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Do Paraguai ao DF: a rota do contrabando internacional de cigarros

Mercado ilegal é responsável por 48% dos produtos consumidos no Brasil. Receita Federal apreendeu 221,9 milhões de maços em 2017

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Rafaela Felicciano/Metrópoles
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1 de 1 Rafaela Felicciano/Metrópoles - Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Enviada especial a Foz do Iguaçu (PR) – No Entorno do Distrito Federal, um maço de cigarros Euro pode ser encontrado a R$ 4. O valor é quase metade do preço praticado por outras marcas no mercado brasileiro, vendidas a uma média de R$ 7. Fabricado no Paraguai, o produto chega à capital federal por uma complexa rede de contrabando que envolve governos, facções criminosas e, até mesmo, organizações terroristas.

O início da rota do cigarro contrabandeado tem endereço certo: a paraguaia Ciudad del Este, famosa entre turistas brasileiros como destino de compras. Lá, estão instaladas as fábricas da empresa Tabesa, líder do segmento no mercado do país vizinho. A fabricante é o principal negócio do Grupo Cartes, conglomerado que tem como acionista majoritário Horacio Cartes, presidente paraguaio.

O Paraguai é o líder na produção de cigarros no Cone Sul. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), o país produz 60 bilhões de unidades por ano, com uma capacidade para atingir a marca dos 100 bilhões. A fabricação do produto não é crime. A entrada em terras brasileiras por meio de contrabandistas, contudo, origina um mercado ilegal que domina 48% do consumo no nosso país.

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No Brasil, onde os cigarros paraguaios respondem por 92% do mercado ilegal, os produtos das marcas associadas à Tabesa chegam a ocupar 80% do segmento clandestino. Entre os cinco rótulos mais vendidos em território nacional, informa o Etco, três são fabricados no país vizinho. “Há um altíssimo lucro envolvido nesse esquema. É uma prática incentivada e a concorrência é desleal”, afirma o presidente-executivo do instituto, Edson Vismona.

O Etco defende que a mola-mestra do contrabando de cigarros paraguaios é a diferença tributária praticada pelos governo dos dois países. Enquanto, no Brasil, o produto é taxado em 70%, no vizinho, o percentual é de 16%, o menor do mundo.


A travessia

Com um preço competitivo e sem legislação de rastreamento do produto, o cigarro paraguaio se utiliza das rotas do tráfico para entrar no Brasil. Pelo mesmo esquema que distribui drogas, armas e eletrônicos no país, chegaram os 221,9 milhões de maços apreendidos pela Receita Federal em 2017.

“O cara que faz o contrabando de cigarros detém o controle da situação, da rota. Você já tem toda uma cadeia preparada. Se não passa cigarro, passa maconha ou outra mercadoria. Ou, às vezes, tudo junto”, explica Augusto Rodrigues, chefe do Núcleo Especializado de Polícia Marítima (Nepom) em Foz do Iguaçu. Apenas na região da Tríplice Fronteira – divisão entre Brasil, Paraguai e Argentina –, a Polícia Federal apreende por ano cerca de 20 mil caixas de cigarros.

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Embaladas em sacos plásticos, as caixas são transportadas pelo Rio Itaipu, fronteira entre Brasil e Paraguai
A maior parte das marcas apreendidas são da Tabesa, conglomerado do presidente paraguaio Horacio Cartes
São destruídas por dia 1 mil caixas de cigarros contrabandeados no escritório da Receita Federal em Foz do Iguaçu
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Por ano, a Polícia Federal apreende 20 mil caixas de cigarro na região de Foz do Iguaçu. As cargas são encaminhadas ao armazém da Receita Federal na cidade

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Embaladas em sacos plásticos, as caixas são transportadas pelo Rio Itaipu, fronteira entre Brasil e Paraguai

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A maior parte das marcas apreendidas são da Tabesa, conglomerado do presidente paraguaio Horacio Cartes

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São destruídas por dia 1 mil caixas de cigarros contrabandeados no escritório da Receita Federal em Foz do Iguaçu

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Foz do Iguaçu faz parte da porta de entrada de contrabandos no Brasil, que inicia no município e se estende até Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Na região, explica Rodrigues, o esquema de transporte e distribuição é controlado por quadrilhas locais e facções criminosas com ramificações nos estados, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).

Se antes lidávamos com ‘sacoleiros’, a realidade hoje é de crime organizado. São grandes quadrilhas que atuam para levar mercadorias para o Brasil inteiro e estão associadas a facções criminosas

Rafael Dolzan, delegado da Receita Federal

No ano passado, segundo a Polícia Federal, as forças de segurança do Paraguai entregaram mais de 20 integrantes do PCC presos no país vizinho ao governo brasileiro.

Enquanto, em Foz, o contrabando atravessa pela chamada “fronteira molhada”, com o uso de pequenas embarcações, no Mato Grosso do Sul, são utilizadas estradas de terra e rotas alternativas. Em 2017, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) apreendeu 3,2 milhões de pacotes de cigarros no estado, 34% do total confiscado no país no mesmo período.

Para cruzar a fronteira, as quadrilhas se valem de carros de passeio roubados no Brasil e pilotados por menores de idade paraguaios. Os veículos são alterados (foto abaixo) com a instalação de fundos falsos e placas frias. “Com o passar dos anos e o aumento da fiscalização, as quadrilhas foram se adaptando e fazendo um uso maior de tecnologias”, explica Dolzan.

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Carro com fundo falso instalado apreendido em Foz do Iguaçu

 

Já no Brasil, as cargas de cigarro são transferidas para caminhões e carretas acompanhados, muitas vezes, por olheiros ou escoltas armadas. As principais rotas utilizadas, segundo apurou o Metrópoles, são as rodovias federais responsáveis pelo escoamento de produção agrícola brasileira, como as BRs 277 e a 163. Por via terrestre, a carga é transportada ao preço de US$ 4 o quilo.


Capital federal

Os cigarros paraguaios contrabandeados têm como destino diferentes regiões do país. Entre elas, o Distrito Federal. Para alcançar o Planalto Central, as quadrilhas se valem de estradas federais que chegam até Goiás, concentrando a distribuição e comercialização em cidades do Entorno do DF.

Apesar do DF ser uma das unidades federativas com menor entrada do cigarro paraguaio, em regiões como Ceilândia (foto em destaque) ou Recanto das Emas, o produto é vendido em bares, padarias e pequenos comércios.

“Eles [comerciantes] procuram tratar a questão de uma forma um pouco velada. Sabem da ilegalidade e, normalmente, guardam o produto debaixo das prateleiras ou em depósitos menos ostensivos”, relata o diretor da Divisão de Crimes contra o Consumidor da Polícia Civil do DF, delegado Marcelo Portela.

Para comprar, no entanto, não há empecilhos. Reportagem do Metrópoles publicada em 2016 revelou o comércio de cigarros paraguaios em regiões do Entorno. “A gente sabe que é paraguaio e trabalha escondido”, diz uma vendedora. Confira vídeo:

Questionada pelo Metrópoles, a Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social do DF disse não possuir estatísticas oficiais sobre a apreensão de cigarros contrabandeados. Apenas no ano passado, contudo, a Operação Bunker, da Polícia Civil, apreendeu 15 mil maços de cigarros e essências de narguilé contrabandeados em um depósito em Ceilândia.

Rede transnacional
Pelas ramificações de sua rede de contrabando, o mercado ilegal de cigarros paraguaios é apontado por especialistas como um dos exemplos de violação transnacional que atinge países da América do Sul. “Não há espaços sem governo. O crime organizado ocupa o que o Estado não ocupa e, na América Latina, observamos organizações atuando em diversos países”, explica o consultor em segurança pública que presta serviços ao governo norte-americano Douglas Farah.

Segundo o consultor, esses tipos de redes criminosas controlam entre 5% e 10% da economia mundial. Na América Latina, afirma Farah, além do domínio do tráfico e do contrabando nas fronteiras, elas exercem poder político em países como Venezuela e Nicarágua e são responsáveis por operações que financiam organizações terroristas como o grupo libanês Hezbollah.

O consenso é que terroristas e criminosos não atuam nos mesmos territórios porque possuem objetivos e métodos diferentes. Isso é uma grande mentira. Nós temos, em alguns países, uma espécie de ‘grande bordel’, onde todos podem ir. Eles tem um espaço seguro para se encontrar, trocar conhecimentos e seguir em frente

Douglas Farah, consultor em segurança pública

Na Tríplice Fronteira, a associação entre o Hezbollah e o PCC já é alvo de investigações da Polícia Federal há mais de 10 anos. Segundo a PF, enquanto o grupo terrorista favorecia o acesso a armamentos, a facção promovia a proteção de detentos libaneses no sistema prisional brasileiro. Em 2006, um relatório do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos chegou a listar nove pessoas na fronteira entre Paraguai e Brasil acusadas de ajudar a enviar recursos para a rede libanesa.

DNIT/Divulgação
A Ponte da Amizade marca a fronteira entre Brasil e Paraguai

 

Combate e prevenção
Com uma grande demanda por consumo, diferentes práticas de preços e conivência de agentes de segurança cooptados pelo pagamento de propina, o contrabando de cigarros desafia autoridades brasileiras e paraguaias. “Não há uma percepção de vantagem para o consumidor de comprar no mercado legal. A busca pelo produto mais barato é natural”, afirma o professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) Luciano de Souza Godoy.

Arte/Metrópoles
Por ser um item de consumo diário, afirma o professor, a aquisição do cigarro paraguaio apresenta pouco risco para o comprador. “O cigarro é vendido e consumido possivelmente no mesmo dia que chegou do fornecedor do Paraguai. E você não tem como ir atrás de quem consumiu nem saber onde ele foi originado”, explica.

Quando detidos, os responsáveis pelo transporte e distribuição do cigarro são enquadrados por contrabando, considerado pela legislação brasileira como um crime de menor potencial ofensivo. Muitas vezes, relatam agentes da PF, os infratores não chegam a ser presos em flagrante. Em último caso, respondem em liberdade.

Para o chefe da delegacia da Polícia Federal em Foz do Iguaçu, Fabiano Bordignon, o contrabando de cigarros não pode ser combatido apenas com detenções. “São grupos que ultrapassam fronteiras e desafiam o Estado. O Brasil não termina na fronteira com o Paraguai, o Paraguai transborda no Brasil e vice-versa. O contrabando existe porque dá lucro. Nós vamos continuar apreendendo cigarro, mas não vai resolver o problema”, diz.

*A repórter viajou a convite do Encontro Nacional de Editores, Colunistas e Blogueiros (Enecob)

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