Gordo e favelado: nutricionistas desafiam estereótipos da profissão
Nutri Favela, Nutri Favelado, Barriga Positiva e Nutricionista Gordo falam de assuntos que vão além do emagrecimento
atualizado
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São Paulo – Nutri Favelado, Nutricionista Gordo, Nutri Favela, e O Barriga Positiva são perfis de nutricionistas que não se encaixam nos estereótipos da profissão. Mais do que gordos ou favelados, eles defendem que são profissionais da saúde e não do emagrecimento.
Membro do conselho técnico da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral BR) e criador do O Barriga Positiva, Muriel H. Depin condena o senso comum que aponta o corpo do nutricionista como um cartão visita.
“Os nutricionistas e os estudantes de nutrição estão no grupo de risco de transtornos alimentares e não é à toa. Nesses profissões, as pessoas vinculam muito a capacidade do indivíduo à aparência física”, afirmou Muriel ao Metrópoles.
O Nutri Favelado
José Carlos Elias Júnior, 24 anos, criou o perfil O Nutri Favelado em agosto de 2021 para divulgar seu trabalho e a sua visão política da nutrição.
O nome surgiu quando, para espairecer, ele deu uma olhada na rua onde mora no Jardim Algodoal, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Além do momento de inspiração, o nome da conta também foi reflexo do tema que José abordou em seu trabalho de conclusão de curso (TCC): o consumo de alimentos ultraprocessados na periferia.
“O curso de nutrição tem um pensamento elitista sobre o acesso à saúde. Não entendem que vivemos em um país com 120 milhões de brasileiros em insegurança alimentar. Pensam em pessoas que podem comprar uma lista infinita de suplementos”, diz José Carlos, que estudou na Universidade Metodista de Piracicaba.
“Não pareço, mas sou”
O Nutri Favelado também leva para a clínica essa perspectiva. Em seu consultório, raramente a balança é usada e, na maior parte do tempo, fica decorada com plantas e a plaquinha “esse número não te define”.
É no atendimento presencial que ele mais precisa usar o seu discurso “não pareço, mas sou nutricionista”, relatou José Carlos, que também é secretário do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comsea) de Piracicaba.
“É uma profissão muito estereotipada. Você olha o perfil dos nutris e é sempre alguém de braço cruzado, com jaleco branco com o braço [bíceps] de sei lá quantos centímetros. E eu venho aqui com o meu bonezinho de crochê, meus anéis, minhas correntes e causo estranheza”, contou.
José Carlos acredita que o estilo e o peso foram fatores que influenciaram para que algumas portas fossem fechadas na cidade que ele classifica como “muito interiorana”.
“Estou bastante acima do peso, então eu também sou um nutricionista gordo”, disse. Ele afirmou que as pessoas fazem piadas o igualando com médico fumante, dentista sem dente. No entanto, a comparação não é adequada, porque envolve muitos fatores.
“O nutricionista é um profissional da saúde e o peso não é um bom marcador de saúde”, comentou.
O Barriga Positiva
Muriel H. Depin, 30, criou o O Barriga Positiva em 2018, quando se deparava com muitos nutricionistas estimulando e ensinando métodos nada saudáveis para se alcançar uma barriga negativa, ou seja, bastante magra.
“Já temos tanta coisa negativa no mundo, a barriga também tem que ser? Será que pelo menos a barriga não pode ser positiva?”, questionou o profissional, com especialização em transtornos alimentares pela Universidade de São Paulo (USP).
O nutricionista contou que muitos internautas imaginam que a conta Barriga Positiva se refere a um abdômen saliente, mas ele explica: “É no sentido de encararmos a nossa barriga de uma forma mais positiva”.
O profissional relatou que sofreu com preconceito que envolve a profissão em uma viagem para a praia com um grupo de amigos, logo depois de se formar.
“Eu não sou uma pessoa gorda, mas eu tenho uma barriguinha, normal, ser humano. Uma pessoa falou: ‘Nossa, se você quer ser nutricionista, precisa perder essa barriga'”, contou.
No entanto, a resposta dele na época foi rápida: “Que eu saiba o conhecimento que eu tenho de nutrição está no meu cérebro e não nos meus adipócitos [células de gordura]”.
Nutri Favela
Patrícia Santos, 40, resolveu cursar nutrição e criar a Nutri Favela há cinco anos. Ela pesava 160 quilos e não encontrava dicas condizentes com a sua realidade: mãe solo de um adolescente autista e moradora da favela do Vietnã, em São Paulo.
Assim, a então recepcionista de hospital decidiu que, na falta de uma profissional que a representasse, ela mesma seria a “nutricionista do povão”.
“Infelizmente, a nutrição está mais voltada para a dieta, para a estética. Nutrição é defender o alimento, o alimento limpo, o alimento que pode estar na mesa de todos os níveis sociais”, explicou.
Patrícia conquistou o público com receitas fáceis, baratas e que muitas vezes permitem usar o alimento na íntegra, incluindo casca e sementes. O prato de maior sucesso da Nutri Favela é o ovo no molho de tomate.
Nutricionista Gordo
Erick Cuzziol, 39, fez dietas para emagrecimento desde a sua adolescência e isso acabou o levando para a carreira de nutricionista. Ele acreditava que poderia encontrar respostas para suas “angústias” e ainda “ajudar outras pessoas”.
Após ele tentar suicídio, sua mãe sugeriu que fizesse a cirurgia bariátrica. “Para mim, seria dar o braço a torcer, porque eu também tinha essa crença de que, por ser nutricionista, tinha que conseguir ser magro”, contou Cuzziol.
O profissional sofreu com o preconceito dos médicos durante o processo de preparação para a redução de estômago – o que agravou sua compulsão alimentar.
Erick ficava com vergonha de falar que era nutricionista. Ao ser questionado por uma de suas médicas sobre sua profissão, começou a chorar e quase não conseguiu responder.
No entanto, a endocrinologista o acolheu: “Por que você se sente humilhado? Seu tecido adiposo é um órgão complexo. Estamos todos juntos lutando para conseguir melhores respostas. Se você tivesse a solução, não estaria procurando ajuda”.
Ele realizou a cirurgia bariátrica, emagreceu 70 quilos e voltou para o setor de nutrição em um cenário no qual já existiam ativistas contra a gordofobia. Em 7/9/2018, Dia da Independência do Brasil (e do Erick também), ele assumiu o título Nutricionista Gordo.
“Comecei a repensar muito a minha imagem como profissional, parei de ter vergonha de ser nutricionista e gordo”, disse Cuzziol, que agora é ativista, mora em Itanhaém, no litoral de São Paulo, e faz atendimentos on-line.
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