Feminicídios não constam em dados oficiais do Ministério da Justiça
Para a ativista Maria da Penha, cujo nome foi dado à lei que tipifica o crime, esta é uma forma de governo ignorar violência contra mulheres
atualizado
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A plataforma digital com dados sobre crimes no Brasil, lançada nessa sexta-feira (15/3) pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, não oferece informações sobre o crime de feminicídio no país, a forma mais grave de violência contra mulheres. A ferramenta, ancorada no site da pasta, foi apresentada pelo ministro Sergio Moro (foto em destaque) como uma forma de o governo obter dados oficiais que possam nortear o desenvolvimento de políticas de segurança pública mais eficazes contra o crime.
De acordo com a assessoria do Ministério da Justiça, o crime de feminicídio não consta na plataforma digital devido à metodologia escolhida como base para os registros.
O sistema é alimentado com dados registrados em boletins de ocorrência das polícias de todas as unidades da Federação. Como a constatação de feminicídio requer uma investigação que comprove a relação de gênero, ou seja, que a motivação esteja associada à condição de mulher da vítima, esta qualificação não é captada pela plataforma recém-lançada.
“Eles nos ignoram”
Para Maria da Penha Maia Fernandes (foto abaixo), cujo nome batizou a lei que tipifica e determina punições para a violência de gênero, esta é mais uma forma de desconsiderar as mulheres nas políticas a serem desenvolvidas pelo governo federal.
“Eles nos ignoraram”, disse a ativista em entrevista ao Metrópoles, logo após o lançamento da nova plataforma da União. “Somos mais da metade da população brasileira e, com isso, o governo demonstra que quer mesmo ignorar a violência sofrida pelas mulheres. A violência que sofremos não fará parte dos dados oficiais”, reclamou.
“Se os crimes contra a mulher não constarem nas estatísticas oficiais, estaremos de fora também das políticas públicas?”, questionou Maria da Penha. “Ainda bem que temos a imprensa, que está batendo de frente em relação a esse tipo de crime”, observou.
Legislação
Desde 2016, a Lei Maria da Penha endureceu as penas para a violência contra a mulher no país. Promulgada em 2006, ela possibilita que agressores de mulheres em âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada.
Os acusados também não podem mais ser punidos com penas alternativas. A norma aumenta ainda o tempo máximo de detenção previsto, de 1 para 3 anos, e determina medidas como a remoção do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da vítima.
Às vésperas do Dia da Mulher de 2014, a Câmara dos Deputados alterou o Código Penal para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio: quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. O texto tornou o crime hediondo e endureceu as punições previstas. A sentença aumentou de 12 para 30 anos de cadeia, quando o caso envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher da vítima.
A chamada Lei do Feminicídio, que vigora no país desde 2015, considera ainda agravantes situações como o assassinato de mulheres durante a gestão ou nos três meses posteriores ao parto e quando envolve menores de 14 anos, maiores de 60 ou pessoas com deficiência. Também é agravante o fato de o homicídio ocorrer na presença de descendente (filhos e netos, por exemplos) ou ascendentes (como pais e avós) da vítima.
Preocupação
Ao conceder entrevista coletiva no lançamento da nova plataforma federal, o próprio secretário Nacional de Segurança Pública, Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, se mostrou preocupado com a questão.
“Temos um grande problema de feminicídio. A imprensa noticia”, disse. “Nossa preocupação é ampliar as patrulhas à Lei Maria da Penha”, destacou o secretário, que se declarou admirador da ativista Maria da Penha Maia Fernandes e do trabalho que ela desenvolve.
“Eu sou um amigo particular da dona Maria da Penha, sou conterrâneo dela, fã do trabalho que ela faz. Então, acho que essa área do feminicídio nos preocupa bastante, além dos três eixos que o ministro [Sergio Moro] sempre fala: o combate ao crime organizado, à corrupção e aos violentos”, declarou o secretário.
Incidência
A elevada incidência de assassinatos de mulheres no Brasil, desde o início deste ano, foi motivo de preocupação externada até por entidades internacionais. Com mais de 120 mulheres assassinadas no mês passado, o país foi alvo de uma nota da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Para a comissão, as notícias exigem do Estado a implementação de estratégias abrangentes de prevenção e de reparação integral às vítimas, além de investigações.
O Mapa da Violência de 2015, publicado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), já revelava que cerca de 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Segundo o estudo, 50,3% das mortes violentas são cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros.
De acordo com o relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 2017 foram registrados 2.795 feminicídios na América Latina. Em termos absolutos, o Brasil liderou a lista, com 1.133 vítimas confirmadas, mais de 40% do total.
Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país. Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.