Garimpo, Covid e ataques: povo Yanomami vive sob tensão e violência
Em maio de 1992, durante o mandato do ex-presidente Fernando Collor, a terra indígena foi homologada. Invasões, contudo, voltaram a ocorrer
atualizado
Compartilhar notícia
Vinte e nove anos depois de encerrar um período dramático, o povo indígena Yanomami volta a conviver com a pressão de invasões, violência e o garimpo.
Em 25 de maio de 1992, durante o mandato do então presidente Fernando Collor, a terra indígena foi homologada. O reconhecimento se arrastava há décadas.
Seria, na teoria, o fim de um período de mortes por epidemias, de conflitos pela abertura da BR-210 e das invasões garimpeiras.
Não foi. Ao longo do tempo, as investidas continuaram, e, a partir de 2020, voltaram a crescer de forma que ameaça a vida no território indígena.
“Esse reflexo se dá pelo enfraquecimento da política indigenista nacional. Uma série de fatores se somam e acabam ocasionando conflitos. Há um avanço de políticas que estão sendo discutidas que tentam flexibilizar a extração de minerais em terras indígenas”, reclama Dinaman Tuxá, integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Segundo Tuxá, houve um desmonte nos mecanismos que protegem os indígenas. “Estamos preocupados, porque não estamos vendo uma ação incisiva do Estado para combater. Sem sombra de dúvidas, é o pior momento desde a redemocratização. Funai [Fundação Nacional do Índio] e Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] passaram por um processo de enfraquecimento e de reorientação de como agir”, completa.
Neste mês, indígenas da comunidade Palimiú foram atacados com tiros e bombas de gás. Lideranças Yanomami confirmaram que duas crianças, uma de 1 ano e outra de 5 anos, morreram afogadas durante a investida de garimpeiros. Cinco pessoas ficaram feridas.
Calcula-se que mais de 20 mil garimpeiros estejam neste momento dentro da Terra Indígena Yanomami (TIY). A tensão aumentou desde 2020.
É a maior reserva indígena do país, com 9,6 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas, onde vivem mais de 27 mil indígenas espalhados em 330 comunidades.
Adriana Huber Azevedo, coordenadora da região Norte do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), alerta que a situação é muito preocupante.
“Os ataques e as invasões são problemas que já vêm de longa data. Era previsível que teria essa escalada. Os Yanomami já haviam alertado que o garimpo estava ganhando força desde 2017. O garimpo nunca acabou totalmente. Mas hoje a invasão é maciça”, pondera.
A coordenadora conta que a Funai, órgão responsável pela demarcação de terras e proteção de povos indígenas, desativou várias barreiras etnoambientais. “A destruição está horrível”, ressalta.
Desde o ano passado, também há tensão entre indígenas e garimpeiros por causa da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. Indígenas proibiram a entrada dos garimpeiros, para tentar conter o vírus.
Dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) mostram o avanço da doença entre os indígenas. Ao todo, 54 mil foram infectados – desses, 1.088 perderam a vida. A pandemia atingiu 163 povos em todo país.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou ao governo federal a “adoção imediata” de providências visando à proteção da segurança e da vida dos indígenas que habitam as Terras Indígenas Yanomami, em Roraima, e Munduruku, no Pará.
O Ministério Público Federal (MPF) já alertou para risco de genocídio, apontando que garimpeiros, além de promoverem degradação ambiental e insegurança, são vetores de doenças para as comunidades.
Ataques
Desde 1988, período democrático, quatro ataques, considerados massacres, resultaram em mortes, segundo a Hutukara Associação Yanomami. Ao menos 36 indígenas da etnia perderam a vida em conflitos (veja a lista abaixo).
Massacres em terras Yanomami:
- Agosto de 1993: 16 pessoas, sendo cinco crianças, morreram em Haximu (RR) após conflito com garimpeiros.
- Abril de 1988: conflito com garimpeiros causou oito mortes em Paapiú (RR).
- Agosto de 1987: sete pessoas morreram e 47 se feriram em ataques de garimpeiros em Serra Couto Magalhães (RR).
- Abril de 2013: cinco pessoas morreram e outras sete ficaram feridas em ataques feitos por garimpeiros em Alto Alegre (RR).
Relatório da Comissão Pastoral da Terra, divulgado em abril, registra o número mais elevado de conflitos no campo dos últimos cinco anos e aponta como se agrava a ofensiva contra os direitos dos povos indígenas.
Segundo informações do Cimi, os ataques mais comuns em terras indígenas são invasões; exploração ilegal de madeira e desmatamento; garimpo e exploração mineral; e apropriação por fazendas agropecuárias.
Demarcação de terras
Dados do Cimi mostram que o assunto foi perdendo força ao longo do tempo. Desde os mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), entre 1995 e 2002, o número de demarcações só caiu (veja abaixo).
- José Sarney (1985 a 1990) – 67
- Fernando Collor (1991 a 1992) – 121
- Itamar Franco (1992 a 1994) – 18
- Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002) – 145
- Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) – 79
- Dilma Rousseff (2011 a 2016) – 21
- Michel Temer (2016 a 2018) – zero
- Jair Bolsonaro (desde 2019) – zero
Das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência do Estado para a finalização do seu processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se elegeu com o discurso contra a demarcação, e tem cumprido a promessa. “Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena. Ponto final”, disse, em dezembro de 2018, já eleito. Na ditadura militar (1964-1985), terras indígenas também não foram reconhecidas.
Versão oficial
Em nota, a Funai informou que acompanha o caso. “A Funai presta apoio às forças de segurança no local e mantém diálogo permanente com a comunidade. Cumpre ressaltar que o órgão vem mantendo equipes de forma ininterrupta dentro da Terra Indígena, por meio de suas Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes)”, informa, em nota.
O texto ainda destaca que a autarquia possui duas bases localizadas em pontos estratégicos da Terra Indígena Yanomami, que promovem ações contínuas e permanentes de vigilância, fiscalização e monitoramento territorial, “a fim de combater ilícitos na região e impedir a entrada de não indígenas nas aldeias”.