Entenda o que uma vitória de Biden pode significar para o Brasil
Ex-chanceleres e especialistas entrevistados pelo Metrópoles convergem em colocar meio ambiente e direitos humanos como maiores preocupações
atualizado
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Os efeitos do alinhamento ideológico do presidente Jair Bolsonaro com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, do Partido Republicano, sobre as relações dos norte-americanos com o Brasil têm preocupado até o próprio governo federal, defrontado com a possibilidade da eleição de Joe Biden, do Partido Democrata à Casa Branca.
O atual chanceler Ernesto Araújo afirmou, em sessão no Senado em outubro, que uma vitória de Biden não seria problema para a relação entre os países. Na última semana, contudo, um assessor de campanha e conselheiro para América Latina de Biden publicou nas redes sociais uma mensagem que pode dar o tom do que está por vir:
“Qualquer pessoa, no Brasil ou em qualquer outro lugar, que pensa que pode promover um relacionamento ambicioso com os Estados Unidos enquanto ignora questões importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não tem ouvido Joe Biden durante a campanha”, escreveu Juan González.
Anybody, in Brazil or elsewhere, who thinks they can advance an ambitious relationship with the United States while ignoring important issues like climate change, democracy, and human rights clearly hasn’t been listening to Joe Biden on the campaign trail. https://t.co/SyIGlFMdpx
— Juan S. Gonzalez (@Cartajuanero) October 22, 2020
Ex-chanceleres e especialistas entrevistados pelo Metrópoles convergiram na avaliação de que as áreas de meio ambiente e direitos humanos serão os maiores problemas na relação Brasil-EUA em caso de derrota de Trump. Destacam, contudo, que as relações econômicas não devem sofrer grande impacto.
O professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Ricardo Caldas avalia que o impacto será menor do que se pensa. “Os Estados Unidos são o segundo parceiro comercial do Brasil. E o Brasil é um parceiro político estratégico dos Estados Unidos, embora não seja tão importante economicamente para eles como eles são para nós”, diz Caldas, acrescentando que pode ocorrer um esfriamento inicial, mas logo haverá uma adaptação de ambas as partes.
Meio ambiente e direitos humanos
Ex-chanceler no governo Michel Temer, Aloysio Nunes Ferreira pontua que a pauta ambiental tem muita relevância perante o eleitorado democrata e isso pode interferir na relação com o Brasil.
Em junho, a Comissão de Orçamento e Tributos da Câmara dos Estados Unidos, de maioria democrata, opôs-se à ampliação de acordos comerciais com o Brasil por causa da questão ambiental. No primeiro debate eleitoral, Biden criticou o Brasil por causa da política ambiental.
“Não creio que o presidente Biden vá hostilizar o Brasil. Eles são pragmáticos. Mas seguramente o Brasil ficará sob um escrutínio mais estreito sobre estes temas de meio ambiente e de direitos humanos, com eventuais consequências nefastas para o relacionamento entre os países”, pondera Nunes.
As queimadas no Pantanal e na Amazônia geraram críticas de diversos países europeus. Alguns deles se manifestaram contrários ao acordo Mercosul-União Europeia por causa da questão ambiental. Também não é raro encontrar críticas aos “retrocessos nos direitos humanos”, sobretudo, no âmbito dos direitos indígenas.
Economia
O ex-chanceler durante os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Celso Amorim, destaca que a vice de Biden, Kamala Harris, é mulher, negra e ativista dos direitos humanos. Amorim avalia que haverá uma “relação mais conflituosa” no que tange às questões ambientais e de direitos humanos e que isso poderá aprofundar o isolamento político e ideológico do Brasil, porém não acredita que afete as relações econômicas.
“O Brasil é um país muito grande, que ninguém vai querer ignorar como mercado, embora tenha descido o interesse no país por temores políticos, questões ambientais e de direitos humanos. Mas ninguém vai isolar totalmente, porque o Brasil é grande demais”, pondera Amorim.
O professor de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ecio Costa pontua que Biden, como é de praxe entre os democratas, deve investir no multilateralismo, o que pode ser benéfico para o Brasil. O economista avalia também que o Brasil deve manter a adoção da tecnologia norte-americana em relação ao 5G, o que é bom para os Estados Unidos.
No geral, Costa não acredita numa grande mudança. “Os Estados Unidos não têm o Brasil nos principais parceiros comerciais. Têm, na realidade, como concorrente para alguns segmentos, principalmente do agronegócio exportador, como soja, frango e proteína bovina”, ressalta.
A tese de que democratas são mais protecionistas e republicanos tendem ao livre mercado ruiu com Trump. “Não creio que Biden será pior do que Trump nesse sentido, embora possa exigir que o Brasil tenha uma política ambiental de verdade como condição para avançar em acordos bilaterais e ter apoio norte-americano em temas de nossos interesses. Mas isso também é do nosso interesse”, disse o senador José Serra, primeiro chanceler no governo Temer.
Migração
A comunidade brasileira nos Estados Unidos é composta por cerca de 1,4 milhão de pessoas, segundo estimativa do Itamaraty. Não há estimativa de ilegais. Biden, contudo, prometeu uma reforma migratória com foco nos “dreamers” [sonhadores, em inglês, que representa os filhos de imigrantes ilegais que chegaram ao país ainda crianças].
Serra pondera, todavia, que essa reforma não vai significar abolir vistos ou controle de fronteiras. “Acredito que haverá alguns ajustes e, sobretudo, maior tolerância para casos como pessoas que buscam asilo, inclusive evitando a política abusiva que Trump implementou, separando filhos pequenos dos pais que ingressavam pela fronteira mexicana”, reflete.
Nunes acrescentou que os democratas não são necessariamente acolhedores, mas “a uma atmosfera xenófoba que domina a atmosfera em que vivem os estrangeiros irregulares nos Estados Unidos” deve mudar, o que é positivo.