Facebook é usado para venda ilegal de remédios contra malária
Cloroquina e primaquina são anunciadas na rede social por pessoas físicas. Vendedor informou que medicamentos têm origem na Guiana
atualizado
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A rede social Facebook tem sido usada para vendas ilegais de medicamentos e testes para malária. Em grupos de garimpeiros, perfis de pessoas físicas anunciam a venda de cloroquina e primaquina para o tratamento da doença.
O kit com os remédios chega a ser vendido por R$ 120. A procedência, no entanto, é uma incógnita. O Metrópoles apurou com dois desses vendedores que os remédios têm origem na Guiana, e chegam nos garimpos de Boa Vista (RR) “por meio de um intermediário”. O país faz divisa com Roraima.
Operações da Receita Federal e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) deflagradas ao longo dos últimos anos já apreenderam diversos medicamentos falsificados na fronteira brasileira com a Guiana.
Porém a simples comercialização desses remédios, mesmo se fossem originais, já é considerada uma ilegalidade.
A Lei número 5.991, de 17 de dezembro de 1973, estabelece que o “comércio de drogas, medicamentos e de insumos farmacêuticos é privativo de estabelecimentos definidos”, como drogarias e farmácias, por exemplo.
O advogado constitucionalista Camilo Onoda Caldas, sócio da Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, explica que, dessa maneira, uma pessoa física não pode vender esses medicamentos para outras pessoas. “Os remédios precisam ser adquiridos diretamente desses estabelecimentos autorizados”, ressalta.
“A legislação proíbe justamente para preservar a saúde das pessoas, pois é preciso cumprir uma série de regras sobre armazenamento e aquisição, que garantem que o produto não tenha origem duvidosa”, completa o especialista.
O artigo 273 do Código Penal estabelece pena de 10 a 15 anos para quem vender medicamentos sem a licença da autoridade sanitária competente.
Além disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) notificou o Facebook, em 2019, proibindo a propaganda e comercialização de medicamentos na plataforma.
A Anvisa entende que os medicamentos só podem ser vendidos na internet por farmácias e drogarias fisicamente estabelecidas, ou seja, é preciso que o estabelecimento tenha uma loja física para poder vender online.
“É vedada a oferta de medicamentos na internet em sítio eletrônico que não pertença a farmácias ou drogarias autorizadas e licenciadas pelos órgãos de vigilância sanitária competentes”, diz o parágrafo 2º, do artigo 52, da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) número 44, de 17 de agosto de 2009.
“Manda um Pix”
“Vendo remédio para malária”, anunciou Josias Moura, no último dia 16 de abril, no Facebook, ao postar uma série de fotos dos medicamentos e completar a mensagem com o telefone pessoal dele.
O mesmo rapaz também vende o kit em um grupo de WhatsApp ao qual o Metrópoles teve acesso. Ele pede, no entanto, que as negociações sejam feitas no privado. Veja as imagens compartilhadas pelo anunciante:
O médico infectologista André Bon, do Sirio-Libanês em Brasília, explica que geralmente a malária é tratada com cloroquina e primaquina, mas ressalta que há a possibilidade de ser necessário alterar os medicamentos devido ao tipo da doença e à gravidade do quadro.
“Para toda medicação existe risco. Nenhuma medicação está isenta de efeitos adversos. Geralmente, a gente prescreve a medicação quando existe alguma indicação. Os riscos da cloroquina, por exemplo, já muito bem conhecidos na pandemia, podem resultar em arritmia cardíaca”, afirma.
“Já o risco de uma possível medicação falsa é basicamente não funcionar”, complementa.
Procurado, Josias pediu para a reportagem mandar um Pix para a conta dele. “Aí vou pensar em falar com você”, completou, após ser questionado se toparia conversar e contar sobre a origem dos medicamentos e o processo de comercialização.
Após ser informado que o código de ética do jornalismo não permite pagar por informações e que a reportagem seria publicada, o vendedor disse: “Você é responsável pelos seus atos”.
“Coisa honesta”
O Metrópoles também simulou (mas não concluiu a negociação) a compra dos medicamentos junto a alguns contatos expostos na rede social.
Um dos vendedores é Edson Mota. Durante a abordagem, o Metrópoles afirmou que estaria em Boa Vista na semana seguinte e que precisaria de dois kits dos medicamentos.
Edson disse que não tinha os remédios para vender, mas sabia quem tem. O serviço dele seria, segundo alegou, apenas “conseguir” as pessoas para comprar os medicamentos. O homem também informou que os remédios tinham sido obtidos na rede pública de saúde.
“Quando você chegar em Boa Vista, a gente combina um lugar para se encontrar e aí eu vou conseguir para ti nesse intervalo. Tá bom?!”, disse.
O valor oferecido foi de R$ 120. Questionado se poderia adiantar a entrega dos remédios a uma suposta amiga do comprador, Edson confirmou, mas alertou sobre a ilegalidade da venda.
“Tem que ser uma coisa honesta, uma coisa segura. Sabe que esse remédio aí tem que ter receita, entendeu? Aí você sabe que é remédio da rede pública… entendeu?”, afirmou.
Na tarde desta sexta-feira (23/4), o vendedor foi procurado para se manifestar sobre o assunto.
Edson disse ser churrasqueiro e negou vender os medicamentos. “Um amigo meu é que tinha algumas peças de remédios para malária e pediu para eu anunciar. Mas eu não vendo, nem tenho. Só tinha aqueles, que já consegui vender”, alegou.
Questionado sobre a conversa tida antes com o Metrópoles, o homem disse que a venda de remédios se trata de uma situação comum em Boa Vista, durante a “festa de ouro” – referente a período abundante do garimpo.
Ele seguiu na tese de que apenas intermedeia a venda dos medicamentos, mas disse receber uma “porcentagenzinha” sobre a comercialização.
“Muitas das vezes elas dão o agrado para a gente, me dão uma ‘porcentagenzinha’ pequena. Se eu conseguir uma pessoa que vá para o garimpo, que queira cinco kits, eles me dão R$ 50, me dão R$ 100… depende da grana que eu conseguir para eles”, assinalou.
Ele se recusou, contudo, a fornecer o telefone da pessoa com quem iria arranjar os medicamentos.
Fiscalização
A Anvisa explicou que a fiscalização de produtos sujeitos à vigilância sanitária é uma das ações pós-mercado da agência.
Nesse contexto, a Gerência-Geral de Inspeção e Fiscalização Sanitária (GGFIS) realiza ações de investigação das irregularidades sanitárias relacionadas a produtos e empresas no que tange a medicamentos, insumos farmacêuticos, produtos para saúde, cosméticos, saneantes e alimentos.
“A partir do recebimento de queixas técnicas inicia-se um processo de análise e investigação, considerando o risco sanitário envolvido. Quando uma infração sanitária é confirmada e há identificação de autoria e materialidade, instaura-se processo administrativo sanitário (PAS), conforme preconizado pela Lei nº 6437/1977, tendo com premissas a consistência jurídica do processo e o respeito à ampla defesa e contraditório”, informou.
A pasta destacou, ainda, a importância da manutenção do sigilo durante o processo de investigação, de modo a não prejudicar o andamento.
“São consideradas queixas técnicas notificações de suspeita de irregularidade sanitária, seja por um afastamento dos parâmetros de qualidade de um produto, exigidos no processo de registro da Anvisa, ou por outras práticas ilegais, tais como empresas clandestinas, produtos sem registro, falsificados, venda de medicamentos a empresas sem autorização de funcionamento, entre outras”, ressaltou.
Por fim, a Anvisa acrescentou que o canal adequado para encaminhamento de denúncias é a Ouvidoria (acesse aqui).
Outro lado
Em nota, o Facebook se limitou a dizer que “não permite venda de remédios controlados em grupos, e conta com inteligência artificial e denúncias da comunidade para identificar esses conteúdos”.
Colaborou Luísa Guimarães.