Para economistas, relação entre marco temporal e inflação feita por Bolsonaro “não faz sentido”
Presidente Jair Bolsonaro afirmou que eventual decisão do STF em favor dos indígenas pode causar até desabastecimento global de alimentos
atualizado
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Diante da alta inflacionária dos alimentos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) apontou um novo vilão para o aumento dos preços: uma possível alteração no marco temporal para demarcação de terras indígenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com Bolsonaro, a mudança poderia causar até mesmo desabastecimento global de alimentos.
Economistas ouvidos pelo Metrópoles, entretanto, condenam a declaração. Na avaliação deles, essa relação “não faz sentido”.
O marco temporal é uma interpretação defendida por ruralistas e grupos interessados na exploração econômica das áreas indígenas que restringe os direitos constitucionais dos povos originários. O governo federal é favorável. Conforme a tese, essas populações só teriam direito à terra se estivesse sob posse delas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
O presidente vinculou uma eventual derrubada do marco temporal com insegurança alimentar no país e no mundo, o que foi considerado um argumento “leviano” por especialistas.
“A questão, hoje, é muito mais influenciada por produtividade e menor desperdício de alimentos. O Brasil não só perde muita eficiência na hora de produzir, mas também desperdiça algo perto de 30% do que é produzido. Então, não seria melhor focar nisso em vez de entrar em retóricas não fundamentadas?”, indaga o economista-chefe da Indosuez, Fábio Passos.
O especialista acrescenta que a frase de Bolsonaro foi dita para gerar medo, e, assim, conquistar “público”. “Não alterem o marco temporal, porque vêm inflação e desabastecimento com isso. É quase a mesma coisa que dizer a uma criança: se você não dormir, o bicho papão vai te pegar”, opinou.
Na mesma linha, a antropóloga Luísa Molina categoriza o discurso como “bastante problemático” e inconstitucional, uma vez que “passa ao largo de toda a concepção de terra indígena”.
“O comentário se apoia numa desinformação do público em geral para disseminar, intencionalmente, um certo pânico. Sabemos que estamos vivendo uma inflação terrível e o presidente se apoia num discurso baseado em desconhecimento da população para reforçar um antagonismo que, historicamente, levou à violência sistemática contra os povos indígenas”, afirmou ao Metrópoles.
O discurso
O STF discute há semanas a repercussão da tese do marco temporal. Lideranças de povos indígenas de todo o país ficaram acampadas em Brasília durante semanas para acompanhar o debate e protestar contra a tese do marco temporal e o garimpo ilegal. A análise pela Suprema Corte foi mais uma vez adiada após o ministro Alexandre de Moraes pedir vista do processo.
“A gente pede a Deus que logo mais o nosso Supremo Tribunal Federal não altere o marco temporal. É uma pressão externa muito grande, mas o pessoal lá de fora não sabe as consequências disso aí. Hoje, o Brasil tem a sua segurança alimentar. Mas muitos outros países dependem do que nós produzimos para que eles lá fora tenham a sua segurança alimentar também”, disse o presidente durante cerimônia no Palácio do Planalto na manhã desta quarta-feira (15/9).
O professor e consultor da Fipecafi, Diogo Carneiro, listou motivos que explicam por que o argumento não é válido. O principal deles é a vasta área de exploração disponível para a agricultura.
“Estamos longe de alcançar o limite, de modo que não se deve falar em pressão por falta de terras disponíveis para a agricultura. Estamos muito, mas muito longe disso”, afirmou.
Ele também destacou que houve ganho na produção agrícola brasileira nos últimos anos em razão do avanço tecnológico do setor e que isso garante o abastecimento da população.
“Além disso, as áreas de reservas indígenas normalmente estão distantes dos grandes polos produtores do agronegócio. Claro que existe sobreposição, mas não é a regra. Parte da ameaça às reservas ocorre por garimpo, extração ilegal de madeira e grilagem, coisa muito distante do agronegócio sério”, completou.
A ameaça é “exagerada”, no diagnóstico da economista da Necton Investimentos Nathalie Marins. Segundo ela, hoje, a maior parte dos alimentos vem da agricultura familiar.
“Demarcar terras indígenas não vai reduzir essa oferta. Fora que o cultivo também pode crescer com o aumento da produtividade, sem expansão de área plantada”, afirmou.
Entenda o marco temporal
Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) acolheu a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente – Fatma) reintegração de posse de uma área que está em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. Lá, vivem os povos xokleng, guarani e kaingang.
Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios. A pauta é considerada o julgamento do século para os povos indígenas.
O STF julga um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) que questiona a decisão do TRF-4.
O caso começou a ser julgado no dia 11 de junho, mas foi interrompido quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista. O relator, ministro Edson Fachin, proferiu na semana passada seu voto contrário à demarcação do marco temporal. Nunes Marques empatou, a defender a tese.
Segundo Fachin, “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que (os indígenas) tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição), porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal”.
O ministro Nunes Marques alegou que todas as terras brasileiras são da União. “Todas as terras indígenas são um bem público federal”, falou o magistrado. E completou: a delimitação das terras por parte da União, por meio do marco temporal, visa “a redução de conflitos por terras e a melhoria das condições no tocante à população indígena”.