Famílias lutam por remédio indispensável para transplante de medula óssea
Único laboratório que distribui o remédio no Brasil anunciou fim da produção e só tem estoque até junho de 2021. Pacientes estão preocupados
atualizado
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A pequena Nicolly Milarindo Nunes, de apenas 6 anos, está há dois em uma luta constante pela vida. A criança foi diagnosticada com anemia falciforme assim que nasceu, e faz tratamento para a doença desde os 15 dias de vida.
Os primeiros 4 anos de Nicolly não foram marcados por muitos problemas. Depois disso, porém, as complicações causadas pela doença começaram a aparecer. Dores no corpo, crises alérgicas, um histórico de internações e o alto risco de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) fazem parte da rotina da criança.
Segundo os médicos que a acompanham, a única solução para curar definitivamente a anemia falciforme é um transplante de medula óssea (TMO). As chances de realizar o procedimento, no entanto, estão comprometidas: em novembro de 2020, o único laboratório no Brasil que oferece o Bussulfano — medicamento essencial para fazer o transplante — anunciou que a distribuição da substância deve ser interrompida após junho de 2021.
Com o início do ano, pacientes e familiares de pessoas que precisam de um transplante estão preocupados como será o procedimento após o mês de junho.
O médico Fernando Barroso, membro da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO), explica que o Bussulfano é indicado para pacientes que vão receber a medula de um terceiro – o doador pode ser integrante da família ou não. O remédio atua na destruição das células doentes e na preparação do corpo para ganhar as novas células.
A anemia falciforme não é a única doença curada por um TMO. Alguns tipos de leucemia, displasia, aplasia de medula e outros problemas hematológicos só são solucionados com o procedimento. Sem o remédio, todos os transplantes ficam impossibilitados de acontecer.
“Uma semana sem Bussulfano é uma semana sem transplante. É uma corrida contra o tempo. Isso compromete a chance da cura do indivíduo”, explica Fernando.
Segundo o médico, no Brasil, não há um fármaco que substitua o Bussulfano. Por isso, é grande a mobilização de entidades que cuidam de doenças hematológicas, pacientes que estão na fila para um transplante e pessoas que já são transplantadas.
De acordo com o Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome), do Instituto Nacional do Câncer (Inca), em média 850 pessoas estão em busca de um doador de medula não aparentado no Brasil. O Redome tem 5.265.919 pessoas na lista de doadores cadastrados.
Em 2020, ano de pandemia, foram realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) 253 transplantes de medula óssea de doador não aparentado. O número é 38,4% menor que o de 2019, quando o SUS realizou 411 transplantes de medula com doador não aparentado. Em 2018, 380 pessoas tinham feito o procedimento. As informações são do Ministério da Saúde (MS).
Crise na distribuição
Questionada pela reportagem, a Pierre Fabre, organização francesa responsável pela distribuição do medicamento no Brasil, informou que a licença do remédio pertence ao laboratório japonês Ostuka. A empresa alega que o possível desabastecimento surgiu de uma “questão operacional”, e que o encerramento da produção já foi autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A organização afirma que tem estoque de Bussulfano até junho de 2021 e que busca, com a Ostuka, uma nova opção de fornecimento para o Brasil. “O paciente é o centro do nosso propósito”, defende a empresa. Segundo o laboratório, uma reunião com a Anvisa foi realizada na sexta-feira (8/1), para tratar do assunto e “avaliar possíveis soluções”.
Medo
Enquanto o futuro sobre a distribuição de Bussulfano no país não é decidido, quem espera para realizar o procedimento sofre com as incertezas. Gabriela Milarindo Lisboa tem 29 anos e é estudante. Ela é mãe da pequena Nicolly, que você conheceu no início da reportagem. Para Gabriela, o possível desabastecimento de remédio é o fim de um sonho.
“É como se fossem destruir o nosso sonho, que é curar a nossa filha. A gente fez um esforço tão grande, correu tanto, lutou tanto para chegar na parte principal, que é o transplante”, desabafa.
A luta que Gabriela menciona é, de fato, grande. Ela e o marido vivem no Itapoã, região do Distrito Federal, e desde o nascimento de Nicolly frequentam o Hospital da Criança de Brasília, onde a pequena faz acompanhamento. Aos 4 anos, a menina começou a ter alterações nos exames, que passaram a mostrar altos riscos de AVC. A solução mais eficaz, segundo os médicos, é o transplante de medula. No entanto, o doador precisa ser um irmão.
“Como ela é filha única e é um problema hereditário, eu e o pai dela temos um traço da doença. Nós teríamos que gerar um bebê compatível com ela. Somente através de uma fertilização in vitro nós conseguiríamos esse bebê”, explica a mãe.
Depois dessa notícia, a família começou uma nova luta: arrecadar dinheiro para realizar a fertilização in vitro, um procedimento caro. “Nós não tínhamos condições de fazer esse tratamento. Reunimos toda a nossa família, amigos. Fizemos rifas, vaquinhas e bingos para conseguir o valor.”
Com muito esforço, Gabriela e o marido conseguiram arrecadar a quantia de R$ 55 mil para fazer a fertilização. O procedimento deu certo e, agora, ela está grávida de 16 semanas, esperando uma menina. Os exames mostram que o bebê já é compatível com a irmã mais velha, Nicolly.
O nascimento está previsto para setembro deste ano e o transplante, que será feito em São Paulo, deve ser realizado em janeiro de 2022. “Após o nascimento vai ser coletado o material, que é o sangue do cordão umbilical, e por meio dele será feito o transplante da Nicolly”, explica.
A crise na distribuição do Bussulfano assusta Gabriela que, depois de anos de esforço, teme não conseguir realizar o procedimento médico da filha. “Depois que eu vi essas reportagens sobre o medicamento, fiquei superpreocupada. Sem o remédio aqui no Brasil, nós, uma família de classe média, de classe baixa, não vamos conseguir sair daqui de Brasília para fazer no exterior, em outro país. Fica bem mais complicado”, lamenta.
Mobilização
Não é apenas a família de Gabriela que luta pela manutenção do Bussulfano no Brasil. Pacientes, pessoas transplantadas, doadores de medula e apoiadores da causa criaram uma petição on-line para reivindicar uma solução para o problema. Até a última quinta-feira (7/1), o documento havia sido assinado por 180 mil pessoas.
A mobilização também chegou até a Federação Nacional de Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafel). Elvis Silva Magalhães tem 54 anos e é coordenador científico da federação. Ele foi a primeira pessoa com doença falciforme a receber um TMO no Brasil e garante: “O transplante de medula óssea salva vidas”.
Antes de realizar o procedimento, em 2005, Elvis viveu 38 anos com as complicações da doença falciforme. “Tinha muita crise de dor, úlcera, olhos amarelados. Tem gente que tem menos, mas a grande maioria tem muita complicação. Nas crises de dores, muitos pacientes têm que tomar morfina”, afirma o coordenador científico.
Depois de anos procurando um doador compatível, Elvis, que vive em Brasília, descobriu que o irmão era apto a fazer a doação. A vida dele mudou quando, em regime de pesquisa, recebeu um transplante de medula, em Ribeirão Preto. O procedimento foi realizado por uma equipe de médicos pesquisadores.
Após o transplante, ele decidiu ajudar outras pessoas com doença falciforme que lutam pela cura. Em 2013, ele lançou um livro contando a própria trajetória, sob o título de Quatro décadas de lua minguante. Elvis também passou a integrar a equipe da Associação Brasiliense de Pessoas com Doença Falciforme e a Fenafel.
Depois de diversas mobilizações, o grupo conseguiu a autorização do Ministério da Saúde para realizar TMO em pessoas com a doença. O procedimento foi autorizado pela Portaria nº 1.321, do SUS, em 2015.
Agora, a luta de Elvis é para que o Bussulfano não deixe de ser oferecido aos hospitais brasileiros. Ele faz um apelo para que os órgãos públicos e as autoridades de saúde olhem com mais atenção para o caso e, principalmente, para a ciência no Brasil que, na opinião de Elvis, ajuda a salvar vidas.
“O transplante de medula óssea salva vidas e a gente precisa que os gestores, a Anvisa, o Ministério da Saúde e quem lida com as pesquisas olhem de uma forma mais atenta, que tenham mais responsabilidade com as pessoas e com a ciência”, defende.
“Desde 2019 a gente tem sofrido com cortes de verbas em pesquisas, corte de verba no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A gente que tem doença crônica e depende da pesquisa para que as coisas melhorem precisa disso. Faltando seis meses para suspender a medicação, a Anvisa sequer se manifestou. Isso é frustrante, desanimador”, continua Elvis.
Outra crítica em relação ao problema é a falta de agilidade na busca de uma solução. O médico Fernando Barroso, da SBTMO, defende que as autoridades de saúde precisam encontrar uma medida o mais rápido possível. Barroso também critica a legislação da Anvisa, que permite às empresas tirarem o registro de medicamentos no país sem interrupção por parte da agência.
“O Brasil tem uma lei muito frágil, porque ela permite que o indivíduo registre o remédio e tenha a autonomia de tirar [o registro]. O que a gente gostaria é que houvesse uma sensibilização dos políticos para que isso não fosse permitido no caso de drogas essenciais à vida. É uma questão de risco, qualquer um de nós pode precisar de um transplante”, defende.
O que diz a Anvisa
Questionada pela reportagem, a Anvisa informou que “não possui instrumento legal que impeça os laboratórios farmacêuticos de retirarem seus medicamentos do mercado”. No entanto, a agência exige que as empresas gerem um alerta sobre a descontinuação da produção do remédio com ao menos 180 dias de antecedência, “devendo assegurar o fornecimento normal do produto durante esse período”.
“Nos casos de descontinuação não programada de fabricação ou importação de medicamentos decorrente de fato imprevisto, a comunicação à Anvisa deverá ocorrer no prazo máximo de 72 h da ciência do problema. O desrespeito à norma sujeita os infratores às penalidades previstas na Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977” explicou a agência, em nota.
Além disso, a Anvisa informou que, em caso de indisponibilidade de um medicamento importante, é possível utilizar o instrumento de importação excepcional, que deve ser solicitado à agência. Segundo a nota, a Pierre Fabre chegou a fazer o pedido, que foi autorizado pela Anvisa. No entanto, “por questões comerciais” do laboratório, a transação não foi possível. A agência não informou se tenta outra solução para o problema em questão.
O que diz o Ministério da Saúde
Sobre a distribuição de Bussulfano e outros medicamentos oncológicos aos hospitais do Brasil, o Ministério da Saúde informa que a aquisição é feita por cada instituição credenciada ao SUS, por meio de recursos repassados pela pasta aos estados e municípios.
“É importante esclarecer que o Ministério e as Secretarias de Saúde não padronizam nem fornecem medicamentos oncológicos diretamente aos hospitais ou usuários do SUS, com exceção dos que são de compra centralizada pela pasta (Imatinibe, Dasatinibe, Nilotinibe, Trastuzumabe, Rituximabe e Pertuzumabe)”, explicou o ministério.
Sobre a interrupção da distribuição do Bussulfano pela empresa Pierre Fabre, a Saúde informa que “não foi notificada da decisão do laboratório em interromper a distribuição do medicamento”.