Enchentes no RS: cultura e patrimônio histórico têm danos irreparáveis
Museus de arte, centros culturais e bens tombados sofrem danos. Setor cultural pode custar a se reerguer por não ser prioridade
atualizado
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No Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, uma tela reproduzida logo na entrada simboliza o começo de um capítulo fundamental da história da região. Nela, estão os 39 primeiros imigrantes alemães, recém-chegados a São Leopoldo, em 1824, dando início à colonização alemã no sul do país, 200 anos atrás.
Na semana passada, as águas enlameadas que alagaram a cidade invadiram o museu, subiram mais de 1 metro e pararam logo abaixo da moldura do quadro na parede. Pouparam a imagem, mas destruíram centenas de outros itens do acervo — documentos, móveis de época, o piano usado em recitais, os artigos da livraria, um harmônio raro que havia acabado de ser doado por um pastor e a esposa.
As inundações devastaram São Leopoldo após o Rio dos Sinos transbordar, o mesmo usado por imigrantes alemães a partir de 1824 para povoar o entorno. O museu, uma instituição privada fundada em 1959, conta parte dessa história, com acervo composto por doações de famílias da região. A água poupou os arquivos históricos e documentais no segundo andar, como a biblioteca e as centenas de cartas antigas — muitas manuscritas em alemão no estilo gótico.
O museu é uma entre as muitas instituições e patrimônios culturais que sofreram perdas e danos ao longo das últimas semanas. As enchentes históricas que assolam o Rio Grande do Sul impõem prejuízos inestimáveis à cultura e ao patrimônio histórico no estado.
Diante da dimensão da tragédia e da urgência em alocar recursos para reconstruir o básico — casas, escolas, estradas, infraestrutura —, obter os recursos necessários para a cultura será um desafio ainda maior, considera Ingrid Marxen, diretora de relações institucionais do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.
“O impacto vai ser enorme, porque museus não são prioridade”, afirma. “Nosso museu é privado e vive de doações, com apoio da prefeitura. Mas todos os nossos mantenedores estão com problemas enormes para resolver. Uma de nossas funcionárias perdeu a casa inteira, não tem mais nada. São momentos muito difíceis que estamos vivendo.”
Mutirão para salvar a arte
Em Porto Alegre, a alta histórica do Guaíba mantém diversos bairros debaixo d’água há quase duas semanas. No centro histórico, as inundações chegaram a prédios cruciais para a vida cultural da cidade, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e a Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ).
Ali ao lado, no Margs, o diretor-curador Francisco Dalcol mobilizou uma corrida contra o tempo para deslocar as centenas de obras de arte que ficavam na reserva técnica do andar térreo para os andares superiores.
Nunca havia entrado água no museu, fundado em 1954, depois da grande enchente de 1941. Quando ficou claro que seria uma cheia sem precedentes, entretanto, Dalcol convocou cerca de 20 colaboradores para evacuar a reserva mantida no antigo cofre do prédio, construção da década de 1910 que antes era uma delegacia fiscal.
Em 3 de maio, o trabalho começou cedo e com registros de cada obra deslocada, mas virou uma correria à medida que a água avançava ao redor do prédio. A equipe só parou depois que a Brigada Militar passou a ordenar a evacuação da área, a energia elétrica foi cortada e a água cobriu os pés de quem estava dentro do museu.
A operação salvou a maioria das obras da reserva, incluindo de artistas como Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Iberê Camargo. Porém, não foi possível remover as pesadas mapotecas, arquivos que guardam desenhos e gravuras. Essas obras ficaram suspensas nas partes altas da reserva, sujeitas à umidade, e ainda estão inacessíveis.
“Estamos em pleno trauma. Temos sido reconhecidos como heróis, mas não me sinto contemplado nisso, porque ainda não ultrapassamos a tragédia”, diz Dalcol. “Minha grande preocupação, agora, é a água subir mais. Se houver risco de atingir o primeiro andar do museu, vamos ter de acessar o museu de bote e remover as obras.”
Uma coincidência acabou favorecendo o salvamento das obras: o Margs está comemorando 70 anos; por isso, os clássicos do acervo estavam expostos nos andares superiores para marcar a data, o que ajudou a salvá-los. Mas também aqui há um lado doloroso: o museu havia acabado de passar por um minucioso restauro coordenado pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Estávamos dando um trato no museu. Havíamos trocado o sistema de climatização, ele estava todo pintado, novinho”, lamenta Dalcol, que tem encontrado alento nas manifestações de apoio em prol da reconstrução. “O prédio está de pé, mas a parte elétrica, hidráulica, a rede de esgoto, tudo fica comprometido. Teremos muito trabalho pela frente para voltar a funcionar.”
A depender de sua gestão, o térreo do museu “nunca mais terá nada”, podendo se tornar “uma espécie de memorial” desse episódio tão trágico.
Cultura sem trabalho
A comoção despertada pelas enchentes vem mobilizando campanhas por doações para o setor cultural, voltadas para audiovisual, música, teatro, artes, escritores, bibliotecas, livrarias.
Um exemplo é a gravação feita por Caetano Veloso e Maria Bethânia da canção Menino Deus, de Caetano, inspirada em um bairro de Porto Alegre. A dupla cedeu os direitos do vídeo para uma campanha de arrecadação em prol de artistas e trabalhadores da cultura no Rio Grande do Sul.
O cineasta gaúcho Jorge Furtado, conhecido por usar Porto Alegre como cenário para seus filmes, ressalta que nunca aconteceu nada parecido na história do Brasil — de uma vez só, mais de meio milhão de pessoas desabrigadas, tendo perdido tudo, ou quase tudo. Quem não perdeu, conhece alguém que perdeu.
“O que a gente faz nessas horas? A gente se une, porque a tribo da arte é muito unida. Todo mundo está ajudando e se mobilizando como pode, abrigando pessoas, fazendo clipes e vídeos para impulsionar vaquinhas e pedir doações”, diz Furtado.
“As pessoas precisam de água, roupas, comida, abrigo, inclusive do nosso meio. Conheço várias pessoas da produção que perderam tudo e estão com água até o teto da casa. Fazer teatro, filmar, fazer show… Tudo isso vai ser inviável por um bom tempo, não só pela água, mas pelo clima na cidade. Então o setor vai demorar para se recuperar. E quem perdeu tudo também vai ficar sem trabalho.”
Patrimônio histórico
O Iphan está mapeando os danos ao patrimônio histórico em todo o estado. As enchentes atingiram em cheio edificações tombadas no Rio Grande do Sul, como o centro histórico de Pelotas e o núcleo urbano de Santa Tereza, conjunto de casas históricas da imigração italiana que sofreu a terceira enchente em um ano.
De acordo com o presidente do instituto, Leandro Grass, por ora só é possível “diagnosticar os danos geograficamente”, ou seja, mapeando o que é protegido nas regiões alagadas. Só depois que a água baixar será possível detalhar os estragos e as intervenções necessárias.
Grass ressalta que os prejuízos ao patrimônio cultural têm um forte impacto intangível. Não se trata apenas de danos a edificações importantes, mas da perda de símbolos e de referências culturais. “Os bens culturais fazem parte da história do estado e do país. Essas perdas afetam a autoestima da população e o sentimento de pertencimento”, considera.
“É claro que a hora é de dar água, abrigo, roupa, atender às demandas urgentes. Mas o próximo momento será de reconstruir bens ligados à memória, à história, à tradição. O resgate desses lugares é uma forma de resgatar a alegria e a autoestima das pessoas.”
Festas dos 200 anos da imigração alemã
No dia 3 de maio, antes de a enchente chegar, Ingrid Marxen, assessora especial da Comissão do Bicentenário na Secretaria Municipal de Cultura e Relações Internacionais (Secult), teve uma reunião com a prefeitura de São Leopoldo para planejar o desfile dos 200 anos da imigração alemã, previsto para 13 de julho. Saiu do encontro animada, mas deparou-se com a ponte 25 de Julho e a BR-116 fechadas por causa da enchente iminente.
Foi para casa às pressas, arrumou uma mala e rumou para a casa de amigos em Novo Hamburgo, onde está até hoje, em segurança. A cidade segue alagada, e não há como entrar no seu apartamento, no 15º andar de um prédio de 22 pavimentos.
A direção do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo espera reabrir a tempo de festejar o bicentenário da imigração alemã, em 25 de julho. A data marca os exatos 200 anos da chegada do primeiro grupo de imigrantes, aqueles do quadro poupado pela enchente, vindos de Hamburgo.
Museus parceiros da instituição na Alemanha, em Simmern e Kaiserslautern, já se prontificaram a ajudar nos trabalhos de recuperação. “Seguimos com esse plano, mas temos que esperar a água sair de uma vez por todas para ver o que restou e começar a trabalhar”, diz Marxen.
Nesta sexta-feira (17/5), ela e os demais voluntários do museu marcaram um encontro para recomeçar. O plano é dar início à limpeza do museu. Aos 76 anos, Marxen está animada para trabalhar o fim de semana todo. Só depende de parar de chover.
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