Jovem é preso injustamente após ser “acusado” por vítima intubada
Polícia fez “entrevista” com jovem atropelada que estava intubada na UTI, o que levou à prisão do marido dela por quase cinco meses
atualizado
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Um lojista de 21 anos passou quase cinco meses preso depois de ser acusado injustamente de tentativa de feminicídio. O erro aconteceu porque a Polícia Civil “entrevistou” a vítima intubada no hospital e interpretou seus sinais como sendo uma confirmação da culpa do jovem preso.
A situação inusitada aconteceu em Goiânia (GO) e só foi solucionada após audiência de instrução, quando a vítima, uma dona de casa de 19 anos, agora recuperada e consciente, explicou o mal-entendido e disse que nem se lembrava da entrevista policial enquanto estava intubada.
“Já vi na televisão uma pessoa sendo presa injustamente, mas nunca imaginei que uma coisa dessa poderia acontecer comigo”, relatou o lojista ao Metrópoles. Ele é marido da vítima, com quem tem um filho de um ano de idade. O casal pediu para ter a identidade preservada.
Em março deste ano, os dois brigaram e se separaram, por conta de um caso extraconjugal do lojista, descoberto por causa de fotos no celular. Ele chegou a ser expulso de casa pela companheira no calor do momento.
Acontece que, em uma das brigas do casal que aconteceram nos dias seguintes à separação, a jovem de 19 anos saiu de casa correndo sozinha. Ela foi atropelada na Perimetral Norte, uma via expressa muito movimentada da capital goiana. Era a tarde de 12 de março deste ano, um domingo.
Culpado não identificado
A dona de casa ficou muito machucada, com vários traumatismos pelo corpo. Ela foi resgatada por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel (Samu) e levada para o Hospital de Urgências da Região Noroeste (Hugol).
O marido dela se tornou suspeito porque o casal estava brigando muito e o lojista tentou procurar a esposa usando uma motocicleta emprestada do irmão dela, por volta do mesmo horário em que ela foi atropelada. Para a polícia, o lojista teria usado a moto do irmão da vítima para atropelá-la.
No entanto, a ficha do Samu já descrevia que o caso era de “vítima de atropelamento por carro” e que “a vítima se jogou na frente do carro”, segundo uma mulher que acionou o socorro. O verdadeiro culpado pelo atropelamento não foi identificado.
Depoimento intubada
Responsável pela investigação, a delegada Azuen Albarello decidiu ver a situação da vítima na UTI e, ao chegar ao local, ficou sabendo que ela estava começando a sair do estado de sedação.
A policial civil, então, decidiu entrevistar a jovem, que não conseguia falar por causa do tubo endotraqueal em sua boca e não estava com a consciência completamente recuperada.
O relatório policial elaborado pela delegada contém as perguntas feitas para a paciente intubada e sua reação.
A delegada perguntou, por exemplo, se a vítima estava “com muito medo” do suspeito. “Imediatamente com lágrimas nos olhos, afirmou com a cabeça positivamente”, descreveu a policial no documento.
Em outro momento, a jovem intubada desesperadamente teria acenado com a cabeça, teve os sinais vitais alterados nos maquinários médicos e tentou sair da maca, segundo o relatório.
“A vítima tentava falar algo à autoridade policial, mas a voz não saía por causa dos tubos de ventilação mecânica e traqueostomia, então ela mexia com a mão direita, como quem quisesse escrever em uma folha de papel, mas seria muito forçoso”, escreveu em trecho do relatório.
Tortura na prisão
O lojista foi preso no dia 16 de março e só conseguiu o alvará de soltura em 10 de agosto, depois de já ter sido denunciado pelo Ministério Público de Goiás (MPGO) e constar como réu no processo. Em setembro ele foi inocentado e o caso, arquivado.
“A rotina na prisão é a pior que qualquer pessoa pode viver em qualquer lugar. Comida azeda, opressão. Acho que não tem como superar. Passar por um lugar daquele me deixou arranhado, deixou uma cicatriz grande”, desabafou o lojista, que tenta retomar a vida ao normal ao lado da esposa e do filho.
Inicialmente, até o irmão da jovem atropelada foi preso, considerado comparsa da tentativa de feminicídio, porque a moto que (para a polícia) teria sido usada no atropelamento era dele. Uma perícia realizada na motocicleta depois das prisões chegou à conclusão de que não era possível afirmar que existe relação entre arranhões encontrados na lataria com o atropelamento.
“Para ouvir o depoimento era necessário que a pessoa estivesse lúcida e não voltando de uma sedação. Foi invasivo com a vítima do atropelamento e ao mesmo tempo contra a Lei, porque a pessoa precisa estar em plenas funções para dar depoimento”, defendeu o advogado do lojista, Maurício Monteiro, que atuou no caso ao lado da advogada Caroline Uchoa. Os advogados pretendem entrar com uma ação com pedido por indenização.
Além do depoimento da vítima, familiares dela foram ouvidos na audiência de instrução e relataram que a jovem dona de casa “possuía histórico médico psiquiátrico, portadora de transtornos mentais que a deixavam agitada, agressiva e depressiva” e que ela “já externara desejo de suicídio”. Eles também não acreditavam na culpa do companheiro da vítima.
Procurada pelo Metrópoles, a Polícia Civil informou que “os elementos informativos são produzidos pelas autoridades policiais que presidem os inquéritos, consonantes com as exigências do caso específico e a legislação brasileira”.