Após denúncias, CNJ analisa uso de constelações familiares na Justiça
Técnica aplicada em varas de Família coloca vítima em frente ao agressor. Mulheres denunciam revitimização, e resistência ao método cresce
atualizado
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Com medo de perder a guarda da filha, que tem necessidades especiais, a administradora hospitalar Bianca Rodrigues*, de 56 anos, aguentou as agressões do marido por anos. Em 2017, quando finalmente decidiu se divorciar, começaram os processos na Justiça. Além do desgaste jurídico, a mãe alega ter sofrido humilhações por parte da juíza responsável pelo caso. O desrespeito teria acontecido por Bianca ter deixado de participar da constelação familiar, uma técnica usada pela magistrada para tentar pacificar a relação do ex-casal.
Segundo a administradora, em uma das agressões mais graves sofridas, o então marido, que é médico, a espancou até quebrar a mandíbula e três dentes dela. Ele teria ficado bravo após um pedido para abaixar o volume do som. “Ele pedia desculpas. Me dava joias e vestidos. Até hoje eu não consigo ver joias que lembro de tudo”, contou.
A terapia da constelação familiar foi criada nos anos 1970 e chegou ao Brasil em 1999. Popularizou-se e passou a ser usada pela Justiça desde 2012, em varas de Família, para casos como divórcio, decisões de guarda de filhos e violência doméstica. A prática, na qual é feita uma dramatização do problema na tentativa de resolvê-lo, é autorizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No entanto, após denúncias de mulheres, o órgão resolveu reavaliar a questão.
Apesar de, em tese, parecer uma boa ideia, relatos sugerem que o método pode acabar sendo mais prejudicial do que positivo. Ao serem submetidas às reuniões, muitas mulheres que sofreram abusos psicológicos e físicos pelos companheiros acabam tendo de encontrá-los pessoalmente para tentar “sanar conflitos”. De acordo com Bianca, isso é “humilhante”, é como “reviver um trauma”. Há uma corrente forte de questionamentos sobre a prática, na qual o principal argumento contra o mecanismo é, justamente, o elemento de possível revitimização.
A administradora hospitalar conta que, em quatro anos, trocou de advogado cinco vezes. Um deles foi questionado sobre o interesse de participar da constelação familiar e, sabendo que ela não queria se encontrar com o ex-marido, recusou sem questioná-la. Ao chegar a uma audiência na Vara Cível de Família e de Órfãos e Sucessões do Núcleo Bandeirante, as humilhações por parte da juíza Magáli Dellape Gomes teriam começado.
“Ela começou a falar: ‘Muito bonito, a senhora, no dia da constelação, estava passeando no shopping? O pai [da filha] estava aqui, passou a tarde toda aqui. A senhora é muito interessada na sua filha, né? Acha que passear no shopping é mais importante que a sua filha?’ E eu fiquei paralisada, sem saber o que falar”, conta Bianca.
“Mulheres são obrigadas a perdoar o agressor”
A participação na constelação familiar não é obrigatória, mas opcional. No entanto, a advogada especialista em direito da mulher e sócia da Dias, Lima e Cruz Advocacia, Mariana Nery, que é contra o dispositivo, afirma que muitas mulheres estão sendo obrigadas, indiretamente, a fazer parte da terapia. De acordo com ela, as varas de Família “estão atrasadas com relação à violência doméstica”.
“As varas de Família estão muito atrasadas com qualquer tipo de recorte de gênero de violência doméstica. Elas agem como se estivéssemos falando de uma sociedade muito igualitária. Mas esquecem das questões de violência. Eles falam que a terapia é uma sugestão, mas, se elas não aceitam, é como se não tivessem tentado resolver o problema”, diz.
Segundo a advogada, o processo é doloroso e “não deveria ser usado” pela Justiça. Ela diz que as clientes contam que precisam perdoar os agressores, o que ela pondera ser “desumano”, caso isso não parta de um desejo profundo das vítimas. “Eles revivem os problemas, para depois poder perdoar. Há o perdão como algo obrigatório. Dentro das varas de Família, vemos que quem não consegue perdoar sai como errado. É como se não existisse violência doméstica”, lamenta Mariana.
Resolução de conflitos
Se por um lado há pessoas descontentes com a prática instalada na Justiça familiar, de outro existe quem diga que a constelação familiar realmente é um sinônimo de resolução de conflitos e agradece por ter tido a oportunidade de participar do dispositivo. É o caso de *Laura Brito, de 46 anos, que conseguiu que o ex-marido assinasse o divórcio após a constelação familiar.
Segundo ela, o então marido não queria a separação, mas resolveu se abrir para a possibilidade do divórcio de forma mais harmônica e consensual após a sessão com a consteladora. “Ocorreu de forma amigável, diferente do que imaginei”, contou. Os dois não têm filhos e, por isso, não houve maiores atritos.
Laura relatou que, no fim da prática, sentiu-se à vontade para agradecer ao ex-marido. “Consegui agradecer a ele pela relação que tivemos e expliquei que a partir de agora cada um seguiria o seu caminho, mas agora com uma relação tranquila, sem ódio”, falou.
“Mudança e amadurecimento”
A advogada Kellen de Medeiros, especialista em direito de família e sucessões, defende a prática das constelações familiares pela Justiça. De acordo com ela, o dispositivo oferece uma “oportunidade de mudança e amadurecimento” no âmbito familiar.
Segundo Kellen, a descoberta do que ocasiona o problema, por meio da terapia, possibilita que as partes possam, a partir da consciência, “modificarem suas vidas, observando todo o sistema familiar, identificando as questões, os emaranhamentos, promovendo a reordenação, a compaixão e a humanização”.
A advogada ainda diz que o interesse dos filhos deve prevalecer. “A partir desse olhar mais amplo, as partes também passam a ter mais consciência do quanto o conflito entre o casal está trazendo sofrimento para os filhos, que, muitas vezes, se veem impelidos a escolher entre o pai ou a mãe”, afirma.
Regulamentação
O Metrópoles procurou o CNJ, questionando se algo será feito em razão das denúncias sobre a constelação familiar. De acordo com o órgão, um pedido de providências, ajuizado pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas, pede a regulamentação da constelação no Judiciário e está em tramitação.
“Por conta de o assunto estar sendo debatido e em breve deliberado pelo Plenário, o Conselho Nacional de Justiça não vai se manifestar no momento sobre o tema”, diz a nota.
Outro lado
O Metrópoles também entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) perguntando se a suposta postura agressiva da juíza será apurada pelo órgão e se ela gostaria de se posicionar sobre o caso. No entanto, o tribunal disse que nem ela nem o tribunal vão se manifestar.
“Informo que o TJDFT não se manifestará sobre os fatos alegados porque qualquer denúncia/reclamação em desfavor de magistrado deve ser encaminhada via PJeCor – com regular identificação do reclamante, descrição dos fatos e do processo a que se refere, para a devida análise”, diz a nota.
* Nomes fictícios para preservar a identidade das personagens