Em meio à pandemia, paciente com doença reumática busca a Justiça por cloroquina
Enquanto bolsonaristas insistem em remédio ineficaz contra Covid-19, diarista precisou recorrer ao Judiciário para tratar doença reumática
atualizado
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No país em que a cloroquina virou bandeira do governo de Jair Bolsonaro como vitrine do já desmentido “tratamento precoce” contra o coronavírus, o medicamento registrou recorde de vendas, falsamente propagandeado por bolsonaristas como cura para a doença pandêmica. O governo federal até acionou o Laboratório Farmacêutico do Exército para ampliar a produção do produto.
Não à toa, com tanta procura, o preço da substância disparou nas farmácias. O aumento do valor favoreceu vendedores e prejudicou quem realmente precisa do remédio, como vítimas de malária e de doenças reumáticas. É o caso da diarista Renata Ribeiro da Silva, 35 anos, que foi diagnosticada há cerca de três anos com a Síndrome de Sjögren, enfermidade reumática autoimune cujo tratamento é habitualmente feito com cloroquina.
Sem dinheiro para comprar o fármaco e assim manter seu tratamento neste ano, Renata recorreu à Prefeitura de Presidente Epitácio, no interior de São Paulo, onde mora, para solicitar o fornecimento do remédio. Não deu certo. A Secretaria Municipal de Saúde do município alegou que a cloroquina não tinha fornecimento garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento da Síndrome de Sjögren – só para outras doenças.
“Eu sentia muita fraqueza. Sempre quando fazia exame de sangue dava que tinha leucopenia. O médico prescreveu cloroquina. No começo do tratamento, o preço era bem mais acessível. Mas depois que veio a pandemia foi falado que seria bom contra o coronavírus e o preço subiu. Eu não tenho condição de comprar, pois estou desempregada. Então parei de tomar”, disse Renata em entrevista ao Metrópoles.
“Estou sentindo muita dor nas juntas, nos dedos e nos tornozelos, que inflamam. A cloroquina funcionava para a síndrome, melhorava os sintomas”, acrescentou.
Sem conseguir o remédio pela Prefeitura de Presidente Epitácio, Renata obteve na Justiça a nomeação do advogado Frank Duranti como dativo (indicado pelo Judiciário) para representá-la, pois não há defensores públicos na cidade. Ele protocolou um mandado de segurança no tribunal local, exigindo que uma caixa de cloroquina com 30 comprimidos (R$ 95) seja fornecida por mês para que a diarista conseguisse manter seu tratamento.
“Existe o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (…), posto que o estado de saúde da impetrante pode se agravar com o tempo”, assinalou o advogado de Renata no pedido à Justiça.
A juíza Maria Fernanda Sandoval Eugênio Barreiros Tamoki, da 1ª Vara Cível de Presidente Epitácio, solicitou um parecer do Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) do Tribunal de Justiça paulista (TJ-SP). Especialistas médicos do órgão auxiliam magistrados a decidirem causas em que há necessidade desse tipo de conhecimento.
“Há evidências de benefício para uso de hidroxicloroquina nas manifestações articulares inflamatórias na SS (Síndrome de Sjögren)”, diz o parecer dos peritos médicos do TJ-SP.
Mas o parecer alegou também que os laudos médicos apresentados por Renata não mencionavam que havia urgência no tratamento. Os peritos também argumentaram que as prescrições médicas não informavam se havia manifestações articulares inflamatórias na paciente.
“Para o presente caso, faltam dados sobre a confirmação diagnóstica da doença e quais manifestações sistêmicas a paciente apresenta que justifiquem a prescrição de hidroxicloroquina de acordo com as evidências científicas atuais”, diz o parecer.
O pedido de Renata acabou negado pela juíza. De acordo com especialistas, é mais comum que magistrados de primeira instância garantam o fornecimento de medicamentos a quem faz esse tipo de solicitação judicial. Mas as decisões naturalmente variam conforme cada juiz e cada caso concreto.
“Decisões judiciais não são uniformes. Juízes, apesar de terem a prerrogativa de decidirem independentemente sobre o laudo pericial, na maioria das vezes decidem conforme a avaliação do perito”, explicou ao Metrópoles o advogado e médico Fábio Cabar, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor-geral de compliance do Hospital das Clínicas.
“A hidroxicloroquina está indicada em alguns casos de Síndrome de Sjogren”, acrescentou, sem entrar no mérito do caso concreto.
Contra o fornecimento do fármaco para Renata, a Procuradoria de Presidente Epitácio alegou que “não pode prevalecer o interesse de um cidadão em prejuízo de toda uma população carente”, ao falar do fornecimento da cloroquina, que custa R$ 95.
Documentos insuficientes
O advogado de Renata recorreu ainda em primeira instância, depois que um novo laudo médico alegou que a falta de tratamento para a doença poderia trazer mais complicações para a saúde da diarista. “Consta no laudo que, se a autora não tomar o medicamento, pode sofrer complicações sistêmicas da doença, como alteração renal, hepática, hematológica, articulares, gastrointestinais”, frisou o defensor.
Ainda assim, a juíza de primeira instância manteve a rejeição ao fornecimento do remédio pelo poder público. “A impetrante juntou aos autos somente receituário e declarações dizendo que necessita do fármaco, ambos absolutamente insuficientes para demonstrar a ineficácia dos itens padronizados ofertados pelo SUS”, anotou a magistrada.
A diarista recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo contra a decisão de primeira instância, mas o recurso também foi rejeitado pelos desembargadores, que alegaram que Renata não comprovou “insuficiência financeira” e que, apesar dos documentos do SUS anexados (receitas, declarações médicas e prescrições), não havia laudo médico comprobatório da doença.
“No presente caso, a autora não se desincumbiu do ônus que lhe cabia, deixando de comprovar a insuficiência financeira e apresentação de laudo médico comprobatório da doença e necessidade da medicação pleiteada”, pontuou o relator, desembargador Carlos Eduardo Pachi, da 9ª Câmara de Direito Público, em decisão publicada na segunda-feira passada (27/9).
Renata continua sem dinheiro para comprar cloroquina e se queixa dos sintomas da Síndrome de Sjögren. “Me sinto mal. É um direito da gente. A gente trabalha, paga imposto a vida inteira e quando precisa é negado”, lamentou.