Governo estuda multar influenciadores por publicidade infantil
Portaria está em fase de consulta pública e prevê que a restrição de marketing voltado para crianças seja estendida ao ambiente digital
atualizado
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Em fase de consulta pública, uma portaria que deve ser editada ainda no primeiro semestre de 2020 pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, pode multar produtores de conteúdo e plataformas digitais e de streaming que não sinalizarem publicidade em vídeos voltados para crianças. Pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), os valores das sanções podem chegar a R$ 9,9 milhões.
Na prática, a ideia da pasta é que as regras sobre publicidade infantil ou qualquer que envolva crianças transcendam a mídia tradicional, como anúncios televisivos, e englobem o ambiente digital, bastante acessado pelo público infantil. Já há decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), suspendendo peças publicitárias voltadas a este público*.
Entraram na mira da Senacon especialmente os criadores de conteúdo de maior popularidade entre crianças – que vendem produtos em vídeos criados especialmente para atingir este público – e as plataformas que lucram vendendo dados para anunciantes.
“Hoje, se você for olhar a TV aberta, não tem mais programa infantil. Então, ou as crianças estão assistindo a programa adulto com muita publicidade ou estão em plataformas digitais”, ressaltou o secretário nacional do Consumidor, Luciano Benetti Timm, em entrevista ao Metrópoles.
Exemplos
Ele cita como exemplo de publicidade não sinalizada práticas comuns em canais de YouTube, como vídeos de “recebidos” ou de “unboxing”, em que os influenciadores mostram presentes recebidos por marcas patrocinadoras ou compras; demonstrações de determinados produtos; e mesmo youtubers que têm marcas próprias e gravam com aquilo que comercializam.
“A gente vai ter que começar a separar o que é publicidade do que é liberdade de expressão. Se eu vender algo no meio do conteúdo, é negócio. No final do dia, um blogueiro é um comerciante, um empresário”, pontuou Timm. Ele lembra que, hoje, o próprio CDC determina, ao tratar de regras para propagandas, que elas precisam deixar claro o que é publicidade, não podendo ser enganosas nem abusivas.
Regras atuais
Segundo Timm, a portaria também é importante porque as regras atualmente vigentes, como as do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), não atingem as plataformas que não são empresas publicitárias formalmente. Cabe ressaltar, ainda, que o Conar tem poder limitado de sanção: multas, por exemplo, não podem ser aplicadas por eles.
Assim, plataformas como o YouTube e serviços de streaming, como a Netflix e o Amazon Prime Video, poderiam ser responsabilizadas. O tema ainda está em discussão, ressalva Luciano Timm, mas o entendimento é de que, ao veicular aquele conteúdo, a empresa precisa “ter atenção ao que está acontecendo”.
“O que nós percebemos que era mais urgente do ponto de vista regulatório: as plataformas digitais dizem que não são empresas de publicidade e, consequentemente, elas não estão sequer sujeitas à autorregulação do Conar”, esclarece o secretário. “E a gente ouve muito que as regras não são ruins, o problema é que quem olha é o Conar, onde estão sentadas algumas empresas de publicidade, jornalismo, anunciantes. Agora, quem vai olhar é o governo.”
A previsão é de que, finalizado o texto da portaria – a minuta está disponível para que interessados proponham alterações –, e concluído os trâmites internos, ela entre em vigor em maio. A Senacon poderá propor processos administrativos de ofício, mas também pode responder a denúncias feitas pelos consumidores e pela mídia, por exemplo. Após a entrada em vigor, a portaria ainda pode sofrer alterações sugeridas por uma consultoria contratada pela secretaria.
Meio-termo
“Esse pessoal de tecnologia vê muito a internet como um espaço sem nenhuma regulação, que tentar interferir nisso está equivocado. Mas a gente tem a visão de que existe o meio-termo. Nossa visão é de que o Código de Defesa do Consumidor se aplica nesses ambientes”, acrescentou Timm, lembrando que, nos Estados Unidos, o Google/YouTube fez um acordo com a Federação de Comércio com termos semelhantes à proposta da Senacon.
Veja algumas imagens:
“Nossa proposta é ousada, porque nunca ninguém tentou fazer. Nem governos anteriores, autoproclamados de esquerda e com pauta de proteção de vulneráveis, conseguiram baixar uma portaria como essa. A gente está tendo a coragem de fazer isso, de propor isso para a sociedade como padrão mínimo”, assegura o secretário.
O texto diz que “considera-se anúncio publicitário, para fins desta portaria, qualquer mensagem, veiculada de forma escrita, por meio de sons ou por meio de sons e imagens, que, direta ou indiretamente, em mídia analógica ou digital, procure promover o consumo de produtos ou serviços postos no mercado por fornecedor”.
Ele também restringe “qualquer ação de merchandising ou publicidade indireta contratada que empregue crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios com a deliberada finalidade de captar atenção desse público específico, qualquer que seja o veículo utilizado”.
OCDE
Luciano Benetti Timm destaca ainda que a portaria, além de responder à demanda de entidades que representam o setor publicitário e organizações que tratam dos direitos das crianças, se insere na tentativa brasileira de ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isto porque uma das exigências da OCDE é que seus membros tenham regulamentação para proteção do consumidor no ambiente digital.
“Eles terão que ter cuidado com a privacidade e os dados que manipulam dos consumidores”, previu.
Mais regras
Pelas normas propostas pela Senacon, os anúncios publicitários não poderão:
- Dirigir apelos “imperativos” de consumo diretamente às crianças;
- Promover discriminação com aqueles que não tiverem o produto em questão;
- Provocar “situações de constrangimento” a pais e responsáveis para induzir o consumo”;
- Empregar crianças e adolescentes como “modelos para vocalizar apelo direto” – elas podem participar, contudo, de “demonstrações pertinentes de serviço ou produto”;
- Utilizar formato jornalístico para induzir o público a achar que aquele conteúdo é uma notícia; e
- Usar situações “de pressão psicológica ou violência que sejam capazes de infundir medo”.
*Atualização: A Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (Abral) procurou o Metrópoles para esclarecer que as decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são específicas e, portanto, não valem como proibição geral à publicidade infantil, ao contrário do publicado anteriormente. Há jurisprudência, mas não decisão terminativa. De qualquer forma, a propaganda voltada a este público tem limitações no artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, no artigo 227 da Constituição Federal, conforme ressaltado pelo art. 4º da Lei de Liberdade Econômica.