Em 8 anos, nem 1% dos militares condenados por tráfico pegou 2 anos ou mais
Código Penal Militar prevê pena máxima de 5 anos de reclusão. Entre 2010 e 2017, contudo, nenhum caso teve punição máxima
atualizado
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A Justiça Militar da União condenou, entre 2010 e 2017, apenas 0,88% dos militares envolvidos em consumo, posse ou tráfico de drogas a 2 anos ou mais de reclusão. Ainda assim, entre os quatro casos julgados no período que tiveram pena superior a dois anos de prisão, nenhum deles chegou à punição máxima estabelecida pelo Código Penal Militar (CPM), que é de cinco anos.
O levantamento foi feito pelo Metrópoles e baseado em processos do Supremo Tribunal Militar (STM). A reportagem analisou todos os 464 casos de militares que foram condenados durante os oito anos citados. O consumo, posse ou tráfico de drogas é o segundo tipo de crime (11%) mais comum apurados pelo órgão – atrás apenas de deserção (33,6%). Completam o ranking de delitos mais frequentes furto (7,48% dos casos), estelionato (6,13%) e peculato (o desvio de recursos públicos, que é 5,40% do total).
O índice quase total de penas inferiores a 2 anos de reclusão – mais de 99% – pode ser interpretado pela prevalência de militares condenados por consumo ou posse de entorpecentes em comparação com tráfico, que é a minoria. Como o Código Penal Militar (CPM), de 1969, enquadra na mesma legislação o usuário e o traficante, não é possível fazer a distinção entre os crimes específicos julgados no período.
Se julgado, o militar flagrado com drogas dentro do quartel, seja ele usuário ou traficante, é enquadrado no artigo 290 do CPM , trecho criticado pela falta de rigor e de especificidade. A lei prevê pena de até 5 anos de prisão para quem “receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente”.
Por outro lado, no âmbito civil, a Lei de Drogas, de 2006, pune os casos com medidas específicas. Para quem adquirir, guardar ou tiver em depósito drogas ilícitas para consumo pessoal, por exemplo, as penas, previstas no artigo 28, são medidas socioeducativas, como prestação de serviços à comunidade. Entretanto, para os que produzem ou exportam, como o segundo-sargento da Aeronáutica detido na Espanha com 39 quilos de cocaína, a penalidade chega a 15 anos.
Atualização legal
Para o promotor de Justiça Militar Mário Porto, a falta de atualização do CPM é o grande empecilho. “O legislador brasileiro esquece que existe o Código Penal Militar. Ele muda o Código Penal comum, mas não muda o militar”, critica o procurador. De fato, existe uma proposta no Congresso, desde 2015, para atualizar o CPM, prevendo penas mais duras para militares envolvidos em tráfico de drogas. Uma subcomissão especial chegou a ser criada, comandada pelo deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), mas o projeto segue sem apreciação.
“A pena para o traficante deveria ser maior”, avalia Mário Porto. “A impressão que tenho é que a lei poderia ser mais rigorosa, mas decorre da falha do legislador. Falta um pouco de proporcionalidade ao tratar no mesmo crime o usuário e o traficante”, considera. A ideia do projeto parado no Congresso é que quem for flagrado produzindo, empacotando ou vendendo drogas em quartéis tenha uma pena mais rigorosa – reclusão de 5 a 15 anos – e aqueles que guardam ou transportam para consumo pessoal recebam pena de 6 meses a 2 anos de detenção.
Entre os casos analisados pelo Metrópoles, a pena máxima encontrada foi de 3 anos de detenção mais a exclusão do réu das Forças Armadas. Em outra situação em que foi possível identificar o crime específico, um militar foi condenado a 2 anos de reclusão, mesmo tendo “reconhecida a conduta de tráfico de drogas”.
Número pode ser maior
Apesar de o número de militares julgados por consumo, posse ou tráfico de drogas ser grande, a dimensão do problema pode ser ainda maior. O promotor Mário Porto reconhece a possibilidade de casos não terem sido flagrados ainda, mesmo com as Forças Armadas fazendo constantemente inspeções e revistas, até mesmo com cães farejadores. “A impressão que tenho é que há uma repressão dos militares para proibir o uso, mas que essa vigilância, talvez, não seja tão eficiente quanto o desejável”, conta o membro do Ministério Público Militar (MPM).
Para Gustavo*, soldado das Forças Armadas e usuário de drogas, a comodidade de consumir e traficar dentro dos quartéis, apesar das “revistas surpresas”, é maior do que quando se está fora. “É bem mais seguro pedir [a droga] para pegar dentro do quartel”, garante, segundos após avaliar que, quando se o pedido é feito fora, corre-se o risco de levar tiros tanto de traficantes quanto de policiais. A demanda dentro do quartel, aliás, chega no máximo em um dia, sustenta.
“Muita gente mexe com algum tipo de droga lá [dentro dos quartéis]. No meu, tem cerca de 600 militares. Pelo menos uns 100 recrutas, mais uns 50 cabos soldados – engajados –, 50 sargentos e uns 20 oficiais usam alguma droga”, alega Gustavo, que passa a maior parte do tempo no Exército. Ele foi ouvido com exclusividade pelo Metrópoles. Se a avaliação do militar estiver correta, isso significa que algo como um a cada três militares tem algum tipo de contato com drogas. O soldado está há cinco anos no Exército.
Mesmo tendo experimentado a maconha antes de servir às Forças Armadas, Gustavo explica que, no quartel, acabou se relacionando de forma mais intensa com os entorpecentes. Logo no primeiro ano, ainda como recruta, ele foi apresentado à cocaína. Com o passar do tempo, veio o LSD (dietilamida do ácido lisérgico) e a bala (nome popular da anfetamina, ecstasy). “Já tive contato com a maconha antes, mas entrei nessa vida mesmo lá, dentro do quartel”, diz.
Gustavo conta que geralmente os militares levam drogas para os quartéis de acordo com a demanda. Mas há também casos de pessoas que deixam no armário, para consumir diariamente, após o expediente.