Itamaraty atuou na repressão a brasileiros no Chile, diz Roberto Simon
Autor de livro sobre golpe chileno, o pesquisador derruba mito de que o Brasil não teria tido papel relevante no golpe contra Allende
atualizado
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São Paulo – Até o início da década de 1970, o Chile era um dos principais destinos dos exilados da ditadura brasileira. Nomes importantes da política brasileira formaram uma comunidade sólida em Santiago, como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, César Maia (pai de Rodrigo Maia, deputado nascido no Chile).
A partir de 1973, com o golpe contra o então presidente Salvador Allende, o cenário muda completamente.
A história “oficial” já mostrava que a ditadura brasileira tinha atuado contra Allende, com temor de que o Chile se tornasse o principal foco comunista na América Latina.
O que não se sabia era o peso dessa participação. Após mais de sete anos de pesquisa com base em centenas de documentos oficiais e entrevistas com personagens relevantes da época, o jornalista Roberto Simon conseguiu traçar melhor no livro O Brasil Contra a Democracia.
Na obra, ele mostra que, diferente do que se falava, o Brasil teve um papel relevante no golpe e o Itamaraty atuou institucionalmente contra Allende e em favor da ditadura chilena, comanda por Augusto Pinochet.
O livro editado pela Companhia das Letras traz relatos sobre como o Brasil atuou na repressão chilena. Em entrevista ao Metrópoles, Simon afirma o Itamaraty tinha agências especializadas na repressão de exilados brasileiros, de segurança de informação. “Havia uma missão explícita”, diz.
De acordo com sua pesquisa, agentes consulares e alguns diplomatas lotados em Santiago dedicavam boa parte do tempo para vigiar exilados, recrutar e dividir informações com agências de informação como SNI (Serviço Nacional de Informações).
Após o golpe, Simon diz que os brasileiros enviados ao Estádio Nacional [principal centro de prisões e tortura da ditadura chilena] participaram de sessões de tortura e torturam até mesmo os chilenos.
Leia a entrevista:
Para montar o cenário em que ocorreu o golpe no Chile, o livro conta com centenas de documentos históricos e entrevistas com personagens da época. Como foi feita essa pesquisa?
A pesquisa demorou pouco mais de sete anos. Comecei quando ainda era repórter do Estadão em política internacional e fui para o Chile cobrir alguns eventos, incluindo a segunda eleição da Michelle Bachelet, quando ela estava voltando ao poder em 2013. Naquele ano, o país relembrava o aniversário de 40 anos do golpe no Chile. Em uma conversa com o editor, surgiu o tema: “Tem sempre a história que o Brasil apoiou a ditadura chilena, será que a gente não dá uma olhada nisso?”. Fui nos arquivos da chancelaria chilena e encontrei uma mina de ouro. Eu ia passar uma tarde e acabei estendendo a estadia no Chile para vários dias pesquisando. Saíram oito ou 10 matérias no Estadão à época.
Isso ocorreu no momento da Comissão da Verdade do Brasil. Eles me procuraram porque queriam acesso aos documentos que eu tinha encontrado no Chile. A Companhia das Letras também se interessou e me convidou para expandir a pesquisa e converter em uma investigação maior para um livro.
Ainda em 2013 voltei para uma temporada maior de pesquisa no Chile, depois no Brasil fiquei um tempo pesquisando no Itamaraty. Em 2014, me mudei para os Estados Unidos, fui para [Universidade] Havard e fiquei como pesquisador em Washington. Lá tive acesso à toda documentação da CIA (agência de inteligência norte-americana) e de debates na Casa Branca envolvendo Brasil, Chile e América Latina em geral. Com essa documentação, revi milhares de documentos secretos desses três países e entrevistei centenas de pessoas, incluindo exilados brasileiros, líderes extrema-direita do Chile, uma pessoa da CIA que estava no Chile, diplomatas que estavam na embaixada brasileira no Chile e diplomatas chilenos.
Em que momento a sua pesquisa mostrou que a participação do Brasil no golpe era uma política institucional do Estado?
O Brasil não esperava que Salvador Allende fosse eleito em setembro de 1970. É importante entender que ele era um revolucionário socialista e não um reformista da social-democracia europeu. Ele queria abolir o capitalismo.
A ditadura brasileira — dentro dessa ideia de segurança nacional — identifica o Chile de Allende como a ponte entre o comunismo internacional e o Brasil. Para eles, Chile havia se tornado uma espécie de “nova Cuba”, mas muito mais ameaçadora porque a ilha caribenha era longe do Brasil. Pela primeira vez, um regime socialista estava bem perto e, ainda por cima, era uma espécie de capital do exílio brasileiro.
Quando Allende foi eleito, Santiago era a capital com maior número de exilados brasileiros. A comunidade brasileira era muito ativa, fazia muito barulho e se integrava bem com a vida chilena. A ditadura também acredita que Allende e o Chile se tornariam uma espécie de imã da esquerda armada sul-americana para exportar guerrilhas para a região — isso é um mito, nunca aconteceu.
Nesse contexto, o regime se mobiliza para intervir e participa de um conjunto de ações para desestabilizar o governo socialista chileno. Depois, apoia o golpe. Na terceira fase, auxilia a construção de um regime à semelhança do que tinha nascido no Brasil em 1964.
O que se sabia até então?
A história de que a ditadura apoiou o golpe do Chile não é nova, mas os detalhes, as explicações e as interpretações do livro, acredito, são inéditos. A publicação conta um pouco da história da política externa brasileira porque antes os relatos eram quase oficialista, davam a entender que a ditadura brasileira e o Itamaraty se atinham apenas aos interesses permanentes do Estado brasileiro e não se envolviam diretamente na repressão.
Na época do golpe no Chile, o Brasil tinha um embaixador anticomunista e alguns membros da linha dura da ditadura talvez tenham espionado algumas pessoas lá. Mas era quase uma exceção dentro da regra da política externa de não se envolver nem com a política brasileira, nem de interferir na situação doméstica de países vizinhos. Isso é um mito.
O livro mostra que o Itamaraty tinha agências especializadas na repressão de exilados brasileiros e de segurança de informação. Havia uma missão explícita. Escrevi ainda sobre como agentes consulares e alguns diplomatas lotados em Santiago dedicavam boa parte do tempo para vigiar exilados, recrutar e dividir informações com agências de informação como SNI (Sistema Nacional de Informações).
Pelo menos em uma ocasião, dá para ver que uma informação levantada pelo Itamaraty levou à morte de um exilado. O Itamaraty descobriu que ele estaria em um voo que faria escala no aeroporto de Ezeiza, na Argentina. Ele foi preso em Ezeiza e desapareceu. Institucionalmente, o Itamaraty teve um papel importante na repressão a brasileiros fora das fronteiras nacionais.
O Brasil teve participação direta na repressão a brasileiros no exterior. É possível falar que a ditadura brasileira exportou métodos de tortura?
Um dos entrevistados relata que no começo tomava muita porrada. Porrada é diferente de tortura. Tortura você usa a dor no limite máximo para obter uma informação específica, porrada você pode descer até matar, mas não necessariamente consegue informação. Tortura é uma técnica. Ele diz que no começo percebeu que os chilenos sabiam dar muita porrada, mas não torturar de fato.
É difícil responder se foi o Brasil que ensinou os chilenos a torturar. Ao mesmo tempo, os brasileiros enviados ao Estádio Nacional [principal centro de prisões e tortura da ditadura chilena] participaram de sessões de tortura e torturam até mesmo os chilenos. Entrevistei um desses militares e ele nega totalmente essa versão, mas brasileiros exilados que estiveram lá e chilenos falam que sim.
Existiam instrumentos de tortura brasileiros como maquinetas de dar eletrochoque esse tipo de coisa no Chile trazidos do Brasil, mas não consegui confirmar com fonte independente porque é muito difícil de ir além dos relatos.
No entanto, há outras fatos interessante. Logo depois do golpe, por exemplo, a expressão pau de arara se tornou comum no Chile. Não existe arara no Chile e nem se fala “pau” — que é uma palavra em português do Brasil. A influência da repressão brasileira foi total.
Até então o Chile era o principal espaço de exílio dos brasileiros. O que acontece após o golpe com essa comunidade?
A maioria procurou uma embaixada e pediu asilo diplomático. Muitos brasileiros recorreram às embaixadas do México, da Argentina e da Itália. No livro, conto que a embaixada do Panamá recebeu Marco Aurélio Garcia (assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais nos governos Lula e Dilma Rousseff), José Aníbal (ex-senador do PSDB-SP) e outros políticos que se tornaram importantes no Brasil.
A embaixada em Santiago era um apartamentinho de alguns quartos pequenos e, rapidamente, ela ficou super-lotada. As pessoas precisavam se revezar para se sentar. O embaixador do Panamá, em compensação, fez para cada de um dos asilados uma espécie de anexo da embaixada com proteção diplomática.
Teotônio dos Santos, que dava aula no Chile, tinha uma casa confortável e recebeu alguns desses asilados para esvaziar um pouco o apartamento. O professor ficou em casa com gente dormindo na piscina esvaziada e na cozinha. No final, quando as pessoas receberam salvo conduto da ditadura chilena, essa casa foi convertida em um centro de tortura. Hoje, o local é um memorial. O livro tem várias histórias bem assustadoras como essa.
A ditadura recusou apoio aos brasileiros que estavam no Chile, mesmo os que não estavam envolvidos com a luta armada. Os brasileiros que não deviam nada ao país, não tiveram nenhum amparo. Pelo contrário, agentes da repressão tentaram impedir o retorno dessas pessoas ao Brasil.
Qual foi o papel dos Estados Unidos? Houve uma ação articulada com o Brasil contra o Chile?
Há entendimentos no nível presidencial. Tem uma famosa visita que o [general Emílio] Médici fez ao [presidente Richard] Nixon no final de 1971. No encontro, o presidente brasileiro explicitamente disse que o país estava trabalhando para derrubar o Allende com militares chilenos, Médici acreditava que isso ia acontecer cedo ou tarde. Nixon gostou muito do que escutou, ele gostava do Médici.
Para além desse entendimento de nível presidencial e de uma troca de informações entre embaixadores, não tem nenhum indício de que houve uma operação conjunta contra o Allende. Os países tinham objetivos em comum, por assim dizer. Mas isso nunca desceu da alta cúpula da burocracia dos dois governos para uma parte mais operacional.
Como você vê a relação entre o Brasil e o Chile atualmente?
Hoje, a gente tem o governo do Sebastian Piñera no Chile, de centro-direita. Mas a forma como ele lida com a questão da memória e da violação dos direitos humanos é completamente diferente do governo brasileiro.
O governo brasileiro louva torturadores, defende [o ditador Augusto] Pinochet. Teve um episódio infame no qual o presidente do Brasil atacou o pai da ex-presidente Michelle Bachelet e isso obrigou o Piñera a vir a público defender a ex-presidente — inimiga política dele há anos.
Você fala que existe um mito em relação ao Chile. Que mito é esse? Está relacionado ao senso-comum dos brasileiros em relação ao Chile ou à política interna?
O Chile é um país bem mais desenvolvido que o Brasil, inclusive do ponto de vista político. A democracia que foi criada a partir dos anos 1990 é muito robusta, com partidos fortes. Há uma clara divisão ideológica e programática entre a centro-esquerda e centro-direta, mas também com mínimo denominador comum entre os partidos. Isso permitiu grandes avanços sociais. A taxa de crescimento do Chile e a melhora dos indicadores sociais sob a democracia é muito maior do que durante os anos Pinochet. Havia um mito em relação ao choque de capitalismo que o Pinochet deu, mas vários historiadores e economistas já desbancaram essa informação.
Agora, a gente entende melhor os custos que essa liberalização radical teve no Chile. Os protestos que começaram em outubro do ano passado expuseram de maneira muito crua vários problemas crônicos desse sistema. Você tem um sistema previdenciário privado e as pessoas que agora começaram a se aposentar não têm dinheiro, ficam boa parte abaixo da linha de pobreza. É um sistema no qual fazer um ensino superior, se você é de classe média ou média baixa, significa contrair uma dívida que vai se tornar um peso enorme ao longo da sua vida. Há grandes problemas de acesso à saúde porque boa parte é privada.
O Chile está passando por um processo de revisão do seu modelo político, mas a prova de que o país tem maturidade institucional, é que eles decidiram canalizar essa pressão para rever a Constituição imposta pelo Pinochet lá atrás. A onda de protesto se transformou em debate e ele vão mudar a Constituição que será escrita por uma assembleia eleita diretamente.