Cortes sucessivos de verbas geram autoexílio de cientistas no exterior
Cenário anunciado pelo governo Bolsonaro, mas já iniciado em gestões anteriores, faz pesquisadores temerem pelo futuro dos seus estudos
atualizado
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Um estudo que pode indicar um novo tratamento para o Alzheimer, outro que tenta recriar novos corações ou parte deles para transplante, uma investigação sobre a adaptação de manguezais diante das mudanças climáticas. São alguns exemplos de inúmeras pesquisas produzidas por cientistas brasileiros que não conseguiram financiamento e tiveram que mudar para outro país para continuar o trabalho.
Com sucessivos cortes no orçamento das principais agências brasileiras de financiamento da ciência nos últimos anos, diversos pesquisadores se viram obrigados a aceitar recursos e levar seus estudos científicos para outros países para que não fossem paralisados. A situação que chamam de “exílio científico” parece ainda mais inevitável com o cenário anunciado nos últimos dias, com cortes para a área e declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que o investimento em pesquisa e pós-graduação não será prioridade do atual governo.
Mesmo pesquisadores com bolsa garantida no momento relatam procurar outras formas de financiamento para sua pesquisa, pois sentem insegurança para os próximos anos. Com medo de não conseguirem terminar o mestrado ou doutorado com o auxílio financeiro, eles buscam bolsas em instituições de outros países.
Considerado apenas o orçamento para as bolsas de pós-graduação e formação de professores,a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) perdeu 24,4% dos recursos nos últimos cinco anos – em 2014, eram R$ 4,6 bilhões, na correção pela inflação acumulada até janeiro deste ano, e passaram a R$ 3,4 bilhões neste ano, antes do contingenciamento de 23%. No Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o orçamento para bolsas caiu 40,6% no mesmo período.
“Os cientistas não saem mais do País por opção, mas por ser a única chance de continuar fazendo o seu trabalho. O Brasil não encara educação e ciência como prioridades. Isso não começou agora com o (governo Jair) Bolsonaro, já se tornou uma rotina. O que agrava a situação nesse momento é a postura e as declarações de desprezo do novo governo com a ciência”, diz Helena Nader, membro da Academia Brasileira de Ciências e do Conselho Superior da Capes.
Não há um levantamento de quantos pesquisadores deixaram o Brasil nos últimos anos. No entanto, são indicativos da “fuga de cérebros” a queda de bolsas ofertadas nos últimos anos e a falta de reajuste há seis anos do valor das bolsas de mestrado e doutorado no Brasil (giram em torno de R$ 1,5 mil a R$ 2,2 mil).
Depois de anunciar um bloqueio de 30% do orçamento discricionário das universidades federais, o Ministério da Educação (MEC) cortou 3,4 mil bolsas de estudo da Capes. Na última semana, em audiência no Senado, Weintraub apresentou dados para sugerir que o investimento na pós-graduação não deve ser prioridade para o País.
Como o Brasil já está próximo de alcançar a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de titular 60 mil mestres e 25 mil doutores ao ano, é preciso investir em outras áreas, como a educação básica. “Tive muita vivência como executivo e minha experiência diz que quando você atinge uma meta, mas não consegue avançar nas outras, é preciso olhar para o que não está dando certo”, disse.
O ministro ainda disse que a produção científica brasileira na área de humanidades tem baixa relevância no cenário mundial. No entanto, o relatório Web Of Science mostra que os estudos em Ciências Sociais feitos no Brasil aparecem mais entre os 1% de artigos científicos mais citados do mundo do que os da área de engenharia, biologia ou economia. “As declarações contra o ensino superior e a produção científica podem afastar o jovem da ciência, da vida acadêmica”, diz Helena.
Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu Moreira, diz que a redução constante de recursos coloca em risco a posição que o Brasil conquistou, de 13º maior produtor de publicações científicas do mundo. “Há o risco de perdermos muito rapidamente o que levamos décadas para conseguir. Nem mesmo durante o período da ditadura se reduziu tanto o investimento em ciências, porque já havia a compreensão de que é através dela que o País se desenvolve economicamente”.
Em nota, a Capes defende que manteve estável nos últimos anos o orçamento para o pagamento de bolsas de pós-graduação e formação de professores da Educação Básica. No entanto, não comentou sobre a queda de valores com a correção da inflação do período.
Sobre as políticas para incentivo à pesquisa, a Capes diz que iniciou um programa de parceria com empresas para formar recursos humanos para a indústria. O objetivo é que os mestres e doutores tenham capacidade de se instalarem nas empresas existentes e evitar a fuga de talentos para o exterior. Diz também que neste ano vai lançar um programa de doutorados profissionais inédito, alinhado à indústria e com investimento em bolsas feito pelas próprias empresas.
Leia os depoimentos dos pesquisadores:
“Não me sinto seguro em voltar”
Ruan Macêdo, de 28 anos, faz doutorado na Alemanha
Meu sonho era contribuir com a ciência e poder dizer que minhas descobertas foram feitas em casa, no meu País. Infelizmente, alcançar esse objetivo fica cada vez mais difícil. É impossível manter a competitividade e inovar sem o apoio necessário.
Ainda quando estava na graduação em Educação Física, descobri minha vocação para a pesquisa. Iniciei um estudo sobre o efeito terapêutico do exercício físico em mulheres pós-menopausa. Mas, logo depois de me formar, já senti o primeiro obstáculo: a falta de incentivo à ciência no Brasil, já que não havia pós-graduação nessa área no meu Estado, o Piauí.
Eu me mudei para Minas para fazer o mestrado em Fisiologia. Nesse período, minha avó foi diagnosticada com Alzheimer e isso me motivou a mudar minha linha de pesquisa. Fui aprovado no doutorado da USP para estudar um tratamento para a doença com uma vitamina sinteticamente modificada. Como havia limitações para algumas análises, surgiu a oportunidade de vir para a Alemanha, com bolsa de estudos da Capes.
O contrato prevê que eu fique um ano e meio aqui e mais o mesmo período no Brasil. Mas, com esse cenário atual e a desvalorização da ciência, não me sinto seguro em voltar. Eu quero muito voltar ao meu País e retribuir o investimento, mas não tenho garantia nem mesmo de ter bolsa para terminar o doutorado, quanto mais opção de trabalho depois que concluir.
Meu orientador na Alemanha vem acompanhando de perto as notícias do Brasil e tem se preparado para o pior. Não tenho certeza se terei a bolsa até o fim do meu período aqui, e ele está tentando garantir junto às agências de fomento, que financiam sua pesquisa, uma verba que me permita ficar ao menos o tempo prometido. Concomitante a isso, busco ofertas de vaga de pós-doutorado. Algumas ofertas permitem começar antes de finalizar o doutorado, o que seria o meu caso.
Caso consiga alguma oferta aqui na Alemanha, cogito a possibilidade de devolver o dinheiro à Capes para não precisar voltar ao Brasil. A situação me entristece. Vejo a estrutura de primeiro mundo e percebo como estamos longe disso. É triste que tenhamos tanto potencial e tenhamos de abandonar nosso País para conseguir explorá-lo. Me sinto perdido, com medo. Não é fácil decidir abandonar seu país em uma espécie de exílio científico, tive de me mudar para seguir a carreira para a qual me preparei por anos.
“As outras nações agradecem”
João de Deus Vidal, biólogo e pós-doutorando na África do Sul
Sempre quis ser cientista, embora minha família desencorajasse exatamente pelo fato de não ser uma carreira promissora financeiramente no Brasil. Fiz graduação, mestrado e doutorado em universidades públicas de excelência. Quando fui fazer o pós-doutorado, submeti três propostas de pesquisa para financiamento e nenhuma foi aceita.
Minha pesquisa analisa a evolução e a diversidade das plantas durante as mudanças climáticas. Tive nota máxima em todos os programas, mas sempre a resposta negativa para o recurso. “Apesar do mérito reconhecido, não foi possível atender à demanda, considerando os recursos financeiros disponíveis”, foi a resposta que recebi. Foi quando descobri uma vaga em uma universidade no interior da África do Sul, com o perfil de pesquisa exatamente como o meu. Eu me inscrevi e fui aceito.
No começo, fiquei aliviado pela segurança financeira, saber que por três anos vou pesquisar e receber o salário em dia (em um valor maior do que o pago no Brasil). Hoje, a sensação é de frustração. Vejo o quanto foi investido na formação de pesquisadores que agora não conseguem dar sua contribuição ao Brasil. Outros países agradecem: pegam um pesquisador com capacidade e formação de excelência sem gastar dinheiro. Deixei família e amigos para poder pesquisar.
No Brasil, esperam mártires
Edvaldo Moita, de 30 anos, doutorando na Alemanha
Ser aprovado no doutorado na UnB (Universidade de Brasília) foi o momento mais significativo da minha trajetória profissional, mas, ao mesmo tempo, o mais tenso e de incerteza. Tive de pedir demissão do emprego de professor universitário e fechei as portas do meu escritório de advocacia para depender de uma bolsa mensal de R$ 2,2 mil. Não fosse uma poupança que eu havia feito anteriormente, dificilmente teria conseguido arcar com as despesas. Ainda me considero sortudo, já que éramos mais de 20 doutorando e só havia duas bolsas.
Meu projeto exigia uma metodologia específica, desenvolvida na Alemanha. Apliquei para bolsa de doutorado-sanduíche, fui aprovado, mas o auxílio foi cancelado. Coincidentemente, a instituição que queria abriu seis vagas para pesquisa de doutorado. Fui aprovado e cancelei a bolsa no Brasil.
As diferenças são gritantes. Na Alemanha, sou um funcionário público, tenho plano de carreira, direitos como férias, contribuição previdenciária, seguro saúde. Tenho auxílio anual para conferências e cursos de verão, verba para pesquisa de campo e biblioteca – verbas que são garantidas, não preciso concorrer com meus colegas. Depois dessa experiência, percebi que, no Brasil, esperam que os cientistas sejam mártires da ciência e não profissionais tratados dignamente.
“Nunca tive nada disso no meu País”
Renata Palma, de 37 anos, pós-doutoranda na Espanha
Sempre soube que minha vocação estava na pesquisa, mas, no Brasil, não encontrava alternativas viáveis financeiramente para viver disso. Fiz o mestrado e doutorado com bolsa, mas os valores são muito baixos. Estava no pós-doutorado, estudando Bioengenharia Cardíaca, de forma voluntária.
Para me manter, dava aulas em período integral e orientava alunos de mestrado. Estava esgotada, não aguentava mais tantas atividades e não conseguir me dedicar como gostaria a minha pesquisa. Tentei diversas bolsas. Apesar de meus projetos serem bem avaliados, não havia recursos para eles.
Fui aprovada para uma bolsa do programa Marie Curie, na Espanha. Aqui, como pós-doutoranda, tenho uma relação completamente diferente da que tinha no Brasil. Aqui, eu tenho um contrato de trabalho, recolho e pago imposto como todo mundo, tenho direitos trabalhistas – nunca tive nada disso no meu País como pesquisadora. Fora as ótimas condições de trabalho. Se peço um reagente para laboratório, ele chega em uma semana. No Brasil, demorava até três meses.
Apesar das ótimas condições, eu me sinto triste em saber que não posso ter isso no meu País, que a minha pesquisa não é valorizada no meu País. Meu estudo tenta recriar corações ou parte deles para transplante. É de grande importância e gostaria que tivesse sido reconhecida no Brasil.