Estados continuam negociando vacinação individual, diz presidente do Conass
“Não dá para ficar de braços cruzados, esperando o que vai acontecer, o que o governo federal vai fazer e não vai fazer”, afirma Carlos Lula
atualizado
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Presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), Carlos Lula tem conversado com governos estaduais, com o governo federal e laboratórios na tentativa de unificar o diálogo sobre a vacinação contra a Covid-19. Na avaliação dele, é possível que a vacinação inicie em todo país ainda em janeiro e termine em 2021 — um calendário bem diferente do apresentado pelo Ministério da Saúde, que inicialmente desejava começar a vacinar em março e concluir o processo em 16 meses.
Após esse rearranjo de diálogo entre estados e o governo federal, foi entregue uma proposta de São Paulo ao Ministério da Saúde, que prometeu liderar o processo. “Hoje, a bola está com o ministério, tomara que eles façam esse gol e não chutem para fora”, disse Carlos Lula, que também é secretário de Saúde do Maranhão, em entrevista exclusiva ao Metrópoles.
De acordo com o secretário, os estados também trabalham com a possibilidade de o governo dar para trás. “Nossa primeira tentativa é sempre o PNI (Plano Nacional de Imunização), mas, se tiver necessidade de fazer um plano B, C, a gente vai fazer. Não dá para ficar de braços cruzados, esperando o que vai acontecer, o que o governo federal vai fazer e não vai fazer”, destaca.
Diferentemente do presidente Jair Bolsonaro, o secretário acredita que haverá vacina para toda população. Ele também diverge do presidente sobre a obrigatoriedade da imunização. “É irrazoável a gente fazer ainda esse tipo de debate. Só tem um sentido, tirar o crédito da vacinação. É uma discussão absurda.”
Leia os principais trechos da entrevista:
Voltamos à marca de mil mortes por dia. Qual o principal receio dos secretários de Saúde? E o que pode ser feito?
A gente está com essa preocupação já há algumas semanas, a gente estava alertando ao Ministério da Saúde, que sobretudo a situação da região Sul era muito dramática, a gente estava chegando muito rapidamente à saturação dos leitos de UTI. A situação do Rio de Janeiro é mais dramática ainda, centenas de pessoas esperando uma vaga de leito de UTI. Do ponto de vista do que pode ser feito, é tentar controlar. A gente sabe a dificuldade, está todo mundo esgotado.
A gente foi muito errático durante a pandemia. Como não houve coordenação nacional, cada estado foi fazendo da sua cabeça. Ora a gente adotou medida que não precisava, antes do tempo, esgotou a sociedade. Agora, neste fim de ano, a gente vai ter que tomar medidas de contenção social, não tem jeito. Ainda que não seja o lockdown, a gente provavelmente vai ter que retroceder algumas medidas de flexibilidade que a gente já tinha adotado, e isso é péssimo, é péssimo porque a sociedade está destroçada pelo que a gente viveu. Eu li o que aconteceu lá em Búzios (RJ) [ teve lockdown decretado e gerou revolta em turistas], vamos ver isso em algumas cidades do país. São poucos os estados que hoje têm controle mais ou menos seguro da situação. A maior parte olha para o horizonte com muito receio do que pode vir a acontecer nas próximas semanas, e é uma pena.
É muito grave a situação, por isso a urgência em iniciar o quanto antes a imunização da sociedade, porque a maior parte dos óbitos está nas pessoas acima de 60 anos. Se conseguir imunizar esse grupo, a gente já diminui bastante o número de óbitos. Por isso a urgência de o quanto antes estabelecer uma data para começar a vacinação no país.
Mas como está a expectativa para uma vacinação nacional?
A semana toda eu tentei permitir o diálogo de novo, que estava quebrado. A gente não pode simplesmente desconsiderar nossa capacidade de produção, seja Fiocruz ou Butantan. A situação hoje concreta é que tem uma proposta de São Paulo nas mãos do ministério, está todo mundo esperando esse anúncio. Em o ministério acatando a proposta de São Paulo, temos condição de iniciar a vacinação ainda em janeiro de forma simultânea. Se não for isso, e a gente permitir que cada um procure sua vacina, vai ser uma guerra. Sempre foi coordenada a vacinação no país, é importante que seja agora também. Hoje, a bola está com o ministério, tomara que eles façam esse gol e não chutem para fora.
Caso o plano de vacinação do governo federal não dê certo, o que acontece se os estados vacinarem por conta própria?
Isso é uma possibilidade. Não há uma obrigação de a gente seguir esse Plano Nacional de Imunização, a gente sempre seguiu isso por princípio do SUS, por ser um caminho natural. Quem tem recurso para comprar vacina é a União. Os estados não têm, não vão dispor de meio bilhão de reais sobrando para comprar vacina para sua população. Eu diria que todos os estados, até São Paulo, têm dificuldade para vacinar a população toda por ausência de recursos. Esse é o pior cenário, de eventualmente o PNI não dar certo, e aí virar uma guerra de todos contra todos. Sei que os estados continuam conversando com os laboratórios, eu acho isso certo. Não acho isso impossível.
No Conselho Nacional de Secretários de Saúde, a gente conversa também via Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) sobre outras vacinas. Nossa primeira tentativa é sempre o PNI, mas, se tiver necessidade de fazer um plano B, C, a gente vai fazer. Não dá para ficar de braços cruzados, esperando o que vai acontecer, o que o governo federal vai fazer e não vai fazer.
O presidente Jair Bolsonaro tem falado que não vai ter vacina para todo mundo. O senhor teme que isso aconteça?
A gente está na expectativa de que tenha vacina sim para todo mundo. Não todos ao mesmo tempo, mas ao longo do tempo. E é importante a gente sair dos grupos mais frágeis para os menos vulneráveis. A Fiocruz também tem capacidade de produção de até um milhão de doses por dia, assim como o Butantan. Com dois milhões de doses por dia produzidos no país, em pouco tempo a gente tem previsão de imunizar todo mundo. 2021 ainda pode ser um horizonte para a gente imunizar toda a população do país, apesar do PNI (Plano Nacional de Imunização) prevendo 16 meses. É possível, e é um desejo da sociedade.
Os estados e municípios protagonizaram muitos embates com o governo federal este ano. Qual a sua avaliação da condução do presidente?
A condução foi errática. A gente não teve condução, não teve coordenação. Infelizmente, se a gente fosse fazer uma avaliação a nota seria bem baixa. Provavelmente, o aluno estaria reprovado. A gente teve três ministros da Saúde, a gente teve o presidente primeiro desmerecendo a doença, criando caso em relação a São Paulo.
O ano foi horroroso. Do ponto de vista do enfrentamento, a gente não teve. Se não fossem os estados e municípios, aí que não teríamos nada. A gente viveu conflito federativo, que eu acredito que vai demorar muito tempo para vermos de novo. A Federação foi destruída, ela é coordenada pela União, e a União simplesmente abriu mão de coordenar esse enfrentamento. Coordenar não é distribuir respirador e crédito. Coordenar é dizer como se deve enfrentar e adotar políticas para esse enfrentamento, mas não se fez isso, infelizmente. De modo que eu diria que é para esquecer; olhar e dizer como não fazer.
Qual tipo de prejuízo esse tipo de postura traz?
A gente conseguiu ter três crises ao mesmo tempo. Uma crise sanitária, que a gente sabia que ia acontecer, tivemos uma crise econômica junto, só que a gente não precisava ter uma crise política. É só lembrar, tivemos três ministros da Saúde, mudou da Educação, mudou da Justiça… tudo no meio da pandemia. Quando a gente junta isso, a gente conseguiu dividir o país ainda mais. É inacreditável. Ao mesmo tempo, a gente desacreditou instituições que eram fortes, desacreditou a medicina, a ciência. A gente passou a apostar em medicamento com cura milagrosa por orientação da principal figura do país, que é o presidente. Agora, desacredita a vacina.
O senhor fala em medidas que foram adotadas quando não precisavam. Que medidas são essas? Foi a quarentena para todo mundo ao mesmo tempo?
A gente não pode cometer o erro de olhar para o passado com conhecimento que a gente tem hoje. Olhando com o conhecimento que a gente tem hoje, seria melhor isso ter sido mais coordenado. Havia estados que não precisavam ter entrado em quarentena de uma vez como a gente fez lá em março, só que não tinha governo. Só lembrar o que o Ministério da Saúde fazia, nesse momento a Presidência brigava, passou três, quatro semanas em uma briga até o [ex-ministro Luiz Henrique] Mandetta cair, para depois o [ex-ministro Nelson] Teich ficar um mês. Nesse tempo aí, a gente não teve ministério. Olhando com os olhos de hoje, talvez a gente não precisasse ter tomado uma medida tão drástica, que não cansasse tanto a sociedade.
A gente ainda desconhece muito, mas em março o desconhecimento era maior. Em março, a medida parecia prudente. A gente não tinha tempo de ficar pensando, não dava. Acho que dava para alguns estados terem sido mais duros e outros mais flexíveis naquele momento, mas isso olhando com os olhos de hoje.
Qual a sua opinião sobre a obrigatoriedade da vacina?
É surreal mais esse debate. É um debate falso, porque todas as vacinas são obrigatórias. A decisão do Supremo (Tribunal Federal) foi bem clara a esse respeito. A vacina é obrigatória, ela não é um direito individual meu. Na verdade, é algo sobre todos. O ordenamento jurídico permite que eu não ligue para a minha vida, ok, eu posso dar um tiro na minha cabeça e morrer. Suicídio não é crime, mas induzir alguém ao suicídio é, porque eu não estou falando da minha vida, mas da vida do outro. Se vacinar não é uma preocupação com a minha vida, é com a vida do outro. Essa decisão da vacinação obrigatória é correta.
Dizer que ela é obrigatória não quer dizer que ela é compulsória. Um policial não vai entrar na sua casa, te prender na cama e te vacinar. Isso não vai acontecer. A obrigatoriedade se dá por meio de coerção indireta. Daqui a pouco você não vai poder fazer voo internacional, você não vai poder entrar em um país, não vai poder pegar um ônibus entre municípios, para tudo vai ser exigida a vacinação. É irrazoável a gente fazer ainda esse tipo de debate. Só tem um sentido, tirar o crédito da vacinação. É uma discussão absurda.
Há pelo menos 100 anos a gente não tem essa discussão. A Revolta da Vacina, a gente tinha um outro país, uma outra perspectiva de ciência, uma outra perspectiva de saúde. O sanitarista era campanhista, lá obrigava, se pegava à força e imunizava as pessoas. Há quanto tempo não tem isso? Quando foi que se teve discussão a esse respeito? Nunca teve. É surreal a gente começar esse tipo de debate totalmente desnecessário, e, mais do que isso, errático.
É um debate falso, ninguém nunca disse que policial ia entrar na sua casa e te obrigar a vacinar, porque isso não acontece. A coerção é indireta, você vai ter restrições na sua vida.
Qual a sua expectativa para 2021?
2021 vai ser melhor, mas as pessoas têm que entender que quando virar o ano não vai acontecer um milagre, ainda mais se estiver todo mundo na praia curtindo o Réveillon. Não dá para curtir do jeito que curtimos os anos anteriores. Tenho pedido muita cautela para população, não é momento de visitar os avós, pessoas idosas. O problema é a pessoa saudável levar a doença para alguém que é frágil.