SNI rastreou Marina Silva e Chico Mendes em partido clandestino
Arquivos inéditos revelam espionagem sobre o Partido Revolucionário Comunista (PRC). Presidenciável atuou nessa organização nos anos 1980
atualizado
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Nos últimos anos da ditadura, as forças políticas de formação comunista preservavam práticas de sobrevivência adquiridas no período mais sangrento do regime militar. Organizações forjadas na clandestinidade mantinham estruturas de funcionamento ocultas do público. Na teoria, protegiam-se da repressão. Na prática, eram vigiadas de perto pelos serviços secretos do governo.
Militante do Partido Revolucionário Comunista (PRC) no Acre, Marina Silva teve a atuação pretensamente sigilosa acompanhada de perto por espiões e informantes dos generais. O seringueiro e sindicalista Chico Mendes, assassinado em 1988, integrava a mesma organização e também entrou no radar dos militares.
Fundado em janeiro de 1984, o PRC teve entre seus integrantes alguns expoentes do Partido dos Trabalhadores (PT) nas décadas seguintes. Entre os dirigentes da sigla revolucionária estavam, por exemplo, o então deputado José Genoino e o gaúcho Tarso Genro, titular de três ministérios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e governador do Rio Grande do Sul (2011–2014).
A legenda sem registro nasceu de uma dissidência surgida no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no final da década de 1970. No movimento estudantil, a divergência deu origem à corrente Caminhando, influente nos primeiros anos da reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE), reestruturada em 1979, depois de desativada pelo governo militar.
Esses militantes questionavam a democracia interna e forçavam uma avaliação profunda sobre a Guerrilha do Araguaia, iniciativa armada implantada pelo PCdoB no oeste do Pará ao final da década de 1960 e derrotada pelos militares em 1974. Sem acordo, romperam para formar o PRC.
O acompanhamento de Marina e Chico Mendes nesse novo partido foi documentado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão coordenador do aparato repressivo da ditadura, e faz parte do acervo do Arquivo Nacional de Brasília. Com base no material, o Metrópoles publica a segunda reportagem da série sobre como os serviços secretos monitoraram a militante que, em 2018, disputa pela terceira vez o Palácio do Planalto.
As referências ao PRC no estado aparecem nos documentos a partir de 1984, ano de criação do partido. Em 4 de outubro, o Informe nº 0054/19/AMA/84, com cabeçalho e carimbo do SNI, trata do IV Encontro de Estudos Históricos, realizado no mês anterior na Universidade Federal do Acre (Ufac).
Nesse documento, o estudante Herbert Cavalcanti de Lima é identificado como “militante do PRC”, e Maria Osmarina Silva de Souza, nome de batismo da presidenciável, chamada de “ativista de esquerda”. Ela estudava história.
Em novembro de 1984, o Comando Militar da Amazônia, do Exército Brasileiro, produziu um relatório confidencial de três páginas sobre o IV Congresso dos Estudantes Universitários da Ufac.
Classificado como Informe nº 662/84, o texto reconstitui as discussões do encontro, realizado de 5 a 7 de outubro daquele ano no Palácio da Cultura, em Rio Branco. A citação à organização foi feita no contexto de uma discussão em torno da então iminente eleição do futuro presidente da República pelo Colégio Eleitoral.
Ao detalhar as propostas defendidas pelos jovens da Ufac, o documento relaciona o partido clandestino à corrente Caminhando, grupo político atuante com esse nome desde o final da década de 1970. “PRC – esta corrente é de consolidação recente dentro do Med/AC”, diz o relatório, referindo-se ao movimento estudantil acreano.
Marina está na lista de participantes do congresso. Aparece ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, erroneamente, a outra tendência do movimento estudantil, a Fração Quarta Internacional.
Espionagem não acabou após posse de Sarney
Os serviços secretos continuaram a vigilância sobre as organizações ideológicas mesmo depois do fim da ditadura, encerrada em março de 1985 com a posse de José Sarney no Palácio do Planalto. Ele foi eleito vice-presidente pelo Colégio Eleitoral e, com a morte de Tancredo Neves, que encabeçava a chapa, tomou posse no dia 15 de março de 1985.
Entre 21 e 25 de outubro de 1985, um integrante do Comitê Central do PRC, Ronald de Oliveira Rocha, participou de um seminário promovido pelo centro acadêmico do curso de história. O dirigente partidário criticou as duas décadas de governo militar, defendeu a extinção dos órgãos de informações, pediu punição de torturadores e pregou o rompimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Sem timbre, o relatório originado dessa reunião não apresenta elementos que identifiquem sua origem. O nome de Marina é o penúltimo na lista de 27 participantes.
O Informe nº 160/E2.3-LA, de 1º de dezembro de 1987, também do Comando Militar da Amazônia, ostenta o título Cisão no Partido Revolucionário Comunista, Rio Branco/AC. Com uma página e meia, reproduz outro texto, do dia 10 de novembro do mesmo ano, e expõe uma divisão interna do PT. Chico Mendes faz parte da briga.
Segundo o relatório, a eleição do professor Antônio Manuel Camelo Rodrigues para presidente regional do Partido dos Trabalhadores provocou o isolamento de Francisco Mendes e de Maria Osmarina. Os dois foram caracterizados como os militantes de “maiores atuações” dentro do PT do Acre.
O objetivo de Rodrigues seria evitar que os dois participassem de decisões dentro do partido. “Com isso, ficou caracterizado que a atitude do atual presidente gerou uma certa divergência entre os militantes do PRC e membros do partido ligados à Igreja [Católica]”, diz o informe.
Importante dirigente do PT do Acre nas décadas de 1980 e 1990, Antônio Manuel Camelo Rodrigues protagonizou mais um episódio que nada tem a ver com política. Em 2002, ele foi preso e condenado a 34 anos de prisão por estupro de uma criança de 11 anos. Em 2014, Rodrigues passou para o regime semiaberto.
Outro documento confidencial e sem timbre de identificação tem o título Organizações e Partidos de Esquerda Atuantes no Estado do Acre. Com pouco mais de duas páginas, alerta para os grupos ideológicos estruturados em comissões provisórias e lista os ativistas identificados como integrantes das cúpulas do PCdoB, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do PRC, do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da “linha trotskista”. Chico Mendes e Marina são os dois primeiros nomes de uma lista com uma dúzia de “líderes” do PRC.
Um dos 12 citados é o ex-governador do Acre Arnóbio Marques de Almeida Júnior, conhecido como Binho Marques. Ele viu erros no relato. “O documento faz uma salada, erra muitos nomes. Marina, Chico Mendes, eu e outros quatro de fato éramos do Comitê Regional do PRC, mas outros não eram dirigentes ou pertenciam apenas ao PT”, afirma Binho.
Também sem origem definida, um texto carimbado com os números 8009 89 e 000266 89, de 1989, faz um levantamento sobre a CUT do Acre e mostra como Marina Silva continuou observada pelos militares mesmo depois que iniciou a carreira política institucional.
A diretoria estadual eleita três anos antes, aponta o relatório, não era reconhecida pela entidade nacional. Vereadora de Rio Branco eleita pelo PT em 1988, Marina ocupava o cargo de segunda-secretária e foi identificada como “militante do Partido Revolucionário Comunista”. De acordo com o documento, por integrar o PRC, ela não era aceita pelos “segmentos” petistas controlados pelo “clero progressista”.
Vigilância mesmo com o fim do SNI
A organização clandestina, nascida em 1984, existiu por seis anos. Em 1990, dividiu-se em duas correntes, a Nova Esquerda e a Tendência Marxista. Mesmo depois da dissolução, os serviços secretos continuaram vigiando a atividade política dos militantes.
No I Encontro Nacional da Nova Esquerda, em 1991, o SNI não existia mais. Fora desativado no ano anterior pelo então presidente, Fernando Collor de Mello. Mesmo assim, os agentes secretos continuaram vigiando os antigos integrantes do PRC.
O arquivo Informação 00421/115/ECT/DI/SAE/91, com data de 11 de julho daquele ano, faz um relato da reunião. Esse relatório tem timbre do Escritório de Curitiba do Departamento de Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos, vinculada à Presidência da República.
Defensor da tese derrotada, o grupo liderado por Ronald de Oliveira Rocha – o mesmo dirigente que participou de um seminário em Rio Branco – abandonou as discussões. Na relação de participantes do encontro, mais uma vez, está o nome de Marina Silva. Nessa ocasião, ela era deputada estadual do Acre pelo PT.
Monitorada no governo FHC
Em 1995, a corrente política de Genoino mudara de nome outra vez. Passara a se chamar Democracia Radical (DR) depois de se juntar a outro grupo, o Poder Popular e Socialismo, do qual fazia parte o então deputado petista Eduardo Jorge (SP). Duas páginas sem timbre guardadas junto com os papéis do SNI pelo Arquivo Nacional de Brasília abordam as divergências internas dos grupos do PT em Rondônia. O material foi produzido no primeiro ano de governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Nesse relato, mais uma vez, aparece o nome de Marina Silva. Senadora pelo PT do Acre, ela é considerada líder nacional da DR. Militante de partido clandestino ou legalizado, na ditadura ou na democracia, a atuação da mulher do Acre que pretende governar os brasileiros sempre foi acompanhada pelos espiões.
Com divergências internas e minoritária no PT, mais ou menos nessa época, a DR fundiu-se com a Articulação, grupo interno formado em torno de Luiz Inácio Lula da Silva. Marina Silva ficou no partido até 2009, quando rompeu para, no ano seguinte, candidatar-se pela primeira vez à Presidência da República.