entendo que há um dever de proteção dos atores jurisdicionais contra a violência. No caso da Maria da Penha, há uma recomendação óbvia para se proteger a vítima de ataques, tanto do agressor ou de qualquer sujeito processual, em caso de violação. O Estado tem o dever de proteger a vítima e não o de gerar uma nova violência”, finalizou.
Entenda a revolta sobre a audiência
As imagens da audiência, divulgadas pelo site The Intercept, mostram o momento em que o advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, mostra várias fotos de Mariana e as define como “ginecológicas”.
Gastão também disse que “jamais teria uma filha do nível” de Mariana. Bastante incomodada, a influencer respondeu dizendo que está de roupa nas fotos e que elas “não têm nada demais”. A jovem ainda argumentou: “A pessoa que é virgem, ela não é freira não, doutor. A gente está no ano 2020”.
Ele continuou atacando Mariana. “Só aparece essa sua carinha chorando. Só falta uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lágrima de crocodilo.”
Após essas falas, um dos membros do Tribunal de Justiça percebeu que Mariana chorava muito ao ouvir as palavras e perguntou se ela queria sair um pouco para se recompor.
Apesar de estar claramente emocionada, Mari respondeu as alegações. “Eu gostaria de respeito, doutor. Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que eu estou sendo tratada gente, pelo amor de Deus. Eu sou uma pessoa ilibada. Nunca cometi crime contra ninguém.”
Após a divulgação do vídeo da audiência, houve uma revolta muito grande nas redes sociais com o desfecho do caso e com a conduta do advogado de defesa. A #justicapormariferrer entrou no trending topics do Twitter.
Estou muita indignada e revoltada. A violência contra a Mari Ferrer é uma violência contra todas as mulheres, e a postura do advogado é brutal e antiética. Ninguém tem o direito de julgar moralmente, ameaçar e debochar de uma vítima de estupro. Muito menos um advogado.
— Luciana Boiteux 50180 (@luboiteux) November 3, 2020
O crime segue sendo ser pobre e preto, pq se você for rico você pode até ser inocentado de um estupro alegando um ESTUPRO CULPOSO, no qual não tem intenção de estuprar, sendo que isso nem existe, logo ele não paga por crime algum
Mais um dia horroroso pra ser mulher https://t.co/OvxBxek6Pz
— Dora Figueiredo (@dorafigueiredo) November 3, 2020
Uma em cada três mulheres já sofreu violência física ou sexual
Você conhece VÁRIAS minas que já foram estupradas, vai na minha
E aí depois perguntam porque não denunciamos, não vamos atrás
A gente vai ficar revivendo tudo, passar nervoso e depois dar no que deu Mari Ferrer?
— Barbara Gutierrez (@bahgutierrez) November 3, 2020
tá me dando nos nervos todo mundo falando o nome da vítima, mas ninguém falando o nome do estuprador (André de Camargo Aranha), do promotor que alegou estupro culposo (Thiago Carriço), do advogado que humilhou a vítima (Cláudio Gastão da Rosa Filho) e do juiz (Rudson Marcos).
— fleur. (@dzriaelin) November 3, 2020