Em meio à crise no Enem, estudantes relatam ansiedade e desestímulo
Debandada de quase 40 gestores do Inep coloca prova em xeque, e alunos contam como a situação agrava a tensão inerente ao exame
atualizado
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A prova mais importante para os estudantes do ensino médio do país vem sofrendo com uma instabilidade organizacional que cria temor sobre sua realização. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) está marcado para acontecer nos próximos dias 21 e 28 deste mês. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável por elaborar, aplicar e corrigir a prova, está em meio a uma profunda crise, com pedidos de demissão de quase 40 gestores.
Na última semana, chegou a 37 o número de servidores que pediram demissão do órgão, entre os quais funcionários que coordenam a prova. A debandada ocorreu dias depois de um protesto contra suposto assédio moral que estaria sendo conduzido contra Dupas Ribeiro, quinto presidente do Inep em três anos de governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Os funcionários também acusam o presidente de se eximir de suas responsabilidades e agir com incompetência.
Por conta do clima tenso no órgão responsável pela prova, o Senado Federal aprovou, na última quinta-feira (11/11), um requerimento para realização de uma audiência pública com coordenadores do Inep, para ouvir os servidores sobre as exonerações e situação no Inep.
Na esteira dessa situação de instabilidade, e ainda em meio às agruras provocadas pela pandemia da Covid-19, jovens de todo o país que sonham com a entrada na universidade falam ao Metrópoles sobre como estão lidando com a preparação para o exame.
Bianca Carvalho, 18 anos, estudante do 3º ano do ensino médio de uma escola particular no Distrito Federal, é uma das 3.109.762 pessoas candidatas ao Enem deste ano. Com o sonho de conseguir uma vaga em uma universidade pública de Portugal, Bianca sabe que o exame é a única porta de entrada para que aconteça o sonho de estudar farmácia no país irmão. A nota do exame pode ser utilizada em mais de 40 universidades, institutos politécnicos e escolas superiores portugueses, um acordo fechado entre os dois países para facilitar a vida daqueles que desejam estudar no país irmão de língua lusófona.
Desde o ano passado, a estudante se preparou como pôde para os estudos. Com as aulas paralisadas devido à pandemia, Bianca voltou presencialmente para a sala de aula apenas em setembro deste ano. “Antes eu estudei bastante, como pude, on-line. Mas voltar para a sala de aula foi como se enfim eu tivesse ‘acordado’ e pensado: é, eu preciso estudar mais ainda para o Enem. E aí veio isso”, diz a jovem, em referência aos problemas dentro do Ministério da Educação.
Com a volta às aulas presenciais aumentando o nervosismo frente à realização da prova, a estudante afirma que não saber como – ou mesmo se efetivamente – vai ocorrer o exame virou um problema a mais para pensar: “Outro dia eu vi um meme na internet que dizia ‘o estudante brasileiro não tem um minuto de paz’. É isso que está acontecendo. No ano passado, já foi tudo muito bagunçado [por causa da pandemia]. Aí neste ano, temos que lidar com questões administrativas do governo, e isso é muito revoltante”, afirma a jovem.
Ela explica que, no meio do turbilhão de coisas para serem assimiladas para o dia da prova, ainda tem que lidar com a ansiedade ligada à crise no Inep. “Era para gente estar conseguindo focar no que a gente precisa fazer, nos estudos. Nossa função é estudar e ser avaliado, e ter certeza de que alguém vai nos fornecer a prova com uma garantia, né?”, resumiu.
O sentimento de ansiedade é o mesmo compartilhado por sua colega de sala Lara de Marques. Também moradora do Distrito Federal, a jovem de 18 anos se candidatará a um dos cursos mais difíceis do país e relata que adicionar um problema externo à dinâmica de estudos não está sendo fácil. “Isso impacta muito na rotina intensa de estudos. Nós já estamos estressados, nervosos e ainda temos que pensar se a prova irá acontecer, se ela realmente vai estar condizente com o conteúdo pedido, se o tema da redação não vai ter nenhuma polêmica”, fala a estudante, que sonha em cursar medicina.
Questionada sobre o que faria caso a prova não acontecesse, a jovem diz que não sofreria com o impacto: “Felizmente, meus pais têm condições de me sustentar, e isso me traz tranquilidade, mas eu sei que isso é uma realidade minoritária”, diz a jovem.
A segurança de Marques não existe para Matheus Ferreira, 20 anos, morador da cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. O jovem, estudante de uma escola estadual, se vira como pode para recuperar o tempo em que não teve acesso aos conteúdos marcados para cair na prova: “Fiquei quase dois anos sem estudar, as aulas on-line não aconteciam direito”, conta o jovem, que apenas há duas semanas voltou à escola — e a ter aulas com consistência.
Matheus conta que estudou sozinho durante o período de mais de um ano e meio em que ficou sem aulas. A única ajuda que teve foi de um cursinho on-line de fácil acesso que conseguiu pagar com o dinheiro ganho trabalhando como atendente em lojas de rua da cidade. “Ninguém vai ter cabeça para passar no Enem. Nem todo mundo tem ‘verba’ para pagar um cursinho pré-vestibular”, diz o jovem, que vê na prova mais importante do país a única forma de ingressar no ensino superior de forma gratuita.
“Eu sei que não vou passar, não tem como, mas eu vou tentar mesmo assim”, disse à reportagem em tom de desânimo. O jovem, que deseja cursar odontologia, comenta sem esperanças que a instabilidade política no Inep só se somou a um conjunto de fatores difíceis que já enfrentava para se preparar para a prova.
“Alunos comentam que não sabem o que fazer”
O sentimento de desorientação sobre o que fazer, de sofrimento pelo período de aulas on-line provocado pela pandemia de coronavírus e de temor pelas notícias recentes sobre o Inep é confirmado pelos professores. Anne Carolina de Freitas, que ensina biologia em um curso pré-vestibular privado em São Paulo, conta que por muitas vezes os alunos — e os professores — se questionaram se deveriam priorizar a realização do exame.
“Os alunos comentam que não sabem o que fazer”, conta Freitas. O clima de insegurança atinge inclusive os mestres, que não sabem como direcionar os alunos. “Colegas professores comentam que eles sempre estão perguntando o que fazer, se devem priorizar a prova ou outros exames. A sensação é a de que ninguém sabe o que vai acontecer”, relata.
A situação é a mesma vivida por Mariana Moura, professora de literatura em uma escola particular no Distrito Federal. “Sobraram apenas os ‘resistentes’, aqueles que estão fazendo a prova como parte de um protocolo, mas sem nenhuma esperança”, conta. “Não sei que sequelas vamos ter na educação superior com tantos estudantes desestimulados. Certamente teremos muitos danos na educação”, desabafa Moura.