Faltam insumos para a Ecmo, máquina que salva pacientes de Covid
Aparelho funciona como coração e pulmão artificiais, mas hospitais têm dificuldade para comprar produtos necessários para seu uso
atualizado
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Um aparelho de alta complexidade que funciona como coração e pulmão artificiais ao oxigenar o sangue do paciente fora do corpo tem sido usado no combate à Covid-19, principalmente em hospitais particulares. A Oxigenação por Membrana Extracorpórea (Ecmo) pode salvar vidas, porém, há 15 dias o material importado necessário para realização dos procedimentos está em falta em todo o Brasil, de acordo com médicos da rede privada. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece a terapia em centros especializados, como Instituto do Coração e Instituto do Câncer.
No DF, o primeiro paciente com Covid-19 salvo com apoio de Ecmo foi registrado em maio de 2020, no Hospital Santa Marta. O cirurgião cardiovascular Helmgton Souza, que atua no centro de saúde, contabiliza que existam entre 250 e 300 aparelhos de Ecmo no Brasil atualmente, na rede particular. De acordo com Souza, o hospital teve somente duas mortes por Covid-19, graças à intervenção.
“A Ecmo é um sistema de suporte ao paciente que está num quadro de insuficiência respiratória grave, que dá tempo para que os antibióticos e outras estratégias façam efeito. Ela não trata a doença, dá auxílio ao paciente”, explica o médico. É tido como uma espécie de “última chance” nos casos mais graves da doença.
De acordo com o cirurgião, o SUS não costuma arcar com essa terapia, que existe há mais de 40 anos, e convênios de saúde questionam a aplicação. “Isso faz com que o país fique atrasado em relação a outros da América Latina, como Chile, Colômbia e Uruguai, que têm um volume de Ecmo proporcional muito maior que o Brasil”, afirma.
Há pouco mais de 15 dias, como relata o cirurgião, o material necessário para realizar o circuito de Ecmo acabou. “Da última vez eram para ter chegado 70, vieram 20 para todo o país. O Brasil não tem estrutura e logística para essa compra, e outros países acabam levando o material. Poderíamos estar salvando muito mais vidas”, diz o médico.
Somente essa semana, no Santa Marta, houve três casos de paciente com Covid-19 e indicação para uso de Ecmo que deixaram de ser assistidos por falta de circuito, um material descartável essencial. O médico responsável pelo setor define a situação como “dramática”. A previsão de chegada do produto é para esta segunda quinzena de março. “É como um sorteio de quem vai ter chance ou não de viver, a depender de quem vai conseguir comprá-lo”, descreve Souza.
Estados Unidos e Europa são os principais fornecedores desse equipamento. Nos protocolos do Ministério da Saúde, a Ecmo consta como opção terapêutica, mas só existe no papel, porque o governo não financia esse dispositivo, como explica o cirurgião.
O preço da terapia varia em cada estado e depende da disponibilidade do produto. “É um custo alto, principalmente por causa de termos poucas pessoas fazendo Ecmo no Brasil. A importação é baixa e cara, se tivesse maior disseminação da tecnologia o custo deveria cair”, avalia Souza.
O Hospital Sírio-Libanês também oferece Ecmo para suporte respiratório e circulatório. A terapia foi aplicada na unidade de Brasília desde a fundação, há cerca de dois anos, em 12 pacientes, a maioria deles com Covid.
“A mortalidade entre os pacientes que usaram foi muito baixa. Eles têm forma mais grave da doença, os riscos são maiores, mas mesmo assim temos tido resultados muito bons”, relata o médico Matheus Mourão, chefe da UTI do Sírio-Libanês em Brasília.
Mourão confirmou a dificuldade para comprar materiais como a membrana e o circuito, que são descartáveis. Segundo ele, a reposição desse estoque tem sido “desafiadora”. No Sírio-Libanês, ainda há estoque disponível. “Conseguimos comprar com um representante de uma marca diferente da que usamos habitualmente.”
O hospital tem 24 leitos de UTI ativos e trabalha com taxa de ocupação em 100%, nos últimos dias. Há lista de espera que varia entre 15 e 20 pessoas, nas últimas semanas.
Mourão já trabalhou em hospitais do SUS e afirma haver uso de Ecmo em centros especializados, mas não em hospitais comuns. “Não é só a questão de disponibilizar recursos materiais, trata-se de uma tecnologia de alta complexidade que envolve recursos humanos, equipes multiprofissionais para fazer de forma correta”, explica.
A Ecmo difere de um ventilador comum, que apenas fornece fluxo de ar aos pulmões. A tecnologia trabalha como um pulmão adicional, dando uma chance àquele paciente de se recuperar. Nesse método, um cateter retira sangue que fica abaixo do coração e o envia para um aparelho oxigenador. O excesso de carbono é retirado e substituído por oxigênio. Em seguida, também via cateter, o sangue retorna oxigenado para o coração do paciente.
Trata-se de uma tecnologia que existe há cerca de 40 anos e, até então, era utilizada principalmente para cirurgias cardíacas, como ponte de safena ou troca de válvula.
Com a pandemia, o interesse pela técnica foi ampliado, e instituições começaram a aplicá-la, porém em alguns centros de saúde não houve treinamento adequado dos profissionais que operam o sistema. “A falta de capacitação das equipes acabou gerando resultados ruins, que queimam a terapia. Em Brasília, temos exemplos de hospitais que não montaram uma boa estrutura e tiveram 100% de mortalidade”, relata o cirurgião Helmgton Souza.
Não há informação pública oficial sobre quantos aparelhos de Ecmo existem no Brasil. O Metrópoles entrou em contato com o Ministério da Saúde e com a Secretaria de Saúde do DF para obter dados, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.
Em agosto de 2020, a Agência Brasil informou que oito pacientes com Covid-19 internados pelo SUS em estado grave, na UTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), receberam Ecmo, e a maioria teve resposta positiva ao tratamento.
A iniciativa foi promovida pelo projeto Qualificação de Dispositivos de Assistência Circulatória no Sistema Único de Saúde (DACs), realizada pelo Hospital Moinhos de Vento em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS).
23 dias ligado à máquina
O “histórico de atleta” do empresário curitibano Kaique Barbanti, 27 anos, não impediu que ele pegasse Covid-19. O contágio com uma forma grave da doença o levou à internação por 62 dias, 23 deles ligado à Ecmo.
Na última quinta-feira (11/3), quando o Brasil registrou um recorde de 2.286 mortes por Covid-19 em 24 horas, Kaique compartilhou sua experiência nas redes sociais, para alertar outras pessoas sobre o risco dessa enfermidade. Motivado pelo colapso dos hospitais, ele tornou públicos detalhes e imagens dos momentos que viveu.
No feed do Instagram, a foto do rapaz inconsciente, acamado, entubado, de fralda e com o corpo inchado destoa do restante do conteúdo postado (a imagem aparece no topo desta reportagem). Kaique é dono de academias e até pouco tempo atrás competia em torneios de fisiculturismo.
Os sintomas começaram em 10 de julho de 2020, em forma de enjoo e dor de barriga. “A doença foi bem traiçoeira comigo. Comecei com uma perda de apetite, depois vômito, diarreia. Achei que tinha comido algo estragado, jamais pensei que poderia ser Covid, até porque eu estava em casa e só saía de máscara”, relata.
Um amigo que havia tido contato com o marido de Kaique testou positivo. O rapaz então decidiu fazer o exame sorológico e o PCR. Dias depois, vieram os resultados: o teste de sangue não detectou o vírus, mas a análise feita por via nasal e oral deu positivo. Em 20 de julho, após ter febre e dores de cabeça fortes, Kaique foi internado com 50% do pulmão afetado pelo vírus. No dia seguinte, teve de ser intubado. “Eu achava que estava praticamente livre da doença quando tudo piorou. A Covid é uma montanha-russa”, relata.
Depois de seis dias entubado, Kaique estava prestes a receber alta da UTI, mas foi diagnosticado com tromboembolia pulmonar. “No dia seguinte, já fui intubado novamente, mas dessa vez não funcionou. Fui para a última chance que os médicos dão: a Ecmo. Nada mais é que um pulmão e um coração artificiais”, descreve.
Ao mostrar as cicatrizes que os procedimentos deixaram no corpo, Kaique explica que foi um processo “extremamente doloroso”. Médicos costumam dar um prazo de 15 dias para o paciente reagir. Kaique só apresentou sinais de melhoras após o vigésimo dia de Ecmo.
“Minha família insistiu em manter a máquina ligada. Era um tratamento particular, que o plano não cobria. Meus pais venderam bens para poder pagar por tudo isso. Muitos queriam estar aqui agora, mas não sobreviveram”, relata.
Kaique, à época, foi considerado um “milagre” pela equipe médica do hospital Marcelino Champagnat, em Curitiba. Era o segundo paciente a sobreviver a esse tipo de intervenção com Covid-19. Depois dos 62 dias de internação, acordou 25 kg mais magro, perdeu a fala, não conseguia se mexer, teve vários sangramentos e cicatrizes. “Foi o momento mais assustador da minha vida. Abri os olhos e era como se faltasse uma parte de mim”, lembra.
Ele teve alta há 6 meses, ainda tem sequelas da doença, como dores neuropáticas, e faz acompanhamento com fisioterapeuta e fonoaudiólogo para recuperar as funções do corpo. “Ganhei uma nova chance de viver. Eu compartilho a minha história para ajudar pessoas que estão desesperadas e também para alertar quem está vivendo como se nada estivesse acontecendo. Eu choro quando vejo vídeos de baladas, de espaços lotados”, afirma.
A Covid não acaba quando a gente sai do hospital. Reaprendi a andar, a comer, com 27 anos me senti como se eu fosse um bebê
Kaique Barbanti
O Hospital Marcelino Champagnat oferece o tratamento de Ecmo desde 2015. A assessoria de imprensa informou que, com o início da pandemia, houve um crescimento “muito expressivo” do uso da alternativa. O tratamento foi realizado em oito pacientes ao longo dos últimos 12 meses, com índice de 50% de sucesso (percentual semelhante ao observado mundialmente). Até então, a média era de um a dois pacientes por ano.
“O caso mais emblemático durante a pandemia foi o do empresário Kaique Barbanti – é o paciente que ficou mais tempo aqui no Paraná e um dos maiores na região Sul. Normalmente, os pacientes que se salvam ficam de sete a 10 dias ligado ao aparelho”, traz a nota.
Por se tratar de uma terapia complexa, para incorporar a Ecmo, o hospital, que já tinha capacidade de intervenção avançada, precisou investir na capacitação de equipes multidisciplinares para operar o equipamento e acompanhar os pacientes.
O médico intensivista e coordenador das UTIs do hospital, Jarbas da Silva Motta Junior, tem participado desses processos e considera esse equipamento como “o último suspiro” do paciente. Ele explica que, dos casos que tratou, o de Kaique foi o mais emblemático, pelo tempo que o paciente demorou a começar a responder ao tratamento.
“Só pude ser salvo porque me tratei com a Ecmo, que está disponível em pouquíssimos hospitais. Era nesse tipo de tratamento que o governo deveria investir”, avalia Kaique.