Especialistas criticam governo por falta de combate ao trabalho escravo no garimpo
De 2017 a 2022, 187 pessoas foram resgatadas de garimpos no país. Especialistas dizem que discurso do novo governo mais atrapalha que ajuda
atualizado
Compartilhar notícia
Minuciosas e corriqueiras, as condições precárias de trabalho nos garimpos brasileiros fazem parte do cotidiano dos funcionários como se fossem “ossos do ofício”, e nada mais. Os problemas, porém, vão desde a falta de saneamento básico e atendimento médico até expediente diário de mais de 14 horas.
Auditores fiscais e pesquisadores que atuam em campo nas lavras de ouro do país relataram ao Metrópoles a dificuldade em identificar novos casos de trabalho análogo ao escravo no setor, apesar dos números crescentes de resgate desses trabalhadores. Por outro lado, eles apontam que a nova posição do governo trata o minerador como “bandido” e dificulta o cuidado com essa população.
De acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, entre 2017 e 2022, o Ministério do Trabalho resgatou 187 pessoas de trabalho escravo em garimpos de ouro do país. O número representa 80% dos casos registrados desde o início da série, em 2008. Para entendê-lo, porém, é necessário avaliar o contexto maior do qual ele faz parte, como explica Luiz Jardim, professor de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
“O garimpo no Brasil vem aumentando substancialmente desde 2016, por causa do aumento do preço do minério no mercado, o aumento da pobreza e do desemprego no país – o que faz com que as pessoas se disponham a situações mais precárias de trabalho -, e, posteriormente, uma queda na máquina pública de fiscalização de atividades ilegais”, detalha Jardim.
O cenário descrito pelo especialista é detalhado em relatório do Instituto Escolhas sobre o percurso do ouro no Brasil. Segundo a organização, a produção do minério nos garimpos observou uma alta de 158% de 2018 a 2021, na gestão de Jair Bolsonaro (PL). O ex-presidente se envolveu em polêmicas sucessivas depois de defender a atividade mineradora em áreas indígenas e de proteção ambiental, alegando que o garimpo era uma demanda ” de outros irmãos índios”.
No início de 2023, a Terra Indígena Yanomami registrou uma crise sanitária generalizada em decorrência da expansão na mineração ilegal nas reservas do povo originário. Lideranças da comunidade alegaram que, por diversas vezes, tentaram acionar a equipe do ex-chefe do Executivo, sem sucesso.
Ausência da nova gestão
Para lidar com o cenário de desmatamento e crise de saúde indígena, porém, auditores fiscais que trabalham no resgate de pessoas avaliam que a nova gestão tem tomado a decisão equivocada de estereotipar todo garimpeiro como criminoso, o que prejudica a solução de outros problemas dentro da lavra.
“No governo passado, todo garimpeiro era microempreender. Agora é bandido. Toda generalização é perigosa”, defende José Weyne, Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
A mesma opinião é compartilhada por um pesquisador de campo do garimpo de ouro no Rio Tapajós, que preferiu não se identificar para assegurar a integridade dos trabalhos de pesquisa.
“O Estado é muito ausente dentro dessas áreas de mineração. O que temos visto é uma ação de repressão, e os garimpeiros se enxergam sendo chamados de ‘vagabundos’. Grande parte deles são nordestinos em vulnerabilidade que, sem oportunidades de emprego na cidade de origem, se submetem a isso”, detalha o pesquisador.
O cientista menciona o momento quando, durante suas pesquisas de campo no estado do Pará, encontrou um funcionário que já tinha pego malária por 10 vezes seguidas na lavra.
“São pessoas que vivem sem acesso à saúde, com educação precária, sem documentação e precisam recorrer, sem saber dos seus direitos, às grandes cidades, quando conseguem. São pessoas que, como muitos, demandam políticas públicas”, enfatiza.
Prejuízo na fiscalização
Ao mesmo tempo, as estruturas de fiscalização do trabalho passaram por atualizações que, na prática, reduziram a capacidade de atuação da frente. Em uma das medidas mais controversas, em 2021, Bolsonaro redirecionou os recursos arrecadados por infrações trabalhistas, antes utilizados na equipagem de órgãos de fiscalização do Estado, para novos fundos do Ministério do Trabalho, como o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
No ano seguinte, em 2022, os dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil mostram uma queda no resgate de garimpeiros em situações análogas à escravidão. Apenas 10 mineradores foram salvos, redução de quase 80% com relação ao ano anterior.
“Na verdade, existem pouquíssimas denúncias de trabalho escravos nos garimpos. Nós sabemos que existem muito mais casos do que esses registrados. Mas a baixa capilaridade do Estado para receber e investigar essas denúncias dentro da Floresta Amazônica, que é onde a maioria dos casos ocorrem, e o prejuízo do trabalho de inteligência dificultam as operações de fiscalização”, afirma Wayne.
“Quebrou o fêmur e continuou trabalhando”
Weyne detalha quando, em uma das operações como fiscal, encontrou uma jovem que trabalhava na cozinha de um garimpo localizado entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga, no Pará. A surpresa do auditor, porém, foi ver a mulher preparar os pratos dos garimpeiros enquanto mancava de uma perna.
“Nós descobrimos que ela tinha caído dentro de uma ribanceira enquanto caminhava pelo garimpo. Ficou o dia inteiro esperando socorro enquanto gritava e só foi encontrada por garimpeiros da lavra no fim do dia. Tinha quebrado o fêmur. A proprietária do garimpo se negou a pagar o transporte e o atendimento médico necessário, e ela teve que se recuperar lá mesmo”, conta.
O auditor relata que o trabalho de resgate é dificultado porque, muitas vezes, o garimpeiro se enxerga como um “parceiro” do proprietário, um empreendedor à parte. Luiz Jardim, da UFF, explica o impacto desse tipo de dinâmica trabalhista.
“A condição de trabalho [do garimpo] se dá em uma lógica de percentagem, não na lógica do trabalho assalariado. Então os garimpeiros, em sua grande maioria, trabalham e recebem porcentagens do ouro extraído como forma de pagamento. Isso faz com que o trabalhador não se sinta numa condição de trabalho escravo, mas como um parceiro daquela atividade, mesmo com as condições precárias de trabalho, moradia e equipamentos”, detalha.
Escravidão por endividamento
Um outro fator, porém, que define o baixo número de denúncias e a propagação das condições precárias nos serviços garimpeiros é o que Jardim nomeia como “escravidão por endividamento”. Nesse esquema do trabalho escravo, a pessoa que parte para o trabalho na mineração precisa pagar todos os gastos que tiver nas lavras, da alimentação ao acesso à internet.
“Esse trabalhador vai se endividando desde a chegada, muitas vezes realizada por transporte aéreo, de modo que a dívida fica maior do que a própria capacidade de pagamento desse funcionário. Chega um momento que fica impossível deixar o garimpo”, explica o professor.
“É comum acontecer de uma máquina quebrar e, enquanto o serviço fica parado por isso, o trabalhador fica sem receber. Às vezes, o proprietário chega a fraudar o processo de pesagem do ouro e repassa uma porcentagem abaixo da combinada para o garimpeiro. Tudo se soma e dificulta a saída dessa lavra”, exemplifica José Wayne.