Húngaro empalhou sucuri, onça, canguru, pinguim e até bezerro de 2 cabeças em GO
O taxidermista José Hidasi, radicado há décadas em Goiânia, morreu na semana passada aos 95 anos, deixando um acervo impressionante
atualizado
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Goiânia – Mais da metade do quase um século de vida de José Hidasi, o húngaro que lutou e fugiu da Segunda Guerra Mundial para viver no meio do Cerrado brasileiro, em Goiânia, foi dedicada à museologia e à taxidermia, técnica de empalhamento de animais. Ele morreu na segunda-feira (19/7), aos 95 anos, e deixou um acervo gigantesco, considerado o maior do Brasil, tanto pela diversidade de espécies quanto pela quantidade.
De leão a canguru, de zebra a pavão, de coala a tamanduá, passando por onças, lobos, jacarés e até pinguim e um bezerro de duas cabeças, ele acumulou, em mais de 50 anos de atividade e intercâmbios com pesquisadores internacionais, exemplares de animais de todos os continentes. A quantidade é tão expressiva – avaliada em torno de 100 mil peças – que o acervo encontra-se, hoje, espalhado por museus de história natural dentro e fora do Brasil.
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A maior parte dos animais empalhados está em Goiânia, onde ele criou, na própria residência, um museu de ornitologia, que funcionou até 2018 e recebeu a visita de figuras ilustres, como políticos, jogadores de futebol, humoristas e músicos. Mais de 10 mil peças que estavam no local foram doadas para a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUCGO). Elas estão em um galpão, sendo catalogadas e à espera de um espaço adequado para exposição.
Obcecado por animais e o estudo da fauna desde a infância, vivida na cidade de Makó, na Hungria, Hidasi nunca tirou da cabeça o objetivo de viver no Brasil, onde ele sabia que encontraria a variedade de espécies que sempre sonhou. Nem no período mais sombrio da guerra, ele se esqueceu desse desejo. Ao fugir de um campo de concentração russo, um dia antes da data em que ele seria executado, o objetivo era um só: ir para o Brasil.
Fuga
O mais novo de cinco filhos de Hidasi, o advogado Roberto Hidasi, de 55 anos, conta que o pai fugiu por uma pequena janela, que cabia apenas a cabeça dele. Até ser preso pelos soviéticos que invadiram a Hungria, ele havia lutado pelo exército húngaro, como segundo-tenente e paraquedista. Para fugir da prisão, ele se espremeu tanto para passar pelo buraco da janela que ficou com cicatrizes eternas na região do quadril.
“Ele ficou rodando pela Europa, depois, por mais de quatro meses, dormindo em beirada de estrada, no mato, comendo maçã nas plantações até conseguir ajuda em fazendas e acessar a Alemanha e a França, onde ele ficou em campos de refugiados. Ele tocava muito bem acordeão e era chamado para tocar nas bandas dos refugiados. Ganhou dinheiro com isso e chegou até a França, onde ele fez cursos (letras e ciências naturais)”, conta o filho.
Médica da esposa de Vargas
Da atividade de empalhador de animais até as histórias mais cotidianas, tudo era muito peculiar na vida de Hidasi. O mesmo homem que empalhou crocodilos, sucuris, ursos e pinguins praticou ginástica olímpica, sabia tocar piano e falava várias línguas. “É tanta história que, às vezes, a gente achava que ele estava inventando”, diz a neta, a médica veterinária Hilari Hidasi, que hoje trabalha no Zoológico de Guarulhos (SP).
No navio para o Brasil, em 1950, saindo da França, ele viveu breve romance com uma médica e massagista da esposa do presidente Getúlio Vargas. Ao descer em solo brasileiro, no Rio de Janeiro, ela o ajudou a arrumar emprego. E não era um trabalho qualquer. Por ser poliglota, ele atuaria como intérprete e ganharia 10 mil cruzeiros por mês, um grande salário para a época. O plano dele, no entanto, era embrenhar no mato e colecionar animais.
Hidasi preferiu um trabalho que pagava 10% desse valor, na Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, e que o colocava mais próximo do grande objetivo. Numa questão de meses, ele estaria ao lado do famoso ornitólogo alemão Helmut Sick, na Fundação Brasil Central, em Aragarças (GO), na divisa com Mato Grosso, e em expedições em tribos indígenas e diferentes biomas brasileiros.
Fez do avião da Aeronáutica uma “Arca de Noé”
Os contatos foram acontecendo na vida de Hidasi com a mesma agilidade que ele tinha para caçar, colecionar, catalogar e identificar espécies de animais. O fato de não existir, na época, uma legislação ambiental rigorosa no Brasil, ou mesmo um órgão específico que regulamentasse a área, acabou favorecendo os planos do taxidermista. Sem obstáculos burocráticos, ele surgiu como um precursor da atividade no país.
A família defende que ele sempre agiu com o interesse de preservar a história natural e propiciar que gerações futuras pudessem ver ou conhecer, visualmente, os mais diversos tipos de animais selvagens. Foi ele, inclusive, que deu o primeiro passo para a criação do Zoológico de Goiânia. Com o auxílio de soldados da Força Aérea Nacional (FAB), em Aragarças, ele colocou cerca de 50 animais dentro de um avião e viajou até a capital goiana. Era uma espécie de versão aérea da Arca de Noé.
“Encheu o avião de bichos. Anta, ema… O que ele pôde juntar, ele tacou dentro do avião e criou o Zoológico de Goiânia. Na época, foi chamado de Horto Florestal. Ele era doidão mesmo, fazia tudo fora da caixinha”, diz o filho, Roberto Hidasi.
No local, hoje, além do Museu de Zoologia Professor Hidasi, cuja maioria das peças foi empalhada pelo taxidermista, tem ainda parte grande do acervo dele guardada em um depósito. São animais que viveram no zoológico, morreram ao longo do tempo e que foram empalhados por Hidasi para serem expostos e apresentados em escolas e atividades educacionais.
Bichos históricos
Alguns dos animais que passaram pelas mãos do taxidermista são históricos e foram destaque na mídia, em diferentes momentos. Um deles é o leão Guru que ficou conhecido, em Goiânia, nos anos 1980, como leão da Marial, uma madeireira que existia no Setor Universitário. Criado praticamente como bicho de estimação, ele foi usado em propagandas de TV da empresa. No dia 13 de julho de 1986, ele escapou do local, saiu pelas ruas do bairro e, faminto, matou uma garotinha de apenas 2 anos de idade.
O animal foi capturado e levado, na época, para o zoológico, onde viveu e ficou exposto por anos, até morrer. Hoje, não só a ossada dele como todo o couro e a cabeça, empalhados, estão guardados no depósito do local. É no Zoo, também, que está o jacaré-açu Jacinto. A princípio, acreditava-se que ele era fêmea e lhe deram o nome de Jacira. O gênero só foi descoberto depois que ele matou dois jacarés machos, colocados no recinto para procriar.
Entre os pássaros, que eram a grande paixão de José Hidasi – ele era chamado de “vovô passarinho pelos netos” –, algumas histórias se destacam. Além dos exemplares raros que ele obteve nos intercâmbios internacionais, ele chegou a receber um beija-flor das mãos do ex-presidente de Cuba Fidel Castro, e empalhou um exemplar do menor beija-flor do mundo. Esse, segundo o professor da PUCGO, Roberto Malheiros, está guardado em um cofre.
“Quero ficar exposto também”, dizia ele aos amigos
A vida dedicada à taxidermia refletiu nos desejos mais íntimos de José Hidasi. Entre amigos e familiares, ele dizia que, quando morresse, desejaria passar também por um processo semelhante à técnica que ele desenvolveu. A ideia era que o esqueleto fosse retirado do corpo e ele fosse preenchido de forma que pudesse ficar exposto, assim como as milhares de peças de animais que compõem o acervo que ele construiu e colecionou por décadas.
O neto dele, que leva o nome do avô, José Hidasi Neto, disse ao Metrópoles que estava nos planos dele colocar isso no testamento. O filho, Roberto Hidasi, informa que isso não chegou a ser oficializado no papel. O amigo e professor Roberto Malheiros conta que o taxidermista até procurou um especialista em dissecação de cadáveres, em São Paulo, para avaliar a possibilidade, mas que houve proibição da Justiça, na época.
“Ele era bem único no estilo de vida”, define José Hidasi Neto.
O taxidermista foi enterrado em Goiânia, no Cemitério Santana, que fica próximo ao bairro onde ele morou (Setor Campinas) e onde ficava o museu de ornitologia que ele criou.