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Indígenas acusam governo de descumprir acordo em concessão de ferrovia

Governo federal se comprometeu a ouvir povo kayapó. Indígenas, porém, não foram consultados pelo Ministério da Infraestrutura

atualizado

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Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro com índios
1 de 1 Bolsonaro com índios - Foto: Marcos Corrêa/PR

Lideranças indígenas acusam o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de descumprir acordo feito em 2017 e dar andamento ao processo de concessão da ferrovia EF-170 – conhecida como Ferrogrão – sem consultar previamente os povos indígenas.

Hoje, a proposta de construção da Ferrogrão está sendo analisada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A ferrovia deve ligar Sinop, a 478,9 quilômetros de Cuiabá (MT), ao porto de Itaituba, no Pará, em uma construção capaz de gerar até 13 mil empregos.

A previsão do Ministério da Infraestrutura é de que a licença prévia para a construção da ferrovia seja emitida em abril deste ano. Enquanto isso, povos indígenas gritam em uma tentativa de serem ouvidos pelo governo.

O processo de concessão, no entanto, está “eivado de irregularidades graves”, segundo o Ministério Público Federal (MPF), “que implicam ofensas irremediáveis aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais atingidas”.

Procuradores do MPF, em conjunto com cinco organizações da sociedade civil – Instituto Socioambiental, Associação Iakiô, ATIX, Instituto Raoni e Instituto Kabu – entraram com uma representação no TCU em dezembro do ano passado para suspender o processo de desestatização.

Eles pedem também que a União seja obrigada a realizar a Consulta Prévia Livre e Informada a todos os povos indígenas e comunidades tradicionais presentes nos complexos territoriais da ferrovia.

A representação estava pautada para ser analisada nessa terça-feira (23/2), mas o TCU a retirou de pauta. Povos indígenas se mobilizam para realizar uma manifestação em frente ao prédio do Tribunal de Contas da União, em Brasília. Lideranças entregaram uma carta à presidente do tribunal, ministra Ana Arraes.

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Carta assinada por lideranças indígenas enviada à presidente do TCU, Ana Arraes, sobre a construção da Ferrogrão
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Carta assinada por lideranças indígenas enviada à presidente do TCU, Ana Arraes, sobre a construção da Ferrogrão

Divulgação/ Instituto Kabu
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Carta assinada por lideranças indígenas enviada à presidente do TCU, Ana Arraes, sobre a construção da Ferrogrão

Divulgação/ Instituto Kabu

“Vamos estar em Brasília e fazer a nossa manifestação na frente do TCU. Estão isolando o nosso direito. Tudo isso, deixou as comunidades revoltadas”, relata o índio kayapó e relações públicas do Instituto Kabu, Doto Takak Ire, ao Metrópoles.

“A gente está muito preocupado. A gente quer que o governo apenas nos escute. Eles deveriam consultar as comunidades”, prossegue o indígena.

A falta de diálogo descumpre acordo feito pela Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT), em dezembro de 2017, com o povo kayapó. Na ocasião, o presidente da audiência pública realizada pelo órgão, Alexandre Porto, assegurou que a consulta prévia seria “devidamente cumprida”.

Veja o acordo:

Ata de encaminhamento da ANTT
Governo federal prometeu ouvir indígenas do povo Kayapó antes de dar prosseguimento à concessão da ferrovia

Em tese, os indígenas esperam apenas o cumprimento da convenção número 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais – princípio basilar das relações contemporâneas entre índios e povos tradicionais com o Estado.

A norma concede às comunidades indígenas o direito de serem consultadas “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-las diretamente”.

Também define que o Estado deve “estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis”.

O governo federal chegou a realizar audiências públicas. As reuniões, porém, aconteceram nas cidades de Belém, Cuiabá e Brasília, que ficam relativamente distantes de onde será implementada a ferrovia e, portanto, das comunidades indígenas afetadas.

“O que agride os povos indígenas é o fato de nem à consulta prévia terem direito, e de maneira escandalosa se passou por cima disso. O maior desejo deles é simplesmente serem consultados e terem o direito de avaliar se será benéfico ou não”, avalia o advogado Melillo Dinis, que atua na defesa dos povos indígenas.

A situação demanda urgência, no entanto, uma vez que a construção da ferrovia poderá causar, segundo o MPF, “iminente prejuízo socioambiental” para as presentes e futuras gerações dos, pelos menos, 16 complexos territoriais indígenas.

“Os estudos até então realizados que embasam o modelo de concessão, a minuta de edital e o próprio leilão, bem como a ausência de CCPLI, poderão legitimar grandes e irreversíveis danos ao meio ambiente (água, fauna, flora, vestígios arqueológicos e históricos) e às populações indígenas, quilombolas e tradicionais”, esclareceu o MPF.

Documento publicado em novembro do ano passado pelo Centro de Sensoriamento Remoto (CSR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta os impactos socioambientais da implementação da ferrovia EF-170.

O policy brief (leia aqui) indica possíveis consequências da implantação da ferrovia, comparando o cenário atual do transporte de soja na região, que é feito majoritariamente pela rodovia BR-163, e o futuro cenário com parte da soja sendo transportada pela ferrovia.

Destaca-se, por exemplo, que mais da metade (57%) da vegetação nativa dos municípios beneficiados no cenário Ferrogrão está em áreas com alta ou muito alta aptidão para o cultivo de soja, o que indica grande risco de conversão de floresta e savana ao uso agrícola.

As análises das camadas de áreas protegidas (AP) e áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade (APCB) apontam mais evidências ao risco de impactos socioambientais. São 3,8 milhões de hectares de AP que interceptam os municípios no cenário Ferrogrão.

“Ainda que as APs possam atuar como barreiras para o desmatamento, nos últimos anos, foi detectado um aumento da supressão de vegetação nativa nessas áreas em consequência do desmantelamento da governança ambiental do país”, analisam os pesquisadores.

Em nota, o Ministério da Infraestrutura informou que o licenciamento ambiental da Ferrogrão ainda está em fase inicial. E que o rito de licenciamento ambiental estabelece que haverá consulta aos povos indígenas que possam ser afetados diretamente pelo empreendimento.

“Os estudos foram apresentados ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em novembro de 2020 e estão em avaliação pelo órgão”, explicou a pasta.

O governo federal afirmou, contudo, que as Terras Indígenas (TIs) Mekragnotire e Baú, pertencentes ao povo Kayapó, possuem distância da Ferrogrão bem acima dos limites estabelecidos pela Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015.

“Destaca-se que estão sendo seguidos todos os procedimentos definidos pelo Ibama, responsável pelo licenciamento ambiental, e pela Funai, responsável pela interlocução com os indígenas”, prosseguiu. “O governo federal tem mantido diálogo constante com essas comunidades sobre o assunto, mesmo durante a pandemia”, alegou, por fim.

Por sua vez, a ANTT informou que tem conhecimento do acordo feito em 2017 e que o direito à consulta aos povos indígenas é compromisso assumido pelo governo federal no âmbito do processo de licenciamento ambiental.

“Aos indígenas, foi oportunizado o acesso às audiências públicas promovidas pela ANTT, garantindo-se que todas as consultas relacionadas à Convenção OIT 169 a que tivessem direito seriam cumpridas”, ressaltou o órgão.

“A medida administrativa em questão é a licença ambiental e é no procedimento conduzido pelo Ibama, com apoio da Funai, que as consultas são realizadas, com base na avaliação de impactos ambientais. As análises têm demonstrado que não há afetação às TIs Baú e Mekragnotire, do povo Kayapó, que, segundo análise cartográfica oficial realizada pela Funai (Informação Técnica nº 110/2020/COTRAM/CGLIC/DPDS-FUNAI), estão distantes, respectivamente, 29,91 km e 47,7 km da Ferrogrão”, prosseguiu.

Ainda assim, a ANTT alegou que o governo federal tem mantido diálogo constante com essas comunidades.

“Destaca-se reunião ocorrida em 12 de março de 2020, em Brasília, com a participação de líderes indígenas das etnias Kayapó, Panará, Khisetje, lkpeng, Wauja, Yawalapiti, Kalapalo e Kawaiwetm, Mundurukus, Instituto Kabu e representantes do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), Ministério da Infraestrutura (MInfra), Empresa de Planejamento e Logística (EPL) e a MRS Estudos Ambientais”, prosseguiu.

A ANTT explicou também que à época da audiência ocorrida não havia informações concretas para que fossem delimitadas quais TIs seriam impactadas e, com a maturação desse traçado, foi possível realizar as plotagens e, assim, determinar quais TIs teriam a presunção de serem afetadas.

“Sobre esse assunto, cabe esclarecer que a delimitação dos povos indígenas participantes do processo de licenciamento ambiental é definido pelos parâmetros da Portaria Interministerial MMA/MC/MJ/MS nº 060/2015, a partir de provocação do órgão licenciador, e encontra-se especificada no Termo de Referência Específico (TRE) da Ferrovia, expedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) à Empresa de Planejamento e Logística (EPL), em setembro de 2019”, ressaltou.

Durante o processo da audiência pública mencionado, foram ouvidas as etnias do Parque Indígena do Xingu, Munduruku, Kayapó, além de outras, tanto nas sessões públicas presenciais da audiência pública como em reuniões privadas na ANTT, em Brasília.

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