Goiânia mantém marcas em terrenos 34 anos após tragédia do Césio-137
Lotes na região central que foram atingidos pelo acidente radiológico em 1987 seguem isolados e proibidos de qualquer tipo de intervenção
atualizado
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Goiânia – Há 34 anos, ocorria no Brasil o maior acidente radiológico do mundo, registrado fora de uma usina nuclear. O episódio aconteceu em Goiânia, cidade que ficou estigmatizada à época, devido a uma onda de preconceito e desinformação. Mesmo passado todo esse tempo, a capital ainda mantém marcas – não só simbólicas, mas também físicas –, nos locais mais atingidos por aquilo que ficou conhecido como acidente com o Césio-137.
Dois desses locais são lotes que ficam na região central da capital. Quem passa em frente e desconhece a história da tragédia que marcou Goiânia e repercutiu internacionalmente é capaz de imaginar que se tratam de dois terrenos baldios comuns, e que estão à espera de alguma construção ou ocupação. Por trás do concreto reforçado que isola todo o espaço, no entanto, existe uma história triste, repleta de mortes e sequelas enfrentadas ainda hoje.
No dia 13 de setembro de 1987, dois jovens catadores de recicláveis, Roberto dos Santos Alves, 22, e Wagner Mota Pereira, 19, foram até o prédio desocupado de uma clínica de radioterapia no centro da cidade, onde existia um aparelho de cesioterapia que havia sido abandonado no local. O terreno hoje é ocupado pelo Centro de Cultura e Convenções de Goiânia, no coração da cidade. Os trabalhadores desmontaram o objeto e o levaram para casa, com a intenção de vender as peças e gerar algum dinheiro.
6 mil toneladas de rejeitos
Mal sabiam os rapazes que, dentro do aparelho, existia uma cápsula de apenas três centímetros, na qual havia 19,26 gramas de césio – substância radioativa e, até então, desconhecida pela maioria. O conteúdo em questão pode parecer pouco e pequeno, mas foi o suficiente para gerar mais de 6 mil toneladas de rejeitos contaminados pela radioatividade. Parte desse material, inclusive, foi retirado dos dois lotes concretados, onde, ainda hoje, é proibido fazer qualquer tipo de obra.
Um dos terrenos está localizado na Rua 57, no centro. Lá estava situada a casa de Roberto, para onde foram levadas, por ele e Wagner, as peças do aparelho de cesioterapia. No quintal, eles tentaram separá-las ainda mais, usando ferramentas pontiagudas. Com esforço, os rapazes conseguiram romper a barreira que protegia a fonte de césio e deu-se início ali o primeiro contato direto com a substância.
A exposição foi o suficiente para justificar a demolição da casa, o recolhimento de todos os objetos e pertences da família, e o subsequente isolamento do lote, com concreto especial. O cimento é o mesmo que segue até hoje no terreno, que foi adquirido pelo estado para evitar qualquer perfuração ou construção. Desde que o acidente foi identificado, o espaço é monitorado por técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).
Ferro-velho
As regras são as mesmas que valem para o segundo lote concretado, localizado na Rua 26-A, hoje também chamada de Rua Francisca da Costa Cunha, no Setor Aeroporto. Os dois terrenos ficam próximos. Nesse, funcionava o ferro-velho e oficina de Devair Alves Ferreira, que tinha 36 anos à época. Wagner e Roberto venderam para o mecânico parte das peças contaminadas do aparelho de cesioterapia, no dia 19 de setembro de 1987.
Nesse meio tempo, Wagner apresentou sintomas gerados pelo contato com a substância, como diarreia, tontura, inchaços e queimaduras na mão, mas voltou a trabalhar mesmo doente, depois de procurar assistência médica. No ferro-velho de Devair, o césio se espalhou. Dois jovens funcionários, Israel Batista dos Santos, 22, e Admilson Alves de Souza, 18, manusearam o equipamento.
Luz azul
No escuro, o césio emitia uma luz azul que gerou fascínio em Devair. Ao ver aquilo e hesitar em vender a fonte do aparelho logo de cara, ele chegou a colocá-la na sala de casa para iluminar o ambiente e, ainda, distribuiu fragmentos do pó da substância a amigos e parentes. Dias depois, a esposa dele, Maria Gabriela Ferreira, 38, começou a sentir sintomas de diarreia e vômito.
O irmão de Devair, Ivo Alves Ferreira, levou parte para casa e mostrou para a filha pequena, Leide das Neves, de apenas seis anos. Ela tocou na substância e, com as mãos ainda sujas, pegou e comeu um ovo cozido que a mãe havia acabado de preparar. Leide ingeriu césio e morreu dias depois, tornando-se a vítima símbolo da tragédia.
Entre o dia 13 de setembro, quando os homens pegaram o aparelho na clínica abandonada, e a identificação do que, de fato, ocorria em Goiânia, passaram-se 16 dias. Eles chegaram a acreditar, nesse intervalo, que os sintomas sentidos, após o contato com a fonte de césio, eram motivados por algo que eles tinham comido (manga com coco).
O poder público só conseguiu confirmar que se tratava de um acidente radiológico no dia 29 de setembro de 1987. Nesse período, o césio foi dividido, transportado, manuseado, ingerido, passado no corpo e até jogado na privada.
Vítimas diretas
Leide da Neves, a tia, Maria Gabriela, e os dois funcionários do ferro-velho, Israel e Admilson, são considerados as quatro vítimas diretas do acidente. Eles morreram semanas depois de serem hospitalizados e foram enterrados em túmulos especiais, também com concreto reforçado, no Cemitério Parque, em Goiânia.
O sepultamento foi marcado por protestos, revolta e troca de agressões entre policiais e manifestantes que não queriam que as vítimas fossem enterradas na cidade. A população goiana demonstrava medo da contaminação e era tomada pela onda de desinformação que surgiu não só em Goiânia, mas em todo o Brasil – a exemplo de uma revista nacional que chegou a escrever na capa “Goiânia Nunca Mais”.
Além da lembrança traumática de quem vivenciou tudo de perto e sofreu perdas irreparáveis, restam, hoje, as marcas territoriais da tragédia. O cemitério, os lotes concretados e o Centro de Convenções são alguns dos pontos que remontam a história na memória de quem testemunhou o inimaginável.
Terror e monitoramento
Ao todo, resíduos parciais ou totais de 46 casas, 50 veículos, 45 ruas, árvores, calçadas, roupas, utensílios domésticos e até animais sacrificados foram recolhidos e viraram lixo nuclear. O césio circulou não só por Goiânia, mas também por Aparecida de Goiânia, Anápolis e Inhumas, em razão do deslocamento de pessoas contaminadas.
Tudo que foi identificado com contaminação foi recolhido e armazenado em um depósito coberto por um aterro, localizado no Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, em Abadia de Goiás, na região metropolitana de Goiânia. E assim deve permanecer por, pelo menos, 300 anos. Até lá, com certeza, essa história continuará sendo lembrada.
Naqueles idos de 1987, o clima foi de terror e pânico em Goiânia. Mais de 112,8 mil pessoas foram registradas e monitoradas pela CNEN. O ponto de medição era o Estádio Olímpico Pedro Ludovico, no Centro, bem próximo do local onde a cápsula foi encontrada pelos dois catadores de recicláveis.
Até as cédulas de dinheiro que circulavam na cidade passaram pela medição de radioatividade. Foram monitoradas mais de 10,2 milhões de cédulas. Em 68 delas, foram encontrados resíduos de césio-137.
Quase quatro décadas já se passaram desde aquele fatídico setembro de 1987, mas as lembranças dos que viveram aqueles dias ainda mantêm-se vivas e, mesmo para os que não viveram, as histórias são contadas. Elas fazem parte de uma espécie de memória coletiva dos goianienses e dos goianos.