“É dor demais!”, diz mãe sobre filho sumido há 17 anos após ação da PM
Dona de casa não para de chorar e sobrevive de remédios, na luta para ter notícias do filho, desaparecido aos 12 anos após abordagem da PMGO
atualizado
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Goiânia – Maria das Graças Soares, a Graça, de 53 anos, não consegue parar de chorar há 17 anos. Nesse tempo, quando se aproxima o dia 22 de abril, esse choro ganha volume, se intensifica. É quando completa mais um ano que o filho dela desapareceu.
“É dor demais! Você sabe o que é dor?! Parece que você está com uma faca cravada no seu peito 24 horas. Só uma mãe que perdeu o filho para entender o que eu sinto”, lamentou Graça com a voz embargada. Hoje o filho dela teria 29 anos.
Murilo Soares Rodrigues foi visto pela última vez sendo abordado por policiais militares na noite de 22 de abril de 2005, em uma movimentada avenida da Vila Brasília, bairro de Aparecida de Goiânia, região metropolitana da capital de Goiás. Ele tinha 12 anos na época.
Graça não conseguiu retomar completamente a vida desde então, vive um constante misto de dor e luta para encontrar Murilo. Ela desenvolveu uma oscilação de humor com elementos psicóticos, segundo laudo médico, e para sobreviver, precisa de seis diferentes remédios diariamente.
Saudade
A dona de casa chora a todo instante e não consegue ter uma vida ativa ou trabalhar. Atualmente, depende do filho mais velho, que inclusive paga um plano de saúde para ela, fator importante para manter o tratamento psicológico e psiquiátrico. Dos três netos, um deles se chama Murilo em homenagem ao filho desaparecido.
Graça ainda mantém uma série de lembranças do filho, que guarda como um tesouro: a chuteira e uniforme que ele jogava futebol, a bandeirinha de TNT do último jogo que ele foi, fotos, todas as reportagens publicadas sobre o desaparecimento, camisetas de “procura-se” com a foto de Murilo, uma para cada ano.
“A psicóloga falava que não era bom ficar guardando as coisas do Murilo. Na hora que ela falava, eu concordava. Mas quando eu chegava em casa, eu não tinha coragem de doar”, lembra Graça.
Até o ano passado, Graça manteve o quarto de Murilo intacto, inclusive com a tinta vermelha em uma das paredes, pedido do adolescente, que era torcedor do Vila Nova. Em 2021, ela teve que doar a cama do garoto e pintar a parede, para dar espaço à mãe idosa, que agora mora com ela e usa o antigo quarto de Murilo.
Morte sem corpo
A memória de Murilo também está presente de outras maneiras. Um parque do setor Mansões Paraísos, em Aparecida, ganhou o nome de Criança Murilo Soares, projeto do vereador Willian Panda (PSB), que conheceu o garoto quando criança. A mãe de Murilo costuma frequentar o parque. “É um momento de descarrego, quando eu vou, para mim, é como se o Murilo estivesse lá”.
Em 2020, Graça conseguiu uma simulação gráfica de como Murilo seria se estivesse vivo, que ela também guarda como tesouro. No mesmo ano, foi emitida uma certidão de óbito de morte presumida de Murilo.
“Eu achei que com a certidão de óbito colocaram mais um ponto final na minha história. Como se estivesse comprovado que ele está morto, para não ficar mais cutucando. (…). Mas enquanto tiver uma luz no fim do túnel, eu vou lutar”.
Nunca mais
Oito militares do grupo Rondas Ostensivas Táticas Metropolitana (Rotam) chegaram a ser presos por um tempo e se tornaram réus acusados de assassinar e esconder o corpo de Murilo e do pedreiro Paulo Sérgio Pereira, de 21 anos, que dirigia o carro em que o adolescente estava no momento da abordagem.
Na época, uma sexta-feira, o pai de Murilo, separado de Graça, pediu que Paulo Sérgio levasse o filho no carro Palio até a casa da mãe. A abordagem policial aconteceu no meio do caminho. Paulo tinha antecedentes criminais e era frequentemente ameaçado por policiais. Os indícios da investigação são de que Murilo foi morto como queima de arquivo.
Várias testemunhas viram o momento da abordagem, quando um dos policiais entrou no carro com Murilo e Paulo. O Palio seguiu viagem, acompanhado pela viatura preta da Rotam.
Luta e ameaça
Logo depois do desaparecimento, Graça e o ex-marido procuraram a polícia e a imprensa. Foram anos pressionando as autoridades por uma resposta. Por causa disso, ela chegou a ser ameaçada por telefone várias vezes.
“Me ligavam no telefone fixo, quando eu saía na televisão ou em algum jornal. Falavam que se eu não calasse, iam me calar”, recorda Graça. Na época, ela pregava cartazes com a foto de Murilo pelas ruas da cidade.
Na primeira década de 2000 houve uma onda de pessoas desaparecidas após abordagem policial em Goiás, sendo Murilo o mais novo deles. Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Goiás chegou a contabilizar 36 desaparecidos após ação da PM nesse período.
Familiares desses desaparecidos chegaram a formar um grupo de reivindicação chamado Comitê Goiano Pelo Fim da Violência Policial, que acabou sendo dissolvido com o tempo. Alguns abandonaram o grupo por medo, após ameaças. Hoje, parentes de mortos em ações do Estado formam o Mães de Maio do Cerrado. “A gente fala por telefone, uma consola a outra”, explica Graça.
Sem Justiça
No caso de Murilo, a grande repercussão do desaparecimento gerou uma complexa investigação, com diversos depoimentos, interceptações e perícias. A própria PM pediu a prisão dos militares envolvidos. No entanto, após uma longa briga judicial, o processo foi arquivado por falta de provas.
Foram acusados, na época, Allan Pereira Cardoso, Neil Gomes da Rocha, Anderson Amado de Jesus, Wellington da Costa Cunha, Cleiton Rodrigues da Silva, Fernanda Gabriel Pinto, Thiago Prudente Escrivani e Marcelo Alessandro Capinam Macedo (morto em 2013).
Uma das questões que pesou nas decisões judiciais que levaram ao arquivamento foi a falta dos corpos das vítimas. O carro em que os dois estavam foi achado completamente carbonizado no dia seguinte, sem as rodas e o equipamento de som. Paulo e Murilo nunca mais foram vistos.
Ossadas
Graça assistiu os policiais acusados e testemunhas na Justiça. Uma das testemunhas chegou a afirmar que um dos policiais perguntou se colocar fogo em corpos com pneu deixa vestígio.
Esses detalhes acabam fazendo com que ela imagine o que aconteceu com o garoto. Ela se lembra de já ter sido chamada para coletar amostra de DNA duas vezes, mas ainda não houve exame positivo para alguma ossada não identificada.
Com a ajuda da advogada Cléria Pimenta, Graça entrou com um pedido de indenização ao Estado, que ainda está tramitando no Judiciário. A Procuradoria Geral do Estado (PGE) pediu alguns documentos do processo original para dar seu parecer no processo em fevereiro deste ano. Em abril, a Justiça determinou que esses documentos fossem anexados aos autos.
Há 17 anos uma mãe busca por notícias do filho. Apesar de todo o tempo passado, ela não desiste. Ainda tem esperança de ter solucionado o mistério do desaparecimento de Murilo. Enquanto isso não acontecer, ela demonstra que não desistirá de correr atrás de justiça.
O Metrópoles entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de Goiás e questionou se ainda há algum trabalho para localizar os restos mortais de Murilo e qual apoio que a família dele pode conseguir do Estado, mas não houve resposta até a publicação desta matéria.
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