Candidatos brancos que se declaram negros podem sofrer punição?
Falta de mecanismos de prevenção é entrave para que o recurso, voltado para candidaturas negras, seja aplicado de forma efetiva
atualizado
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As eleições deste ano representaram a primeira experiência a nível federal das cotas para ampliar a participação de pessoas negras em cargos públicos. Aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a medida determinou que fossem considerados o dobro dos votos dados a candidatos negros para fins de distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).
A Corte também definiu que 30% do Fundo Eleitoral e do tempo de propaganda gratuita na TV e no rádio teria de ser dedicado a mulheres e negros que concorrem ao pleito. É considerada candidatura de negros a soma dos candidatos que se autodeclaram pretos e pardos.
Nas eleições deste ano houve um crescimento no percentual de candidaturas negras, alcançando 49,49% do total de postulantes, o maior patamar desde 2014. Da mesma forma, o número de eleitos para o Congresso Nacional também cresceu. Enquanto no último pleito foram 123 deputados federais negros, agora, 135 vão ocupar o cargo. No Senado, 6 dos 27 se autodeclararam pardos ou pretos.
Os números, apesar de ventilarem uma melhora na condição de um grupo sub-representado na política, podem não corresponder à realidade. Isso porque, nos últimos dias, acendeu-se um debate em relação a possíveis fraudes, uma vez que alguns candidatos que se diziam brancos em pleitos anteriores, “mudaram de cor” e se autodeclararam pardos agora.
Além disso, outros postulantes, mesmo que não tenham alterado a condição das últimas eleições, também foram questionados. No centro da discussão está o candidato a governador pela Bahia ACM Neto, que causou polêmica nas redes sociais e até foi acusado de fazer bronzeamento artificial.
Veja alguns deputados reeleitos que “trocaram de cor” entre 2018 e 2022:
Brecha na lei
Especialistas apontam que ainda há brechas para que esse tipo de situação ocorra, uma vez que as regras para a autodeclaração não foram bem definidas, nem estabelecidos mecanismos de prevenção a fraudes.
É diferente do que ocorre, por exemplo, em algumas universidades e concursos, em que há uma comissão de heteroidentificação para avaliar se aquela declaração é válida ou não.
De acordo com Fernando Neisser, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp, em razão de a medida ter sido instituída por decisão do STF, acabou-se criando um vácuo na legislação, já que não passou pelo processo de regulamentação no Congresso.
“Diante da falta de uma regra mais clara para este ano, eventuais situações de fraude tendem a acabar passando impune. Para evitar uma celeuma maior e uma eventual perseguição por uma questão de cor, talvez a melhor solução seja que o Congresso desenhe uma regra que se incorpore à lei eleitoral”, opina o advogado.
Apesar de a questão ainda estar em uma espécie de limbo na legislação, caso comprovada a fraude, o especialista prevê alguns enquadramentos possíveis para o candidato.
Um deles, é o crime de falsidade ideológica eleitoral. “No momento em que a pessoa preencheu o requerimento de registro de candidatura e, no campo relacionado à raça e cor, disse falsamente ser negra, ela pode — até porque há uma obtenção de vantagem —, em tese, ter praticado o crime de falsidade ideológica eleitoral”, avalia.
Outra consequência possível é o candidato responder por abuso de poder econômico, uma vez que ele se beneficiou dos recursos do fundo eleitoral, dedicados a um recorte específico de candidatos, a qual não faz parte. A ação pode resultar na perda do mandato e na inelegibilidade por um período de oito anos.
Por fim, o partido também pode sofrer consequências, caso seja considerado que os recursos aplicados naquela candidatura foram, na verdade para uma candidatura de pessoa branca. “Eventualmente, isso pode levar o partido a não ter cumprido a divisão mínima prevista na regra. E, no limite, devolver os recursos para os cofres públicos.”
Longo caminho
Para o professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Aninho Mucundramo Irachande o problema vai além das brechas na legislação. É um processo que precisa evoluir na sociedade como um todo.
“É muito difícil você imaginar que a cota vai funcionar para o processo eleitoral se não tem essa preparação para as pessoas na vida. Se no convívio normal, elas não estão preparadas para entrar no processo político. Então, é preciso que essas cotas se consolidem nas universidades, nas escolas primárias, nos cargos públicos e, consequentemente, nos pleitos públicos”, pontua.
O professor concorda que é necessário definir parâmetros mais rígidos, inclusive no combate às candidaturas laranjas, aquelas registradas apenas para fins de cumprimento das cotas, sem que haja um esforço para que sejam eleitas.
Para evitar fraudes, ele acredita que o ideal é instituir uma “autodeclaração definitiva”, feita a uma vez a um órgão oficial e sem nenhum tipo de coação.
Em relação aos resultados da política, Irachande avalia que ainda é cedo para apontar se os números recentes são consequência da medida, mas que ainda há um longo caminho a percorrer para reparar a desigualdade contra negros nos parlamentos.
“O ideal é que nós tivéssemos uma percepção mais clara da necessidade da representatividade, porque afinal de contas, nós estamos falando do debate sobre o destino do país. E, nesse sentido, a inclusão de todos os segmentos seria o ideal”, afirma.
“Por hora, nós ainda não temos um resultado animador do ponto de vista de terem sortido efeitos. Os primeiros números dão conta de que aumentou um pouquinho no parlamento e também nas assembleias o número, por exemplo, de pardos e índios. Não dá para dizer se isso é resultado direto das costas ou se já é um processo de debate político da sociedade brasileira que já vem acontecendo há um tempo atrás.”