Sob Bolsonaro, estatais fecharam contratos milionários com “articulador” de Tarcísio
Empresas pertencem a irmão de um amigo do clã Bolsonaro que ocupou altos cargos no Planalto e no Ministério da Justiça, no governo passado
atualizado
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Contratos de R$ 25 milhões fechados por estatais federais durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro beneficiam um grupo de empresas comandado por Nelson Santini, articulador político e responsável pela segurança privada da campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), então candidato do bolsonarismo no Estado mais importante do país.
Pelo menos um desses contratos foi assinado a partir de um processo de concorrência suspeito, já na reta final do período eleitoral.
Tenente da reserva da Rota, uma espécie de tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), Nelson Santini é irmão do advogado José Vicente Santini, que ocupou cargos importantes no Palácio do Planalto e terminou o governo Bolsonaro como secretário nacional de Justiça. Ele foi sócio de uma das firmas do grupo até janeiro de 2019.
Ao longo da gestão de Jair Bolsonaro, José Vicente Santini esteve no centro de episódios rumorosos. Em 2020, foi demitido de um dos cargos mais importantes da Casa Civil por usar, sem necessidade, um avião oficial numa viagem à Suíça e à Índia.
Amigo da família Bolsonaro, ele não ficou muito tempo desassistido. Logo depois, foi nomeado para outros cargos no governo. Chegou a passar pelo próprio gabinete do então presidente e, na sequência, ganhou a secretaria do Ministério da Justiça, uma das mais relevantes da pasta.
Ainda em 2022, como revelou o Metrópoles, o então secretário nacional de Justiça comprou uma casa em Brasília por R$ 6,7 milhões, apesar de receber, à época, um salário de R$ 16,9 mil do governo. Atualmente, José Vicente Santini chefia o escritório de representação do governo de São Paulo na capital federal.
Já Nelson Santini, que usa a alcunha de Tenente Santini, é ex-vereador de Campinas, cidade do interior paulista. Como o irmão, ele tem amizade com a família de Jair Bolsonaro. Na campanha presidencial de 2018, chegou a oferecer segurança gratuita para Michelle Bolsonaro e para a filha do casal.
No ano passado, uma de suas empresas, a Campseg, foi a única contratada para fazer a segurança da campanha de Tarcísio. Oficialmente, recebeu um valor quase simbólico diante da complexidade do serviço: R$ 116 mil.
Papel na campanha
Nas redes sociais, Nelson Santini aparecia como alguém bem mais importante para o projeto de Tarcísio do que um simples chefe de segurança.
Em janeiro, quando o hoje governador era ministro da Infraestrutura de Bolsonaro e ainda construía a sua candidatura, as empresas de Tenente Santini patrocinaram um evento em Campinas chamado “Infraestrutura: Desafios e Oportunidades”, do qual Tarcísio foi a estrela.
Mais tarde, o militar da reserva foi peça-chave na organização de uma motociata que reuniu apoiadores de Tarcísio e do próprio Bolsonaro na cidade.
Em vídeos do evento, Tenente Santini, que se autodenomina um “mobilizador” e se diz movido por idealismo político, aparece ao lado de Tarcísio de Freitas explicando a rota a ser percorrida e convocando militantes. A motociata contou com a presença do próprio Bolsonaro.
Tenente Santini coordenou o público a partir de um dos carros de som. Em várias postagens na internet, ele foi tratado como “organizador” do ato e até como “coordenador” da campanha de Tarcísio, embora seu nome não figurasse assim nas listas oficiais do comitê do então candidato.
Os contratos
Sob Jair Bolsonaro, as empresas das quais Tenente Santini é dono firmaram contratos com a Transpetro, braço logístico da Petrobras, com os Correios e com a Caixa Econômica Federal. Somados, os valores chegam a R$ 25 milhões.
Por terem sido assinados com estatais, esses contratos estão longe dos olhos do grande público. Não aparecem, por exemplo, no portal da Transparência do governo federal.
No caso da Transpetro, foram dois contratos, ambos sem licitação e feitos de forma emergencial. Por meio deles, a Campseg, do grupo de Nelson Santini, recebeu mais de R$ 7 milhões de reais nos anos de 2020 e 2021.
A empresa foi contratada para proteger trechos por onde passam dutos da companhia em São Paulo. A Transpetro diz que a Campseg foi contratada emergencialmente porque um processo de licitação para a prestação dos mesmos serviços ainda estava sendo organizado.
Na Caixa e nos Correios, os negócios saíram já no segundo semestre de 2022, com a campanha eleitoral em ebulição.
Em setembro, o banco público fez um pregão para a compra de luzes estroboscópicas e alarmes para suas agências. Estavam em jogo cinco lotes, um para cada região do país. A Auto Defesa Brasil Tecnologia e Monitoramento de Sistemas Eletrônicos, outra empresa da qual Tenente Santini é acionista, ganhou todos. O valor do negócio: R$ 6 milhões.
Um detalhe chama a atenção: em quatro dos cinco lotes, a Auto Defesa disputou com apenas uma concorrente, a M de Lima Pinto Segurança Eletrônica ME, uma modesta loja de materiais elétricos de Cabo Frio, cidade do litoral do Rio de Janeiro. A firma já foi punida pela Cedae, a companhia de saneamento fluminense, justamente por fraude em licitação.
Nos pregões da Caixa em que disputou com a empresa do Tenente Santini, a M de Lima foi desclassificada por não ter apresentado nem sequer os documentos básicos. Ao Metrópoles o dono da firma, Luiz Henrique Gomes da Silva, admitiu que, caso ganhasse os contratos na Caixa, não teria condições de prestar o serviço sozinho. Teria que terceirizar, disse. Ele negou, porém, que tenha entrado na disputa a pedido da Auto Defesa, só para figurar.
Nos Correios, a Auto Defesa sagrou-se vencedora de um pregão eletrônico para o fornecimento de alarmes. A ata de registro de preços assinada a partir do processo permite à empresa receber até R$ 12,1 milhões. Até agora, nesse contrato, foram pagos pouco mais de R$ 20 mil.
Investigação em São Paulo
Neste ano, a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo abriu investigação para apurar se a proximidade de Nelson Santini com o governo paulista estaria resultando em parcerias que extrapolam os limites legais.
O procedimento foi instaurado após uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo revelar indícios de que uma das empresas de segurança de Santini estaria usando apoio da PM como uma espécie de “reforço” nos serviços privados de vigilância que presta para a concessionária da ferrovia que atende o Porto de Santos.
Há registros de que viaturas e até um helicóptero da Polícia Militar, que deveriam estar atendendo a população em geral, teriam sido usados para patrulhar trechos da linha férrea.
O contrato que a Campseg ganhou para vigiar a ferrovia, aliás, é um sinal de que o grupo de Tenente Santini tem ampliado seus negócios também no setor privado lançando mão de movimentos feitos no setor público pelos amigos e aliados da família.
A Rumo, concessionária que contratou a Campseg para vigiar as linhas férreas sob seu controle, ganhou o primeiro leilão ferroviário da gestão de Tarcísio de Freitas no Ministério da Infraestrutura, em 2019.
O que dizem os envolvidos
Procurada, a Rumo não deu informações sobre a contratação da Campseg.
Em nota, Tenente Santini afirmou que conheceu o então ministro Tarcísio de Freitas em eventos políticos em Brasília, quando era vereador em Campinas. Ele disse que a Campseg foi contratada formalmente para fazer a segurança pessoal de Tarcísio na campanha de 2022 e que o serviço foi prestado de acordo com a legislação.
O militar da reserva afirmou ainda que participou da campanha de Tarcísio como “apoiador” e “admirador” e que seu empenho estava “em linha com aquilo que acredita, sempre dentro dos limites legais”.
Sobre os contratos com as estatais, ele negou que seu irmão José Vicente Santini tenha atuado em favor das empresas junto ao governo federal.
“As concorrências públicas foram através de sistemas eletrônicos disponíveis ao mercado de forma geral, desde a disponibilização das concorrências até a realização do pregão por meio eletrônico, levando como critério sempre o menor preço e a consequente habilitação técnica”, diz o texto.
A nota sustenta que as empresas do grupo são pautadas pela ética, faturaram aproximadamente R$ 2 bilhões nos últimos cinco anos com negócios na iniciativa privada e que os contratos no setor público representam menos de 0,5% de suas atividades.
José Vicente Santini, o irmão do Tenente Santini que foi secretário nacional de Justiça de Bolsonaro, não quis se manifestar.
Sobre a participação de Tenente Santini na campanha de Tarcísio de Freitas, a assessoria do governador paulista respondeu que a motociata em Campinas organizada pelo militar da reserva foi um evento preparado por apoiadores, sem relação financeira com o comitê do então candidato.
O texto diz ainda que Santini não tinha, formalmente, uma função na campanha de Tarcísio.
“A Justiça Eleitoral exige o registro formal dos responsáveis pela campanha, os quais possuem atribuições específicas decorrentes da legislação eleitoral, não sendo indicado o nome citado por não possuir a função mencionada. Não há qualquer exigência legal para o registro na Justiça Eleitoral de apoiadores, simpatizantes e demais entusiastas da campanha”, afirma a nota.