Do inferno ao céu: a saga de uma mulher trans que deu a volta por cima
“Somos seres humanos, a gente tenta sobreviver nesse país”, diz Lara Miranda, mulher trans; Visibilidade trans é comemorada nesta segunda
atualizado
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“É uma sensação de insegurança constante. É como se a gente não fizesse parte dessa sociedade. Você saber que é odiada por ser diferente. É bem constrangedor e humilhante”. A declaração, em tom de desabafo, é de Lara Miranda Aquila, ex-moradora de rua, ex-usuária de drogas e mulher trans.
“É uma sensação de desprezo, de descaso. A gente sofre muito porque as pessoas matam a gente, elas nos agridem e nos xingam”, completa.
Não é por menos: de acordo com o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), foram registrados no país 131 assassinatos de pessoas transexuais e travestis em 2022.
Há 14 anos consecutivos, o Brasil se mantém na liderança do ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo, segundo dados do projeto de pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM).
Em 2004 foi criado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado no dia 29 de janeiro. “Esse dia é excepcional para destacar a nossa vivência, trazer visibilidade para a nossa comunidade, mostrar que a gente existe e faz parte da sociedade. Estamos sendo assassinadas por seres humanos igual a gente. Nós somos seres humanos iguais a qualquer outro”, afirma Lara.
Em setembro de 2023, Lara foi vítima de transfobia no Terminal do BRT de Santa Maria, em Brasília (DF). Ela foi agredida física e verbalmente pelo motorista de ônibus. “Ele me chamava de rapaz. Me chamou de demônio, de viado maldito, falou que eu não era mulher. Ele quebrou dois dentes meus e cortou diversas áreas do meu corpo”, relata. O motorista, identificado como Ademar do Nascimento Sá, foi apenas afastado de suas funções.
“Só esse ano, que começou agora, perdi três amigas para a transfobia, assassinadas brutalmente. Uma delas estava sentada com outra amiga, em um bar, e um rapaz começou a xingar e debochar dela. Para se defender, tentou gravar a situação. Ela foi executada no local, a pauladas. A família dela tá de luto até hoje”, relata Lara. O crime aconteceu em Jardim Camburi, no Espírito Santo.
“Eu me vejo na mira a todo instante. Quando eu saio à noite, eu sempre ando bem precavida, assustada. Qualquer carro que para perto de mim, eu já fico apreensiva. Porque, infelizmente, a realidade é bem dura com a gente. A transfobia é real. As pessoas nos matam não porque fazemos algo errado. Elas nos matam simplesmente por sermos o que somos”.
“Eu me chamo Lara”
Aos 14 anos, Lara Miranda saiu da casa em que vivia com a família, no Espírito Santo, por conta do forte preconceito e violência que a cercavam. “Eu sempre me identifiquei como mulher, desde criança. Eu me recordo muito bem que eu colocava as roupas da minha tia e usava toalha na hora do banho, colocava na cabeça, simulando o cabelo”, conta. “Eu sonhava em ser professora e veterinária. Só que, como eu não tive a oportunidade de ficar na minha casa para estudar e ter um futuro, eu tive que ir para a rua”.
Lara foi de ônibus a São Paulo, sozinha e apenas com o endereço de uma casa de prostituição no bolso. A cafetina pagou sua passagem. “Foi o único lugar que me acolheu. Então, eu não escolhi. Foi a minha única opção.”
“Na primeira semana, nos primeiros meses, foi bem difícil. Eu chorava muito. A minha primeira relação sexual foi com um cliente. Eu ainda era uma criança e eu tinha que vender o meu corpo todos os dias e suportar caras bêbados, homens me oferecendo drogas. Fui agredida por vários clientes. Às vezes eu não aguentava e eles me forçavam a terminar o programa”, relata Lara. Havia sido prometido que ela iria conseguir realizar seu sonho de colocar seios. Esse desejo deve ser realizado ainda esse ano.
Ao ser explorada sexualmente, agredida e induzida a usar drogas, Lara se tornou dependente química. “[Usei drogas] logo que eu cheguei a São Paulo, coagida por um cliente. A primeira vez eu não sabia no que eu estava me envolvendo, mas com o passar do tempo, eu usava aquela droga para amenizar a minha dor. Não é fácil você viver longe de toda a sua família, num estado que você não tem ninguém e ainda ter que enfrentar a dura realidade de estar numa pista. As pistas de prostituição, normalmente, são lugares desertos e sozinhos. E eu passava muito frio.”
Depois de dois anos, em 2010 e aos 16 anos, Lara foi expulsa da casa de prostituição por não pagar a mensalidade cobrada, por ter gastado todo o seu dinheiro em drogas. “Fui parar na Cracolândia, em São Paulo, e fui violentada sexualmente por três moradores de rua”, conta Lara. Ela morou na Cracolândia por cerca de três anos. “Eu cheguei a cortar o meu cabelo bem curto e a usar roupas masculinas na tentativa de não sofrer assédio”, relembra Lara.
No início de 2022, sem destino no mundo e depois de “pular” de cidade em cidade, na tentativa de se reencontrar, ela parou em Brasília. Depois de algum tempo na cidade, Lara conta que foi gravada por um casal em Águas Claras, Região Administrativa do DF. “A mulher falou enquanto me gravava: ‘olha amor, que viado engraçado’. Eu fiquei muito revoltada e avancei em cima dessa mulher e desse rapaz e quebrei o celular deles. Eles acionaram a polícia e fomos para a delegacia.”
O amor na prisão
Após prestar depoimento e afirmar que havia sido vítima de transfobia e que o casal havia feito vídeos sem sua permissão, Lara foi presa enquadrada no artigo 157 – subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência . “Passei três meses presa, onde eu conheci o amor da minha vida.”
Juntos há 11 meses, Lara e Fábio Araújo, de 23 anos, começaram a vender doces na rua e conseguiram alugar uma casa em Santa Maria (DF). “Foi o renascimento de nossas vidas. Estamos casados, há sete meses limpo das drogas e há sete meses sem morar na rua. E hoje em dia a gente luta pela nossa estabilidade financeira e por direitos. Amo a família que construí, eu, Fábio e nossos dois pets”, diz Lara.
Lara começou a gravar vídeos para as redes sociais com o objetivo de mostrar a realidade de uma pessoa transsexual. Atualmente ela tem mais de 13 mil seguidores. “Tem muita gente acompanhando a minha rotina, então eu acho que o meu papel hoje é mostrar que nós, mulheres trans, somos capazes de trabalhar. Nós temos os direitos de ser amada e não viver na prostituição”, afirma.
Hoje, além dos vídeos, Lara se prepara para começar cursos de estética, doados a ela pela ex-fazenda Leonora Áquilla, e terminar a escola. “Eu tô vivendo um sonho. Eu tô com muitos planos para o meu futuro. Eu quero terminar os meus estudos, quero fazer um curso de palestrante e quero aprender sobre direitos humanos. Eu quero mostrar para as famílias que se elas acolherem os filhos, eles não irão passar por tudo que eu passei”, finaliza.