Aula remota exige “disciplina e criatividade” para crianças autistas
Especialistas explicam que não há uma receita singular: há crianças que vão se adaptar bem e outras “terão o ano escolar perdido”
atualizado
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Desde o início da pandemia, a adaptação às aulas on-line foi um grande desafio para os alunos. Para crianças com autismo, essas dificuldades tornam-se ainda mais visíveis. Ana Paula Rodrigues, mãe de Arthur Rodrigues, de 12 anos, vivencia esse processo todos os dias. “No começo, achei que não ia rolar, ele gosta muito da escola, mas, se ele não quiser acompanhar, não tem jeito”, diz.
De acordo com o Inep, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) costuma ser identificado na chamada primeira infância e a prevalência é estimada entre 1% e 2% da população geral. Até 2019, o Brasil tinha 177.988 crianças com autismo nas escolas. Esse contingente precisa de atendimento individualizado.
Wania Emerich, mestre em psicologia da educação, ressalta, porém, que cada caso é um caso a ser tratado independentemente: “Os autistas, assim como os portadores de qualquer tipo de deficiência, devem ser tratados de forma individual”.
Para o Ministério da Educação “o foco no aprendizado ao longo da vida envolve muito mais do que o incentivo aos educandos para que desenvolvam apego ao conhecimento ao longo de suas vidas, envolve a intencionalidade do atendimento educacional especializado e o trabalho a ser desenvolvido pela equipe de profissionais da escola, especialmente com aqueles educandos que, por condições como o autismo severo, por exemplo, necessitam de flexibilização de conhecimentos e conteúdos no que se refere ao currículo”.
Na casa de Ana Paula, logo que a mudança aconteceu, Arthur não gostou muito e, mesmo antenado na tecnologia e com um canal superdidático no YouTube, o caminho foi longo para o garoto chegar a um resultado positivo: “No começo, tinha que ficar o tempo todo ali: ‘Abre a apostila na página tal’, ‘Olha, você tem que prestar atenção'”.
A mãe de Arthur, que neste momento também está trabalhando de casa, precisa se desdobrar para manter a harmonia da família. Ela conta que é necessário ter bastante paciência e criatividade: “Sempre preciso conversar com o Arthur e falar ‘A matéria não pode acumular’. Nós também precisamos antecipar para ele o que vai acontecer, qual será a próxima aula, o próximo passo. Realmente exige muita dedicação”.
A rotina da casa
Ana Paula conta que para que o filho possa aprender a agir sozinho é necessário que todos da casa sigam uma rotina e tenham obrigações. “O nosso dia começa bem cedo. Os garotos já acordam e logo começam a ajudar nos afazeres domésticos, como: limpar o sofá e tirar a poeira dos móveis. Cada um tem a sua obrigação. Depois disso eles vão brincar, jogar bola, em seguida entram para almoçar e se prepararam para a aula”, diz.
Atualmente, Arthur está tão acostumado que a mãe afirma que ele já se posiciona alguns momentos antes e fica esperando a aula começar. “Além de manter a rotina, que é fundamental para as crianças com autismo, nós também separamos um local para as aulas (sempre na cozinha, que é onde eu consigo acompanhar melhor, já que o irmão Davi, 5 anos, faz a aula na sala ou pode brincar/assistir sem atrapalhar ou tirar a atenção do Arthur)”, diz Ana Paula.
Mesmo com essa disciplina, contudo, a questão do convívio e o contato com outras crianças, além do irmão, é difícil, explica Ana Paula. Afinal, quando Arthur estava na aula presencial, ele gostava muito de jogar pingue-pongue e futebol no intervalo, brincar e conversar.
E para isso os pais também acharam uma solução: “Sempre procuramos relacionar a atividade com o esporte. Por exemplo: houve uma atividade na qual o Arthur precisava fazer um recorte de rostos e ele não queria fazer, então sugerimos: ‘Arthur vamos fazer com rostos de jogadores’ e logo ele topou”.
O acompanhamento na escola
Outra dica importante que Ana Paula dá é estar em contato com a escola para informações sobre o que está dando certo e o que não teve um bom resultado. E nós do Metrópoles contatamos a escola de Arthur, para falar um pouco mais como é essa jornada no ambiente escolar.
De acordo com Daniela Navilli, orientadora educacional do Colégio Educar, em Guarulhos (SP), a principal missão de qualquer instituição de ensino é trabalhar a questão do lado humano e dizer sim para a inclusão, “não só do aluno, mas da escola inteira, das pessoas que trabalham e dos estudantes. Quando a escola está envolvida nesse processo, todos os alunos estarão envolvidos. Precisa de determinação, apoio, estrutura e, acima de tudo, força de vontade”.
Daniela Navilli reconhece que o início é sempre difícil: “Existem certas limitações, como, ficar muito tempo sentado na frente do computador, e as dificuldades com as mudanças. Mas ele foi entendendo que essa dinâmica sempre vai acontecer”.
Outra dica que a orientadora expõe é a necessidade de um “pulso firme” por parte do professor: “Geralmente são alunos bem ativos, opiniosos e que podem ter alguns conflitos. Aqui cabe ao professor interferir, como pedir para esperar um pouquinho, aceitar respostas mais curtas e que fazem parte do conteúdo”.
Mais um ponto é acompanhar o universo do aluno: ” Temos que adaptar as atividades para o interesse especifico do aluno que tem autismo. Cada um tem um universo. Também é legal adaptar as perguntas e as respostas, na hora de alguma avaliação”.
Em Curitiba, pais precisam recorrer à Justiça
Como cada caso é um caso, na casa do curitibano Miguel Sallet, de 8 anos, o cenário foi bem diferente. Os pais do garoto precisaram até recorrer à Justiça, pois consideraram que o ano de 2020 foi um ano perdido, quando o assunto é a educação escolar.
“A gente teve total dificuldade no sistema remoto. Aqui em Curitiba a Secretaria de Educação optou, para a educação infantil, por aulas gravadas [e assistidas] pelo YouTube, uma forma que infelizmente não serve para o Miguel, que não tem aquele acompanhamento, não tem aquela interação”, diz o pai do menino, Rafael Sallet.
O pai ainda explica que o filho não tem uma comunicação bem estabelecida. “Ele tem um repertório de linguagem limitado, fica repetindo coisas por muito tempo. No caso do meu filho, é necessário um tutor tanto para a adaptação de conteúdo quanto para ajudar a integrar nas aulas”, Rafael ainda diz que “é fora da realidade sentar para assistir uma aula, com um nível padronizado”.
Para Miguel, segundo Rafael, “a aula remota não existiu, já que o nível de aproveitamento foi zero. E não foi por falta de tentativa, tentávamos assistir aula e depois repassar as informações para o Miguel, mas não tinha como”.
Mesmo com todas as dificuldades, a Secretaria de Educação o considerou apto a passar da 1ª série para a 2ª. Não concordando com a decisão, os pais pediram para manter o menino na 1ª, mas a ação só foi possível depois que eles entraram na Justiça.
Rafael diz ainda que Miguel continua não conseguindo acompanhar as aula, mas agora em 2021 a escola manda, toda semana, materiais adaptados. “Dessa forma já há uma adaptação melhor”, diz o pai.
Dicas para pais e mães
O acompanhamento com especialista também é muito importante, é o que avalia Wania Emerich. A psicóloga explica que crianças como Arthur e Miguel não se adaptam bem à falta de rotina: “Qualquer mudança é complicada. Sugiro dar tempo para essa criança, não dá para acreditar que ela vá adquirir o conhecimento rapidamente”.
Outro ponto é estabelecer horários. “Será ótimo se a família conseguir passar a rotina para um quadro ou um caderno, isso trará tranquilidade para a criança”, diz a psicóloga.
A especialista explica que os pais, melhor do que ninguém, devem identificar um ponto que o filho gosta, e junto com a escola oferecerem um ensino especializado. “Exemplo: se o aluno gosta de bandeira, vamos colocar bandeiras em questões de matemática”.