Em meio à pandemia, governo bancou 252 refeições em churrascarias
Ao todo, R$ 84.054,83 foram destinados ao pagamento de estabelecimentos que serviam a iguaria, incluindo comércios de luxo
atualizado
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“A legítima costela gaúcha”: a frase estampa a fotografia de uma peça de carne, recém-assada, que repousa sobre tábua de madeira de uma das churrascarias onde um cartão corporativo do governo federal foi utilizado. O restaurante responsável pela iguaria é uma das 94 churrascarias do país que foram frequentadas por agentes públicos desde o começo da pandemia da Covid-19, em março do ano passado. Nelas, o cartão corporativo do governo bancou 252 refeições, que somaram o total de R$ 84.054,83.
A maioria das despesas veio de servidores do Ministério da Defesa, principalmente daqueles que integram o Comando do Exército Brasileiro. A pasta foi responsável por 99,1% de todos os gastos analisados. O restante, no valor de R$ 764,08, partiu do Ministério da Economia.
Os estabelecimentos, em sua grande maioria, estão localizados em rodovias e locais de difícil acesso, como as típicas “paradas” feitas em viagens na estrada. Este é o caso do Lado’s Pampas Churrascaria, localizado no município de Barra Velha, na região norte de Santa Catarina. O comércio cobra R$ 40 por pessoa para consumir um rodízio de carnes anunciadas como de primeira qualidade nas postagens feitas em redes sociais. Aos fins de semana, o valor é maior; R$ 60. Badalado, o restaurante recebeu sozinho R$ 8.569,50 durante o período, se tornando o mais frequentado pelos servidores públicos, todos pertencentes ao Comando do Exército.
Segundo Tiago Bazi, dono do comércio, a demanda vem de militares que trafegam pela rodovia em direção ao Rio Grande do Sul. No caminho, param no estabelecimento e consomem o rodízio: “Eles nunca vêm sozinhos, vêm sempre em grandes grupos. Nossa carne vem de frigoríficos da região, então está sempre fresca e eles gostam bastante. É uma carne de boa qualidade, e homem com fome você sabe, né?”, explica Bazi, por telefone, à reportagem.
A maior compra feita por um agente público, entretanto, ocorreu em um estabelecimento mais conhecido e de fácil acesso que o anterior. “No coração do centro político brasileiro, a Fogo de Chão Brasília recebe magistrados, diplomatas, juízes e estrangeiros”, registra o site da famosa churrascaria sobre seus frequentadores. Localizada na Asa Sul, em Brasília, de lá veio o registro do maior valor único gasto por um servidor.
No dia 27 de novembro do ano passado, Rubinei dos Santos Silva realizou a maior despesa registrada em uma churrascaria durante a pandemia: R$ 4.683,40. Segundo o Portal da Transparência, Rubinei é capitão-de-mar-e-guerra, maior patente da Marinha brasileira, além de possuir um posto comissionado no comando da Força. Com o valor, o estabelecimento, que cobra R$ 164 pelo rodízio de nobres carnes, serviria 28 clientes ávidos pelo “jeito gaúcho de fazer churrasco”, como informa o restaurante.
A apuração para esta reportagem foi feita pelo (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, utilizando os dados abertos governamentais dos pagamentos realizados com o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF). Para chegar nos estabelecimentos que serviam churrasco no cardápio, a reportagem filtros pelo termo “churrasc”, de forma que todos os lugares visitados, que continham essa palavra, foram selecionados. A análise foi feita mediante o uso da linguagem de programação Python.
O CPGF é utilizado para pagamentos de valores em que, segundo a legislação, se caracteriza “a necessidade em despacho fundamentado”. Ou seja, pode custear, por exemplo, compras de materiais e prestações de serviços e gastos autorizados. Atualmente, o valor limite com o cartão é de até R$ 8 mil por uso.
Para Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil, chama a atenção a necessidade de que integrantes das Forças Armadas frequentem churrascarias durante uma pandemia: “Além da questão sanitária, de evitar lugares fechados, o governo tem a necessidade de economizar com gastos públicos. Não é ilegal, mas é uma questão ética, considerando a situação grave em que vive o país”, disse.
A inflação e o desemprego vêm provocando o crescimento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade. A venda de ossos para sopas, pelancas e outras partes de animais, antes descartadas e doadas, se tornoucada vez mais comum em açougues e supermercados. A inflação de setembro (1,16%), último indicador divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi a mais alta para o mês desde 1994 – no acumulado de 12 meses já atingiu 10,25%. O grupo Alimentação e Bebidas teve alta de 1,02%. Contribuíram para o resultado o frango inteiro (4,50%) e o frango em pedaços (4,42%). Os preços das carnes bovinas (-0,21%) recuaram após sete meses consecutivos de alta, acumulando variação 24,84% nos últimos 12 meses.
No último domingo (24/10), o Metrópoles registrou, na matéria especial O Brasil que passa fome: crise da carne ilustra o país que empobreceu, como, em tempos de pandemia, desemprego em alta e perda de poder de compra, uma expressiva parcela da população passou a comprar carne vermelha sem procedência – livre de impostos e fiscalização – e recheada de riscos.
Estima-se que 15% dos quase 30 milhões de abates de gado no Brasil em 2020 tenham ocorrido em estabelecimentos clandestinos. Para especialistas ouvidos pelo Metrópoles, a alta de 48% no preço da carne vermelha empurrou famílias mais carentes ao consumo de produtos não submetidos a inspeções sanitárias e, portanto, muito mais baratos.
E a inflação aperta mais quem tem pouco ou quase nada. A pressão ocasionada pela taxa é maior entre os brasileiros com menor poder aquisitivo, em comparação aos mais abastados. Em reportagem recente, o Metrópoles mostrou que beneficiários do Programa Social Bolsa Família estão com o pior poder de compra em 7 anos.
“Temos pessoas passando fome. A prioridade número um do país deveria ser encontrar recursos para aliviar essa situação. Mas, na medida em que o governo não faz o que é necessário e identificamos gastos desse tipo, torna-se uma desigualdade, uma situação desrespeitosa para quem passa dificuldade”, afirma Galdino, da Transparência Brasil.
Posição Oficial
O Metrópoles entrou em contato com a Marinha para perguntar sobre a compra feita por Rubinei, mas não teve retorno. Por telefone, a Fogo de Chão disse que responderia sobre os questionamentos feitos sobre a compra feita pelo oficial da Marinha por e-mail, mas, até o fechamento desta reportagem, as respostas não haviam sido enviadas.
O espaço continua aberto a manifestações.