Família de brasiliense morta após bariátrica acusa cirurgião de erro médico
Vanessa Rodrigues, 29 anos, pesava 77kg e tinha 1,65m, sem comorbidades, e não atendia a critérios legais para fazer a operação
atualizado
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Após tentar dietas, exercícios físicos e diversos procedimentos para atingir o peso que considerava ideal, a bancária Vanessa Rodrigues, 29 anos, apesar de não ser obesa, procurou por um cirurgião gastroenterologista. Escolheu por indicação de uma amiga o médico referência em cirurgia bariátrica em Brasília Rafael Galvão para conversar sobre essa possibilidade, em 4 de dezembro de 2018. Saiu do consultório com pedidos de exame e decidida a realizar o procedimento.
Em 29 de janeiro de 2019, em uma segunda consulta, com os resultados requisitados em mãos, o médico teria dito: “Nem gordura no fígado você tem, mas eu vou arriscar o meu CRM (registro profissional) para você ficar feliz e realizada com o seu corpo”.
A afirmação atribuída ao cirurgião consta em processo judicial na Vara Cível de Brasília movido pela família de Vanessa contra o profissional, que acusa de ter sido negligente, e sua equipe, além dos dois hospitais particulares envolvidos.
Em 15 de abril de 2019, Vanessa Rodrigues fez a cirurgia, em um hospital particular de Planaltina de Goiás, após pagar R$ 18 mil a Rafael Galvão e sua equipe. Ela tinha plano de saúde, mas, ainda de acordo com a ação na Justiça, o profissional a aconselhou a “nem tentar” aprovação, por estar fora dos critérios para a operação.
Três dias após a cirurgia, em 18 de abril de 2019, Vanessa morreu devido a complicações. Com base em laudos anexados ao processo, advogados alegam que houve “trauma aórtico, criando um pseudo aneurisma na artéria aorta, causado no momento da introdução de uma cânula, que teria provocado também grande perfuração no órgão interno mesentério.”
Procurado pela reportagem, o médico Rafael Galvão comentou o caso em poucas palavras. “Toda assistência foi prestada pela equipe, porém infelizmente não houve êxito”, resumiu-se a dizer.
O escritório Abreu&Abreu Advogados, que assumiu a defesa de Rafael, não acrescentou muito mais. “Tudo está sendo esclarecido no processo judicial movido pela família”, diz comunicado ao Metrópoles.
O método usado foi o bypass gástrico por laparoscopia, no qual o estômago é diminuído, desviando o trânsito alimentar. A técnica teria sido indicada pelo doutor por oferecer “resultados mais rápidos e definitivos”. O suposto erro médico gerou uma hemorragia interna que, alegam os advogados, não foi constatada em um primeiro momento.
Logo ao acordar após a anestesia, Vanessa reclamou de dor na perna esquerda. “A paciente já apresentava palidez, taquicardia e pressão arterial baixa evoluindo rapidamente para choque hemorrágico, foram administrados na paciente dois concentrados de hemácias e rapidamente se decidiu realizar a revisão da cirurgia, onde foram introduzidos os trocateres (“cânulas”) novamente e se constatou o sangramento”, traz o processo.
Vanessa precisou ser transportada do hospital em Planaltina de Goiás para um hospital na Asa Sul por falta de estrutura adequada para socorrê-la.
O irmão de Vanessa, Bruno Rodrigues, 33 anos, acompanhou a remoção e relata que o aparelho de oxigênio da ambulância não funcionou e a paciente teve que ser transferida com ventilação mecânica (UMBU) por cerca de 63 Km. “Também não havia UTI ou cirurgião vascular no hospital, o que gerou uma demora muito grande nesse socorro, que, segundo os especialistas ouvidos, fez muita diferença no salvamento da minha irmã”, relata Bruno.
IMC
Antes de indicar a cirurgia bariátrica ao paciente, o médico avalia quesitos como o Índice de Massa Corporal (IMC), a idade, as doenças associadas à obesidade que afetam o paciente e o tempo em que ele sofre com essas doenças, como informa a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM).
Para ser um candidato à operação, o paciente precisa estar com IMC estável há pelo menos dois anos e ter comorbidades em faixa de risco, além de ter realizado tratamentos clínicos prévios sem sucesso .
Pacientes com IMC entre 30 e 35 kg/m² podem passar pela operação, desde que tenham doenças relacionadas à obesidade, classificadas como “grave” por um especialista da área, além da constatação de um endocrinologista de que o tratamento clínico não é eficaz.
Já os obesos que têm IMC entre 35 e 40 kg/m² podem operar se tiverem alguma das doenças relacionadas, como diabetes tipo 2 e hipertensão. Aqueles que têm IMC acima de 40 kg/m² podem operar, independente de doenças associadas.
Vanessa pesava 77,300kg, media 1,65m e o seu IMC era 28,39 kg/m², sem nenhuma doença prévia, segundo mostram exames anexados ao processo aberto pela família contra o cirurgião Rafael Galvão.
Perfil atlético
A família acusa o médico de ter cometido uma sequência de falhas éticas. A primeira delas teria sido aceitar fazer a operação em uma paciente que não era obesa e tinha boa saúde, além de supostamente aconselhá-la a fazer o procedimento por questões estéticas.
“A Vanessa era atlética, pedalava de Brasília até Pirenópolis, fazia treinamento funcional. Ela tinha um biotipo que favorecia a concentração de um pouco de gordura na barriga e nos braços, por exemplo, e não conseguia aceitar o próprio corpo, mas nunca foi obesa”, descreve Bruno.
Ele se refere ao período de três dias entre a operação e a morte da irmã como momentos de grande aflição. “Houve erro do primeiro ao último momento. Somente após a Vanessa entrar em choque hemorrágico pela segunda vez e seu estado geral ter se agravado consideravelmente, chegando a pressão arterial a quase zero, foi que a equipe médica resolveu fazer a cirurgia de laparotomia exploradora a fim de investigar o que estava acontecendo”, descreve.
Caso sobrevivesse, Vanessa teria indicação comprovada por exames para amputar totalmente os membros inferiores e talvez os superiores. Também corria o risco de ter sequelas neurológicas, como alegam os familiares com base no prontuário. No processo, aberto em 15 de janeiro de 2021, e que ainda encontra-se em fase inicial e citação das partes, os advogados da família pedem indenização por danos morais no valor de R$ 600 mil e ressarcimento dos genitores com base no salário que Vanessa, que ajudava no sustento da casa, deixou de ganhar.
O cálculo leva em consideração a expectativa de vida da vítima segundo o IBGE (76,3 anos) e sua remuneração com todos os adicionais e gratificações, além do 13º salário, férias e acréscimo de 1/3 sobre as férias anuais e depósitos de FGTS e Participação nos Lucros ou Resultados. O valor total é de quase R$ 8 milhões.
“Levamos mais de um ano para montar o processo. Fizemos um levantamento de dados, consultamos especialistas, não queríamos acusar ninguém injustamente. Os danos foram enormes para a minha família. Até hoje a minha mãe não se recuperou e tentou tirar a própria vida. Minha irmã era a melhor amiga dela”, destaca Bruno.
Eles também pedem a cassação do registro de Rafael Galvão junto ao Conselho Regional e Federal de Medicina. “Caso este não seja o entendimento de Vossa Excelência, requer que seja estipulada multa mínima de R$ 100 mil, a ser revertida para alguma entidade beneficente do Distrito Federal ou ONGs que ajudam animais”
“Nossa intenção é fazer com que isso não se repita, que ele pare de operar pessoas que não têm indicação para bariátrica. É uma cirurgia séria, uma medida extrema, e não um procedimento estético”, alerta Bruno.
Sonhos interrompidos
Nascida em Taguatinga (DF), Vanessa Rodrigues era concursada da Caixa Econômica e ganhava mais de R$ 16 mil por mês. Querida pelos clientes, ela acabara de ser promovida quando faleceu. A bancária vivia entre a Asa Sul, onde trabalhava, e a casa dos pais, em Valparaíso (GO).
“Vanessa era muito focada, quando queria algo ia até o fim. Decidiu que seria servidora pública, porque queria estabilidade, estudou e começou uma carreira super bem sucedida. Ela amava muito o trabalho dela”, relata a amiga de infância de Vanessa Ludmila Dias, 31 anos.
O maior sonho de Nessinha, como era chamada em casa, era conhecer o mundo. Suas prioridades nas horas de folga eram pedalar pela cidade, estar com a família, cuidar dos seus dois cachorros e viajar várias vezes por ano.
Em seu Instagram, a foto mais recente é um retrato de sua última aventura, na Tailândia, em novembro de 2018 (a imagem aparece em destaque nesta reportagem). Ela iria para a Disney com as amigas Ludmila e Joana Tassiana, mas adiou a viagem por causa da cirurgia.
“Nós ficamos preocupadas, mas ela estava muito resolvida, muito confiante no médico e nas escolhas dela, não havia nada que pudéssemos dizer para evitar aquilo. Um cardiologista tentou dissuadi-la, mas ela falava com muita confiança sobre o Rafael”, lembra Joana Tassiana.
Padrão de beleza
Em uma viagem a Nova York, Vanessa posou para foto entre as letras vermelhas de uma instalação interativa no museu Madame Tussauds, que imitava a capa de uma revista. Posicionou seu corpo entre as chamadas que prometiam revelar segredos de beleza e ensinar mulheres a serem mais como a modelo Heidi Klum.
“Make it work (Faça funcionar)”, dizia uma das frases. Em busca desse padrão de beleza, Vanessa perdeu a vida. Ela submeteu-se à cirurgia bariátrica por razões estéticas, em uma tentativa de se sentir aceita socialmente, completa e bonita, como relatam as amigas.
“Ela nunca sonhou em casar e ter filhos, por exemplo, mas queria dividir os bons momentos da vida com alguém e atribuía qualquer fracasso no amor à sua aparência. Ela queria usar roupas como saias e shorts sem se sentir mal”, lembra Joana.
“Vanessa era forte, inteligente, bonita, independente e feliz. Mas a autoestima era um ponto fraco. Ela se via sempre como a menos desejável entre as amigas”, acrescenta Ludmila.
Acompanhamento
Antes de submeter-se a uma cirurgia bariátrica, é preciso passar por avaliação multidisciplinar que envolve profissionais como nutricionistas e psicólogos. De acordo com a família de Vanessa, ela não foi instruída a seguir esse protocolo.
A psicóloga Vanessa Branco, doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG) e pesquisadora sobre os impactos da imposição de padrões estéticos na vida das mulheres, afirma que o acompanhamento é indispensável.
“Corpo e mente são conectados, uma coisa só. Em alguns casos, mesmo com a cirurgia, que é uma mutilação, é como se a paciente continuasse com um membro fantasma ali. Eu não digo à paciente se ela deve ou não fazer a operação, essa decisão é construída”, descreve.
A especialista explica as consequências da busca por um padrão de beleza irreal e fabricado. “Quando vemos modelos brancas, magras, com silicone e várias intervenções cirúrgicas, além da edição de imagens nas redes sociais, parece que estamos sempre em defasagem”, descreve.
Isso faz com que mulheres como Vanessa Rodrigues, que não são obesas, tenham uma distorção da própria imagem. “A gordofobia é uma violência tão grande que faz com que mulheres que estão no meio do caminho fiquem em desespero para não chegar do outro lado. Ao cruzar a linha de ser uma pessoa gorda elas sabem o que vão encontrar.”
A psicóloga chama a atenção para a necessidade de repensar esses conceitos. “A sociedade vende que você tem o corpo que merece, pelo qual se esforçou, e isso é uma ilusão. O corpo é resultado de muitas coisas: genética, ambiente, acesso à alimentação, movimentação corporal”, define Branco.
A desigualdade de gênero, por exemplo, também é um fator a ser levado em consideração. “Mulheres que vivem jornadas duplas de trabalho, sobrecarregadas, vão fazer exercício em que horário? É como se a gente tivesse que dar conta de tudo o tempo todo. O impacto psicológico vem: elas se sentem ansiosas, têm transtorno de imagem e alimentar, depressão, tudo em função da pressão estética.”
Vanessa Branco lembra que o conceito de beleza é relativo, localizado historicamente e socialmente. “Há essa tentativa, desde os anos 20, com o boom de Hollywood e das academias de ginástica, de massificar esse padrão de atriz hollywoodiana para o mundo: branca, loura, rica com corpo padrão.”
Branco descreve que, dessa maneira, mulheres aprendem a associar magreza, felicidade e saúde. “Essa tríade parece ser inseparável e isso causa muito prejuízo para a nossa saúde mental. No livro “O mito da beleza”, a autora Naomi Wolf explica que essa perseguição estética é um sedativo político na vida das mulheres, fazendo com que elas não tenham força para lutar por outras questões”, diz.
Essa imposição da aparência tem reflexos na vida da mulher como um todo, afetando inclusive sua vida profissional e amorosa. “É comprovado que mulheres têm que estudar mais para ocupar cargos piores. A beleza acaba sendo mais um fator de qualificação para a mulher. Ela tem que estar maquiada, magra, na moda.. Isso vai sendo associado a uma ideia de sucesso, felicidade e beleza.”
Sobre as mulheres gordas recai o peso de serem associadas a características morais negativas, de serem tratadas como pessoas abjetas, que não merecem viver muitas vezes
Vanessa Branco
O amor romântico, como parte dessa felicidade, muitas vezes fica condicionado como algo merecido somente pelos corpos magros. “Dentro desse esquema, a mulher só terá felicidade no amor quando for magra. Sabemos que isso não garante nada. O produto que a gente mais compra é o que menos nos entregam. Não tem pote de ouro no fim do arco-íris.“
Cresce o número de bariátricas no Brasil
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) divulgou em 27 de outubro de 2020 os últimos dados sobre cirurgia no Brasil. Em 2019 foram realizados 68.530 procedimentos, – 7% a mais do que em 2018, quando ocorreram 63.969 cirurgias.
O total de cirurgias realizadas em 2019 representa 0,5% da população com obesidade grave, que atinge cerca de 13,6 milhões de pessoas – com indicação de tratamento cirúrgico.
Na saúde pública, realizaram-se 12.568 cirurgias bariátricas no mesmo período. Um crescimento de 10,2% se comparado a 2018. Na saúde suplementar, por meio de planos de saúde, ocorreram 52.699 cirurgias bariátricas, crescimento de 6,4% se com relação ao ano anterior. Já entre as cirurgias particulares, pagas integralmente pelos pacientes, o número foi de 3.263 procedimentos no Brasil.
Em 2011, no Brasil, houve 34.629 bariátricas, já em 2019, o total chegou a 68.530, quase o dobro, em um intervalo de 8 anos.
Já a cirurgia metabólica – tratamento regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que ficou conhecido ao ser realizado pelo jogador Romário – está em consulta pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para obter a cobertura pelos planos de saúde. O procedimento é indicado para o tratamento de diabetes tipo 2, sem controle com medicamentos e comprovadamente por mais de dois anos, ainda segundo a SBCBM.
O Metrópoles entrou em contato com o Conselho Federal de Medicina (CFM) para falar sobre o caso, mas a entidade respondeu que, por se tratar de uma instância judicante, o CFM não comenta casos concretos. O Conselho Regional de Medicina (CRM) não respondeu às perguntas enviadas. Já a SBCBM respondeu com os dados acima, mas não se manifestou sobre o caso.
Em nota, o escritório Abreu&Abreu Advogados ressalta que há a prestação de assistência de suporte e conforto ante o ocorrido e que está contribuindo para os esclarecimentos dos fatos. Veja:
“Vimos manifestar que o procedimento técnico-cirúrgico realizado para tratamento de refluxo gastroesofágico grave na paciente Vanessa Rodrigues, iniciado com série de consultas médicas e paramédicas sequenciais, com exames, foram empregadas no caso.
Temos a convicção de que o resultado com desfecho adverso não decorreu de suposto ‘erro médico’ de Rafael e a equipe de cirurgiões gastroenterologicos que intervieram no presente caso, como será devidamente esclarecido e provado no processo judicial movido pelos familiares.
Importante esclarecer que em todo o procedimento intervencionista à paciente contou com a contínua e ininterrupta assistência de profissionais médicos especialistas da equipe, aliada com o tratamento médico realizado com condução de outros profissionais médicos especialistas em cirurgia vascular, terapia intensiva, cirurgia gastroenterologia, hemodinâmica e suporte avançado de cuidados intensivos, tendo sido submetida a procedimentos com intervenção e exames médicos de alta complexidade, que foram tempestivamente empregados no caso concreto.
Lamentamos pela dor e sofrimento da perda de ente querido, onde necessário expor que todo o tempo prestamos assistência de suporte e conforto ante o ocorrido e estamos sempre contribuindo para os esclarecimentos dos fatos”.