Eleitorado com deficiência cresce 35,27% e 480 registram candidaturas
Apesar de o direito estar garantido na Constituição, na prática, a inclusão das pessoas com deficiência na política está em construção
atualizado
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Embora a Constituição Federal garanta às pessoas com deficiência o exercício de todos os direitos políticos em igualdade de condições com as demais pessoas, na prática, o acesso não é pleno. Tanto na hora de se candidatarem a cargos públicos, quanto ao escolherem os seus representantes, as pessoas com deficiência enfrentam obstáculos.
“A consolidação dos direitos políticos das pessoas com deficiência é um processo ainda em construção no Brasil. Ainda há problemas arquitetônicos nos espaços que dificultam a acessibilidade aos locais de votação. Do mesmo modo, o país carece de políticas afirmativas para encorajar a participação das pessoas com deficiência de forma ativa na política”, destaca o advogado Felipe Ribeiro, especialista em direito eleitoral.
Como os dados sobre candidaturas com deficiência começaram a ser contabilizados somente em 2020, não é possível mensurar se houve aumento ou diminuição delas ao longo das eleições.
Mas, neste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou a candidatura de 480 pessoas com deficiência. Eles disputarão cargos públicos nas eleições de outubro, o que representa 1,6% do total de 28.790 pedidos de registros.
Entre os candidatos, a maioria (53,75%) possui alguma deficiência física. Em seguida, vêm os candidatos com deficiência visual (23,54%) e auditiva (11,67%), outras deficiências (8,33%) e autismo (2,71%).
Em relação ao eleitorado, houve um aumento de 35,27% na quantidade de pessoas aptas a votar que informaram ter algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida. Esse número passou de 939.915 na última eleição para 1.271.381 no pleito deste ano. Desse total, 30,47% declararam ter algum tipo de deficiência de locomoção,13,3% visual e 7,97% auditiva.
Mudanças e obstáculos
O deficiente visual e artística plástico Flávio Luís da Silva, 52 anos, votou em todas as eleições depois que perdeu a visão, em 1998. De lá para cá, ele acompanhou as mudanças nos locais de votação quanto à questão da acessibilidade.
“Naquela época, mecanismos de acessibilidade nas urnas estavam sendo implementados, como o leitor de tela. A gente clicava com as teclas e por meio de um fone de ouvido ouvia os números que estava digitando e depois o nome do candidato. Eu tenho visto uma preocupação com isso, está melhorando. Hoje, a acessibilidade está se expandindo para outros tipos de deficiência”, comenta Flávio.
Para ele, o que ainda precisa ser melhorado é a preparação dos mesários e funcionários que recebem os eleitores.
“Quando eu chego para fazer o procedimento da documentação, as pessoas parecem ignorar que a gente é deficiente. Eu estou ali. Poderiam fazer as perguntas diretamente para mim, mas acabam conversando e se direcionando para o meu acompanhante responder. Isso me incomoda muito. Então, acho que deveria ter um trabalho de conscientização para preparar os mesários a saberem lidar melhor quando se depararem com pessoas com deficiência”, desabafa o artista plástico.
Em relação às eleições deste ano, Flávio se declara curioso para conhecer a novidades implementadas. “Acredito que deva ter melhorado alguma coisa. A expectativa é boa. Quando à parte política, a gente não pode perder a esperança”, afirma.
Dispositivos legais
Segundo o especialista em direito constitucional e público Antonio Carlos Freitas, a história constitucional da República brasileira não tem impedimento formal à participação das pessoas com deficiência.
“Nunca houve um texto que afastasse o direito de exercer essa participação na vida pública, seja como eleitor ou candidato. O que há até hoje é um déficit material, uma dificuldade social e prática da pessoa com deficiência ter acesso às pessoas, aos recursos, materiais educativos acessíveis e aos instrumentos para propagar as ideias”, destaca o especialista.
Na visão dele, nos últimos anos, ações afirmativas e de incremento de políticas públicas foram criadas, o que indica que o país está em crescente mudança quanto à integração das pessoas com deficiência na vida política. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por exemplo, define o dever do estado de promover estímulos que as incentivem a se candidatarem.
No entanto, Carlos aponta que na prática essas pessoas enfrentam obstáculos para se inserirem na política. “Não há um problema formal, mas um abismo social. Há falta de acessibilidade na campanha, material acessível, e sobretudo, não há a preocupação de criar cotas para que haja uma participação mínima de pessoas com deficiência”, explica o profissional.
Direito ao voto
O TSE também aprovou, em 2012, o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral que promove medidas para que as pessoas com deficiência possam exercer os direitos políticos.
O especialista em direito eleitoral, Felipe Ribeiro, aponta que a justiça eleitoral já conta com aparatos para recepcionar o eleitor com deficiência, como atendimento prioritário, urnas em braile, recursos de áudio e fones de ouvido. “A legislação eleitoral também garante às pessoas com deficiência a acessibilidade ao conteúdo de propagandas e debates eleitorais através do recurso de autodescrição e do intérprete de Libras”, acrescenta o advogado.
A aposentada e deficiente física, Maria da Silva, 56 anos, avalia a experiência de votar de forma positiva. “Não pego muita fila, pois idosos e pessoas com deficiência são prioridade. Graças a Deus, o acesso à mobilidade é muito bom. A urna eletrônica também ajudou muito. Foi uma das melhores coisas feitas porque facilitou muito o nosso acesso”.
Ela define o voto como uma forma de lutar por políticas públicas voltadas para a inclusão das pessoas com deficiência. “A falta de acesso à mobilidade ainda está muito a desejar. Eu creio que ainda vamos chegar a duas eleições para chegar no patamar desejado”, projeta.
Problemas enfrentados
Para facilitar o acesso ao local de votação, a pessoa com deficiência pode fazer uma solicitação junto ao cartório até um prazo determinado pelo Calendário Eleitoral para solicitar a transferência a uma seção com maior acessibilidade. Segundo o TSE, as sessões especiais são “espaços adaptados que oferecem fácil acesso, maior comodidade e segurança no momento do voto”.
O servidor público aposentado e deficiente visual César Achkar, 58 anos, acredita que os recursos de acessibilidade deveriam estar presente em todas as urnas e não restritos à locais específicos. Graças à implementação dos recursos de acessibilidade, ele se sentiu assistido nas últimas eleições.
“Para votar eu coloquei o número dos candidatos que iria votar já prevendo a ordem. Como a urna se trata de um teclado universal, semelhante a de um computador, já estamos familiarizados. Então, bastava o barulho do confirma para saber que meu voto tinha sido registrado”, conta.
Outra novidade das eleições deste ano é que os eleitores não poderão mais levar o celular para a cabine de votação. A Resolução TSE nº 23.669/2021 determina que os dispositivos sejam deixados com o mesário da seção eleitoral, junto ao documento de identificação, antes de se dirigirem à urna eletrônica. A medida foi adotada para evitar coações, fraudes e violação do sigilo do voto.
César é contra à proibição, pois sente que ela esbarra na necessidade dele, enquanto pessoa com deficiência, de usar os equipamentos necessários para que ele consiga “ver o mundo ao redor”.
“Eu acho que é um direito meu usar o meu celular e as ferramentas de acessibilidade que já estou acostumado. E essa decisão do TSE de proibir que compareça ao local de votação com o celular me preocupou muito, porque para uma pessoa como eu, o celular é uma ferramenta de sobrevivência”, argumenta o deficiente visual.
Melhorias
O TSE também aprimorou softwares já existentes e instalou novos recursos de acessibilidade nas urnas eletrônicas que serão utilizadas nas Eleições 2022. Neste ano, os equipamentos contarão com tradução para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Além disso, um vídeo feito por uma intérprete de Libras será apresentado em todas as 577.125 urnas eletrônicas preparadas para o pleito, indicando o cargo que está em votação no momento, na sequência: deputado federal, deputado estadual ou distrital, senador, governador e presidente da República.
As pessoas com deficiência visual, por sua vez, poderão utilizar fones de ouvido disponibilizados nas seções eleitorais para o recebimento de sinais sonoros com a indicação do número escolhido e o retorno do nome da candidata ou do candidato por meio do uso de voz sintetizada.
Apesar dos avanços, o especialista em direito constitucional, Antônio Carlos, acredita que é necessário pensar na inclusão das pessoas com deficiência de forma mais ampla.
“Acho que a gente tem que pensar que o óbice maior da pessoa com deficiência para exercer o seu direito político é para exercer a vida cidadã. Então, o problema na saúde pública, educação, transporte, tem também um desdobramento na vida política. Então, o jeito mais efetivo de garantir a participação da pessoa com deficiência é garantir que ela tenha uma vida digna, ou seja, instrumentos que promovam uma melhor qualidade de vida”, conclui o profissional.