“Ele me chamou de macaca, e minha vida desabou”, diz vítima de racismo
Claudenilde Nascimento Chagas ganhou direito à indenização por danos morais, mas o réu recorreu ao STJ. Ela espera por justiça há seis anos
atualizado
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Na televisão, uma mulher negra, atendente de pizzaria no Lago Sul, narrava as ofensas racistas que recebeu do advogado Frederick Wassef. “Ele disse: você é uma macaca! Come o que te derem!”. A dois mil quilômetros de Brasília, em São Luís (MA), a produtora de eventos Claudenilde Nascimento Chagas, 36 anos, ouvia as palavras, num domingo à noite, e entendia aquela dor.
Também era um domingo, mas em dezembro de 2014, quando Claudenilde passou por situação semelhante em um bar, no Distrito Federal, ao lado de amigos. O professor universitário Rones Borges Silva, um desconhecido, se aproximou do grupo e ofendeu a produtora de eventos. “Ele começou a me agredir verbalmente, me chamou de macaca e disse que não era para eu estar no mesmo local que ele”, relata.
Após a polícia ser acionada, o homem foi detido, mas acabou liberado depois de pagar fiança no valor de R$ 1 mil. Claudenilde registrou ocorrência, que resultou na abertura de processo por injúria racial.
Três anos após ser chamada de macaca, a produtora de eventos ganhou, em sentença assinada pelo juiz Mário Jorge Panno de Mattos, da 3ª Vara Cível de Taguatinga/DF, direito à indenização, no valor de R$ 20 mil. Ao analisar os autos, o magistrado destacou que nada justifica a atitude do docente.
“Verifico que o réu proferiu expressões de cunho raciais, as quais consubstanciam-se em ato ilícito… Ressalto que nada justifica a qualificação de alguém da raça negra como ‘macaco’. Tal expressão afronta não apenas a vítima, mas toda a raça negra, a qual deve ser respeitada e honrada por todos os seres humanos, notadamente entre os brasileiros, já que constituem 54% da nossa população, segundo o IBGE. Aceitar o desrespeito tão profundo e tão maldoso não é razoável dentro de uma sociedade que deve primar pelo respeito ao próximo”, assinalou o juiz.
Rones Borges Silva recorreu da decisão, mas perdeu tanto na primeira quanto na segunda instância. Em seguida, apelou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para contestar a condenação. Acionada, a Corte informou, por meio da assessoria de imprensa, que “o processo AREsp 1342587 ainda está concluso ao relator do caso, ministro Antônio Carlos Ferreira, sem previsão de julgamento.”
São 6 anos, no total, à espera de conclusão para o litígio. Desde então, a vida de Claudenilde se transformou. Depois de ser agredida, ela desenvolveu depressão. “Eu o encontrava nos lugares, e ele me encarava, ria de mim, comentava com os amigos. Aos poucos, parei de frequentar os ambientes que eu gostava”, relata a vítima.
A produtora de eventos fez acompanhamento psicológico, passou a usar calmantes, mas, ainda assim, os problemas psicológicos em decorrência da agressão fizeram com que ela deixasse de trabalhar. “Tinha muito medo de andar sozinha, sentia que era perseguida e que aquilo podia acontecer de novo. Sentia as pessoas me olhando nos lugares. Eu morava sozinha em Brasília, não tinha ninguém para cuidar de mim”, revela.
Claudenilde deixou Águas Claras, onde vivia, e voltou para a terra natal, São Luís, no Maranhão. “Adorava a minha vida, a minha rotina, até aquele dia. Tudo mudou, abri mão dos meus amigos, do meu cotidiano. Hoje, eu me sinto mais nervosa, preocupada, e choro por qualquer coisa”, comenta.
A maranhense também desenvolveu hipertensão. Atualmente, ela está desempregada e gasta parte do dinheiro que restou para comprar remédios. Quando receber a indenização, terá de desembolsar 10% do valor em honorários para o seu advogado, que acompanha o caso.
As trajetórias da vítima e do agressor evidenciam a desigualdade social existente no país. Claudenilde é de origem pobre – o pai era comerciante e a mãe é empregada doméstica e pescadora aposentada. A maranhense veio para Brasília com uma tia, aos 12 anos, com o objetivo de estudar. Concluiu o ensino médio e, em seguida, precisou abrir mão de avançar na vida acadêmica para trabalhar. Até aquele domingo de dezembro de 2014, a produtora diz que não havia passado por situações de racismo escancarado.
Já Rones Borges Silva, segundo currículo lattes, tem doutorado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia e é professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB) desde 2011 (veja nota do IFB sobre o caso, no fim do texto). De acordo com o Portal da Transparência, o docente recebe remuneração básica bruta de R$ 16.591,91 e segue trabalhando normalmente. Ele participou de conferências internacionais e publicou artigo em livro. Por meio de advogado, Rones informou que não vai se manifestar sobre o processo.
Na esfera penal, a injúria racial em questão foi objeto de ação que tramitou na 2ª Vara Criminal de Taguatinga, na qual foi determinada a suspensão condicional do processo por dois anos, conforme previsto no art. 89 da Lei nº 9.099/95, desde que cumpridas as condições acordadas.
As condições foram o pagamento de multa pecuniária no valor de R$ 3 mil à Sociedade Espírita de Amparo ao Menor Casa do Caminho, a prestação de 80h de serviços à comunidade e a participação em curso/palestra sobre igualdade racial ministrada pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT).
Claudenilde se queixa da sensação de impunidade e critica a morosidade do Judiciário. “A Justiça é muito devagar. São anos de espera, e não é a questão do dinheiro que importa, é a impunidade. Enquanto não mexer onde mais dói, no bolso, isso vai continuar acontecendo dia após dia. A Justiça trata como se fosse uma coisa normal”, reclama.
Se receber a indenização, Claudenilde diz que pretende ajudar também outras vítimas de injúria racial e racismo (veja aqui a diferença legal entre os dois termos).
Hoje em dia, quando vejo pessoas passando pelo mesmo problema, eu digo: não se cale. Nos olham de cima abaixo, é como se alguns lugares pertencessem às pessoas brancas. A sua cor define como você será tratado
Claudenilde Chagas
Outras vítimas
Casos como o de Claudenilde costumam gerar comoção popular quando são divulgados pela mídia, mas caem no esquecimento enquanto as vítimas esperam durante anos por uma resolução. Em 2012, o médico Heverton Octacilio de Campos Menezes foi denunciado após falar para a atendente de cinema Marina Serafim, em Brasília, o seguinte: “O seu lugar não é aqui, lidando com gente, por isso você é dessa cor. Você deveria estar na África cuidando de orangotangos”.
O médico teve de indenizar a vítima em R$ 50 mil por danos morais, em 2014. A quantia, porém, só foi paga no começo de 2020, segundo a defesa do réu, após uma sala em um centro clínico que pertencia a Menezes ser leiloada.
Marina não quis comentar se recebeu, de fato, o dinheiro. O processo segue em movimentação na Justiça devido ao pagamento de uma multa no valor de R$ 10 mil que o réu deseja receber de volta. Ele não quis dar entrevista.
Em outros casos, a vítima não recebe qualquer compensação, como em dois processos amplamente comentados no DF, nos quais as autoras de ofensas racistas foram condenadas a fazer tratamentos psicológicos, por terem sido consideradas inimputáveis. Em um deles, em 2016, a 5ª Vara Criminal de Brasília determinou, na sentença, que a australiana Louise Stephanie Garcia Gaunt se submetesse a tratamento psiquiátrico pela prática de crime de racismo.
Louise escapou de ser presa por ter sido diagnosticada com transtorno mental. A estrangeira foi denunciada pelo MPDFT após ofender profissionais em um salão de beleza com expressões discriminatórias.
O outro processo teve desfecho parecido. Nathercia de Andrade Rabelo xingou funcionários da padaria Belini, na Asa Sul, dizendo, entre outras ofensas, que um deles “não chega nem aos pés do Michael Jackson, que ficou branco e fez plástica no nariz”. O juiz a absolveu do crime de injúria racial, embora tenha confirmado a autoria e materialidade do crime. Ao analisar os autos, o magistrado levou em consideração exame pericial que comprovou ser a ré portadora de transtorno afetivo bipolar à época dos fatos. Na sentença, aplicou medida de segurança de tratamento ambulatorial pelo prazo de 1 ano, 2 meses e 12 dias.
Ocorrências
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, divulgado em outubro, enquanto os registros de injúria racial em todo o Brasil tiveram alta de 23,4%, entre 2018 (9.110 casos) e 2019 (11.467 casos), os de crime de racismo diminuíram 14% no mesmo período, com 1.429 ocorrências.
Nota do IFB
Sobre o professor Rones Silva Borges, o IFB informou, por meio da Assessoria de Imprensa, que o caso em questão está sendo tratado na Justiça, ainda sem trânsito em julgado. A instituição diz que se manifesta contra qualquer forma de discriminação e violência.
“Ao longo dos seus quase 12 anos de existência, o IFB tem guiado sua atuação em conformidade com o estabelecido em sua Visão institucional: ‘Consolidar-se no DF como instituição pública de excelência em Educação Profissional e Tecnológica, pesquisa aplicada e extensão, ofertante de formação inovadora, inclusiva, pautada no respeito à diversidade e à sustentabilidade, de forma integrada com a sociedade’.
Somos 1,3 mil servidores e quase 20 mil estudantes das mais variadas origens, raças, gêneros, idades, crenças e classes. Temos orgulho, como escola pública, de espelhar a diversidade e a pluralidade brasileira em nossa instituição.
Nesta data simbólica, 20 de novembro, onde se celebra o Dia da Consciência Negra, o IFB reafirma seu compromisso em prol de uma sociedade mais justa, fraterna e antirracista. É sobre este e outros temas correlatos que na próxima semana promoveremos o IX Sernegra, evento de reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça do IFB.”