Drauzio Varella critica ações de Bolsonaro na pandemia: “Demagogia”
Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, o oncologista criticou “negacionismo e desinformação” disseminados pelo chefe do Executivo federal
atualizado
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“Revolta” é o sentimento descrito pelo oncologista Drauzio Varella ao falar sobre as aglomerações em meio à pandemia de Covid-19. Aos 77 anos (dos quais 54 dedicados à medicina, e 32 ao trabalho voluntário em penitenciárias de São Paulo), o médico acredita que o maior erro no combate à doença no Brasil esteja sendo a “irresponsabilidade das autoridades”.
Isolado para prevenir a infecção, Drauzio acompanha os devastadores resultados que o coronavírus tem causado no país e no mundo. Na última quarta-feira (10/3), o Brasil chegou ao maior número de mortes diárias desde o início da pandemia: foram 2.286 óbitos em 24h, fazendo o total passar de 270 mil vidas perdidas.
Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, o medico afirma que, ao evitar o uso de máscaras de proteção e causar aglomerações, o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), se tornou um dos principais colaboradores para o agravamento da pandemia no Brasil.
“A população brasileira passou a receber duas mensagens antagônicas: uma, dada pelos médicos e por autoridades responsáveis, de que nós não podíamos nos aglomerar e tínhamos que usar máscara; outra, do presidente da República, seguindo o exemplo que ele dá. Sem usar máscara, aglomerando à vontade. Deu no que deu. Não podia ser diferente”, lamenta o oncologista.
O médico pensa que as atitudes de Bolsonaro — e de outras autoridades que incentivam aglomerações — são uma estratégia para alcançar a população e se autopromover na política. Drauzio acredita que as pessoas se sentem atraídas pelo discurso negacionista do presidente e reproduzem as suas atitudes. O oncologista defende, ainda, que o chefe do Executivo desrespeita as medidas sanitárias por “interesse eleitoral”.
“Usar máscara é chato, evitar aglomeração é chato, a gente gosta de estar junto, abraçar os amigos, encontrar, beijar, é disso que a gente gosta, ver os familiares e tudo. Aí aparece uma autoridade como o presidente da República e diz que é tudo bobagem, sai sem máscara, diz que pode aglomerar à vontade. Não só diz, como dá o exemplo. Tá na cara que ele vai agradar muito mais gente”, argumenta.
“Vão dizer: se o presidente está fazendo isso, ele sabe o que faz. A gente tem essa tendência de acompanhar os nossos líderes. Eles fazem isso por pura demagogia, por puro interesse eleitoral, porque eles acham que assim se tornarão mais populares.”
Desinformação
O médico rebate as críticas que recebeu de internautas e autoridades por publicar, em janeiro de 2020 — quando a coronavírus ainda não tinha se espalhado pelo globo —, um vídeo falando que não havia necessidade de temer a doença.
“Não há necessidade desse medo todo. Esses coronavírus causam resfriados. E não é por causa disso, aparentemente, que teremos um problema maior”, disse, à época. Em fevereiro, depois que conheceu o verdadeiro potencial da doença, Drauzio se retratou e retirou o vídeo do ar. Mas era tarde demais: as imagens já haviam sido replicadas em diversos sites, e foram compartilhadas até pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em março de 2020.
“É de profunda má-fé. São pessoas que colaboraram para disseminar a epidemia e agora tentam fugir dessa irresponsabilidade que tiveram jogando a culpa nos outros. Pegam um vídeo feito em janeiro — nós tiramos esse vídeo do ar rapidamente. Mas ainda se dissemina. E pra mim, dizem toda hora: não é esse o médico que falou que era um resfriado? Qual é o interesse de fazer uma coisa dessas? Eu digo: falei. E depois, tudo o que eu falei em seguida, já em fevereiro?”, defende.
A desinformação, segundo o médico, não está apenas no ato de publicar as imagens fora de contexto. Ele condena a ação de profissionais da saúde que defendem o uso de medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente, e os considera “irresponsáveis”.
Além disso, o médico criticou a produção brasileira de hidroxicloroquina, fármaco fortemente defendido por Jair Bolsonaro durante o ano de 2020, e afirmou que os Estados Unidos (EUA) fizeram uma “desova” do medicamento no Brasil — referindo-se ao envio de 2 milhões de doses do remédio, realizado pelo ex-presidente norte-americano, Donald Trump, em maio do ano passado.
“Tem médicos equivocados, médicos que não estudam, que não estão preparados para nenhum trabalho científico. Outros que agem assim por razões puramente políticas, porque o presidente da República defendia a cloroquina. O Brasil gastou milhões produzindo comprimido de cloroquina, e ainda aceitou a desova que o ex-presidente Trump fez no Brasil, porque ele também era um defensor. Mas desovaram aqui milhões de comprimidos de cloroquina, e nós criamos esse infame kit Covid”, argumenta.
Para o médico, os conselhos regionais de medicina deveriam impor normas mais rígidas para os profissionais que divulgam informações falsas. Drauzio também faz críticas ao “kit Covid”, e diz que o incentivo ao uso de medicações como ivermectina e cloroquina é resultado da “demagogia” do presidente da República.
“O kit Covid tinha essa ivermectina, tinha cloroquina, tinha azitromicina, um comprimido que você não compra na farmácia porque é um antibiótico, você não compra sem receita médica. Saímos distribuindo isso pro país inteiro, olha a irresponsabilidade. Você dá um pacotinho desse na mão das pessoas, você sabe como elas vão tomar, em que condições vão tomar, em que dose vão tomar? Olha a que ponto de irresponsabilidade nós chegamos. Por causa do quê? De uma demagogia. Porque se diz: não precisa se preocupar com isso não, essa doença é bobagem, não seja maricas”, afirma.
“Cadeia é para pobre”
Questionado se a situação na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, foi mais assustadora que o colapso causado atualmente pela Covid-19, Drauzio revela: “É difícil responder o que me assustou mais”.
O médico trabalhou como voluntário na prisão e foi espectador da precariedade vivida pelos internos na cadeia: péssimas condições de limpeza e alimentação, superlotação nas celas, assassinatos e uma epidemia de HIV — que causava outra epidemia: a de tuberculose —, que chegou ao ápice nas décadas de 1980 e 1990. Tudo isso dentro da prisão, em uma realidade protagonizada por jovens (em maioria), pretos e pobres.
“Cadeia no Brasil é para pobre. Não tem dúvidas, é para pobres, não tem rico na cadeia. Eu tinha um amigo, diretor da detenção do Carandiru no passado, que tinha uma placa na casa dele. E a placa dizia assim: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar preso na casa de detenção”, conta o médico.
No Carandiru, ele lembra, o HIV era contraído rapidamente entre os detentos, principalmente pelo uso de drogas injetáveis com agulhas compartilhadas. Com o sistema imunológico frágil devido à doença, os presos acabavam contraindo tuberculose.
No entanto, diferentemente da AIDS, a tuberculose, que é uma doença respiratória, se espalhava mais rapidamente ainda, e em contatos casuais. Em celas lotadas, os internos se contaminavam facilmente. O médico compara a situação precária daquela época com a Covid-19 nas cadeias, atualmente.
“Nós tivemos uma tremenda epidemia de tuberculose no Carandiru. Quando alguém me pergunta: você tinha medo desse trabalho em cadeia? Não, o medo que eu tinha era de pegar tuberculose, medo que eu tenho até hoje. No caso atual, você tem essa população. Aqui em São Paulo tem uma cadeia famosa chamada Cadeião de Pinheiros, você vai lá e as celas são preparadas para receber 15 homens, mas têm 30, 35. Uns 15 que cabem nas beliches e outros 15 que dormem no chão. Como é que você vai falar em isolamento nessas condições? É inviável”, pontua.
Ele defende a realização de pesquisas sobre a contaminação por Covid-19 na população carcerária — tanto entre detentos quanto entre agentes penitenciários —, já que esses espaços podem ser um grande vetor de disseminação do vírus, devido à aglomeração. No entanto, acredita que o país não consegue ter um olhar racional sobre essa discussão.
“Não é por carinho com os presos, é usar a razão. Vamos ver qual é a dimensão do problema para saber qual é a medida mais inteligente. Pode ser que a medida mais inteligente seja não vaciná-los. E pode ser que seja o contrário, vaciná-los. Não para protegê-los com o objetivo principal de protegê-los, mas com o objetivo principal de proteger a sociedade da disseminação do vírus. Isso aqui no Brasil é um assunto politizado, que você não consegue discutir com racionalidade”, afirma.
Vacina
Drauzio foi imunizado contra a Covid-19 em fevereiro. Ele revela que recebeu a vacina de Oxford/AstraZeneca, mas esclarece que, assim como todos os brasileiros, não escolheu qual fármaco iria tomar. “A sensação é ótima. Quando você recebe a vacina dá um respiro”, admite.
A segunda dose deve ser aplicada em maio, e ele conta que continua seguindo todas as recomendações de prevenção. “Continuo tomando os cuidados que sempre tomei. [Uso] máscara, não fico me reunindo com amigos. Quando faço isso, faço pela internet. E saio para fazer compras, volto, não entro em aglomerações de jeito nenhum.”
Enquanto a vacina não pode ser aplicada em massa — porque o país não comprou “vacinas quando tinham que ser compradas”, defende — o médico pede que a população se conscientize. “Coloca a máscara. É desconfortável, e daí? É um pequeno desconforto que você está tendo para se proteger e para proteger a sua família também. E se você sai pela rua, não forma aglomeração, mantém uma distância de mais ou menos 2 metros das outras pessoas. Não são cuidados que exigem um sacrifício muito grande, não são”.
O oncologista finaliza: “Nós contamos com o quê? Que os brasileiros entendam que precisam tomar esses cuidados. São só dois. E lavar a mão, que é uma coisa que a gente devia fazer como a mamãe ensinou. Não ter a mão suja de jeito nenhum”.