Trans, preta e mestranda: Dandara Oliveira desafia preconceitos
A mineira de Juiz de Fora Dandara Oliveira, de 38 anos, foi aprovada em serviço social na universidade federal da cidade
atualizado
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Seu nome é Dandara Oliveira. Ela tem 38 anos e tornou-se a primeira mulher negra e travesti – como faz questão de se definir – a ser aprovada no mestrado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em toda a história. E ela sonha alto: quer que sua história inspire outras mulheres em condições desfavoráveis a se superarem. “O legado que eu quero deixar é que nós podemos ocupar todos os espaços”.
Dandara recebeu a notícia da aprovação no mestrado em serviço social no último 25 de novembro, Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. Com o êxito, ela acredita que dará voz a milhares de negras e transexuais, grupos que ainda estão marginalizados na sociedade.
Hoje servidora federal, a mulher nasceu em Furtado de Menezes, comunidade periférica de Juiz de Fora (MG), a 270 quilômetros de Belo Horizonte, capital do estado. Cresceu em meio aos extremos do preconceito. Hoje, dando sequência à vida acadêmica, ela acredita que superou a transfobia e o racismo para fazer história.
“Somos levadas a acreditar que não podemos ocupar a sociedade, principalmente nós, travestis pretas. Então, é levado a nós que a gente precisa aceitar o lugar da prostituição compulsória e do tráfico internacional de pessoas”, conta Dandara, em entrevista ao Metrópoles.
A servidora federal conta que não entrou na faculdade por meio de cotas. Ela considera, contudo, importante a reserva de vagas pois mostrou que a universidade está aberta a essas pessoas e se esforçando para mudar a sociedade. “Entendi que naquele lugar eu não seria excluída do processo por ser transexual”, conta.
Agora no mestrado, Dandara pesquisará a trajetória de pessoas trans no mercado de trabalho.
Racismo, transfobia e preconceito
Levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado nessa quinta-feira (28/11/2019), revelou que o índice de pessoas mortas por transfobia (aversão ou discriminação contra transexuais, transgêneros ou travestis) no Brasil é alarmante.
O número de assassinatos chegou a 132 de outubro de 2018 a setembro de 2019 (de acordo com a Transgender Europe) e 163 em todo o ano de 2018. O Brasil é, infelizmente, o país que mais mata pessoas trans no mundo, revela o estudo.
De uma maneira geral a transfobia acontece no dia a dia. Dandara explica que pessoas transexuais não conseguem acessar o mercado de trabalho e a academia por causa da expulsão escolar. Segundo ela, é no ambiente escolar que essa violência opera.
“A gente começa a ser expulsa da escola no Ensino Fundamental. Essa dificuldade faz com que a gente tenha aproximadamente uma taxa de 82% de expulsão. Quando somos expelidos da escola, não temos a oportunidade de acessar ao menos a graduação”, destaca.
No caso específico de Dandara, além de ela ser representada pelos dados de violência que impactam os transexuais, ela é negra. Números do Atlas da Violência, divulgados em junho deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelam mais um lamentável cenário: de 2007 a 2017, a taxa de negros vítimas de homicídio cresceu 33,1%, enquanto a de não negros apresentou um aumento de 3,3%.
Em 2017, último ano levantado pelo Ipea, 75,5% das vítimas de homicídio eram pretas ou pardas. Dandara começou com milhas atrás dos concorrentes.
“Existe inclusive uma gradação na questão da transgeneridade por conta da cor. Segundo os olhos da sociedade, a mulher transexual é aquela bonitinha, que está em casa, branquinha. Já a travesti é aquela mulher preta, que não teve acesso à escola, e compulsoriamente está na prostituição – é a marginalizada”, avalia Dandara, ao destacar, mais uma vez, que é uma travesti preta.
Sonho de criança
Dandara conta que sentiu a primeira sensação da transexualidade aos 5 anos, quando uma professora disse que o jeito dela, à época, era “afeminado”. Ainda assim, a mineira conta que se considera uma “trans tardia”, pois passou pela transição, pela primeira vez, aos 26 anos.
O reconhecimento pessoal, contudo, começou aos 8 anos, quando sonhou o sonho que considera o norte da sua vida: quando crescesse, a menina queria ser Tieta, personagem principal do clássico de Jorge Amado, o romance Tieta do Agreste.
Na trama, Tieta é escorraçada da cidade pelo pai, irritado com o comportamento liberal da jovem. Quando volta, 25 anos mais tarde, diz que veio para ficar e acaba mudando a rotina de todos os moradores da pequena cidade.
“Eu não sabia nada de Tieta, nem que era prostituta. Eu só queria ser Tieta. Uma pessoa que sai da cidade e volta uma mulher poderosa, com a sua independência”, complementa Dandara. Ela considera que a sua imersão no mundo acadêmico de forma inédita, de alguma forma, torna ela uma pessoa poderosa.