O amor não conhece o preconceito de cor
O Metrópoles conversou com dois casais inter-raciais e um da mesma etnia para compartilhar as histórias e experiências de vidas
atualizado
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Vivemos em um país onde a população é miscigenada. Mesmo assim, duas pessoas de “cores” diferentes que resolvem se relacionar ainda enfrentam dificuldades com os julgamentos da sociedade. Ver um casal de etnias distintas não deveria ser tabu em pleno século 21, mas ainda hoje a situação é alvo de preconceito.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, apontou aumento entre casamentos inter-raciais: de 8%, em 1960, para 31%. O estudo indicou também maior possibilidade de mulheres negras ficarem solteiras. Entre as mulheres com mais de 50 anos, as negras (7% da população) despontam como maioria na categoria “celibato definitivo”, ou seja, que nunca viveram com um cônjuge.
A solidão da mulher negra foi tema do livro “Virou Regra?”, de Claudete Alves, pedagoga e mestre em Ciências Sociais pela PUC São Paulo. Na obra, a autora debate como o preterimento da mulher negra pelo homem negro afeta as possibilidade de relacionamento dessa mulher, na cidade de São Paulo.
Claudete fez observações de lugares como igrejas, teatros, restaurantes e supermercados em diferentes bairros da cidade, com um olhar voltado aos casais inter-raciais e suas composições. Percebeu que, em todos eles, os inter-raciais entre homens negros e mulheres brancas eram em número muito maior do que o contrário e do que o homem negro com mulher negra.
O Metrópoles conversou com dois casais inter-raciais e um casal da mesma etnia que compartilharam suas histórias e experiências.
Christiane & Sanderson
Não foi amor à primeira vista. O professor Sanderson Barbosa Abad, 31 anos, teve que insistir três vezes na mesma festa para ganhar uma chance com a jornalista Christiane de Sousa Barbosa Abad, 30 anos. Mas, depois que o casal ficou junto, os dois não se desgrudaram mais. São 8 anos entre namoro, noivado e casamento.
Christiane e Sanderson são diferentes de diversas maneiras. Ele é definido pela esposa como nerd, ela já foi taxada pelos amigos dele como patricinha. Ah, e claro: Sanderson é negro e Chris é branca. Entretanto, a diferença racial é o que menos preocupa os dois.
Você se casa com a pessoa que você ama e você a escolhe pela pessoa que ela é, seja branca ou negra. Eu não acordo todos os dias e penso ‘olha meu marido negro’; eu acordo e vejo meu marido
Christiane Abad
Christiane revela que sempre sentiu mais atração por homens negros. O relacionamento anterior também foi com uma pessoa negra e durou quatro anos e meio. Enquanto Sanderson afirma ter se relacionado mais com mulheres brancas, até por sentir uma relutância das mulheres negras em se relacionar com ele.
Os dois pensam muito em ter filhos. O maior debate relacionado ao assunto, que é recorrente entre o casal, são os valores que passarão. “Não nos importa a cor que nascerem. Pra gente é muito natural, então queremos que eles cresçam pensando assim, por mais que o mundo pense diferente”, diz Sanderson.
O professor diz que faz questão de passar para os filhos as suas raízes negras. O pai e a mãe eram praticantes de capoeira, e ele não vê a hora de repassar para a próxima geração, assim como tudo que recebeu da cultura afro em sua infância. Ainda sobre filhos, o casal diz que uma pergunta frequente feita por conhecidos e estranhos é: “Como será o filho de vocês?”. Também cansaram de ouvir: “Vocês formam um casal tão diferente”.
Comentários sem noção
Os dois concordam que Christiane ouve mais comentários preconceituosos e sem noção do que Sanderson. Ele acredita que as pessoas não têm coragem de falar para ele, que tem o pavio curto. Para tirar Christiane do sério é só se referir ao marido dela como “moreno”. Em certa ocasião, ao conhecer Sanderson, uma pessoa comentou: “O seu marido é moreno, mas parece ser um bom marido”. A avó de Sanderson também costumava comentar, em tom de brincadeira, que o relacionamento seria bom para clarear a família.
Um fato que marcou o casal aconteceu no dia do casamento. Sanderson precisou ir ao salão de festa para levar um quadro com foto dos dois. Uma pessoa da decoração olhou para ele e em tom ríspido disse: “Se não tiver como pregar, pode levar de volta”. Sanderson não engoliu e pediu respeito, não só por ser o noivo, mas por ser um ser humano.
O casal acredita que em situações de racismo, preconceito ou discriminação, não dá para ficar calado. “Temos que lutar para ter respeito. Não acho que essa questão racial está melhorando, as pessoas só estão mais inibidas porque hoje existe punição, é crime”, defende Sanderson.
Felipe & Marina
O empresário Felipe Evangelista, 26 anos, e a estudante de biologia Marina Moreira, 23 anos, conheceram-se durante uma discussão sobre feminismo. Após muitos gritos, eles fizeram as pazes, muito bem feitas por sinal. Já são dois anos juntos, uma novidade na vida de Felipe, que nunca tinha ficado com uma mulher negra. “Na verdade, eu não convivia com muitas negras, foi mais uma falta de conhecer mesmo”, explica o empresário.
Marina só se envolveu com homens brancos e acredita que isso aconteceu por ser inserida em um contexto de maioria branca. “Por mais que sentisse atração por homem negro, nunca encontrei nenhum que quisesse se relacionar comigo”, diz.
Filha de mãe branca e pai negro, ela começou a assumir mais sua negritude há pouco tempo. “Meu pai sempre trouxe a negritude, me pedia para parar de alisar o cabelo, mostrava músicas”, relembra.
Mas só foi fortalecer a sua negritude depois de um intercâmbio na Europa, pelo Ciência sem Fronteiras, quando sofreu algumas situações de racismo e se percebeu destoante dos moradores de lá. Acompanhada por uma pessoa branca na fila de uma boate, o segurança disse que ela não podia entrar, mas a outra pessoa foi liberada. Também foi confundida algumas vezes com funcionários dos estabelecimentos.
A minha criação foi: ‘Você tem que ser duas vezes melhor para ser considerada normal. Já fala alto, bota banca, que ninguém vai encher seu saco’
Marina Moreira
Sem traumas
Ao voltar de viagem, Marina teve mais uma vez a ajuda do pai nessas questões e parou de alisar o cabelo. Como um casal, Felipe e Marina nunca passaram por nenhuma situação parecida. Não reparam olhares, nunca ouviram piadinhas ou perguntas preconceituosas. Marina acha que é sorte, Felipe acredita que, por ele ser grande, as pessoas não têm coragem de abordar o casal.
O único caso que os dois conseguem lembrar envolve alguns amigos brancos do Felipe, que comentaram na frente da Marina que nunca se relacionariam com mulheres negras por não sentirem atração.
O irmão mais velho do Felipe é casado com uma mulher negra e na família dele o tema nunca foi um tabu, muito pelo contrário, sua criação sempre foi muito aberta. Falando da família, ele lembra de uma história que o irmão passou com a esposa durante uma viagem para Fortaleza. Os funcionários do hotel confundiram a esposa com uma prostituta e se ofereceram para se livrar dela e arrumar outra.
Marina diz que a sociedade ensina que a mulher branca é mais atraente, que o homem branco é mais atraente e as pessoas compram essa ideia. Com isso, as mulheres negras ficam mais sozinhas. Para ela, é mais difícil a mulher negra ser levada para dentro de casa, apresentada à família.
A estudante acredita que isso acontece porque a mulher negra é estereotipada. “Acham que as negras são voluptuosas, a mulata sexualizada que, uma vez por ano, é exibida dançando pelada na televisão” e é interrompida pelo namorado que acrescenta: “A Globeleza é mostrada em qualquer horário na televisão aberta com nu frontal”.
Somos muito mais sexualizadas que as mulheres brancas. A cultura mostra que mulher branca é pra casar, negra pra limpar e mulata para sexo casual. Ainda bem que nunca quis me relacionar com um homem que não quisesse me apresentar para a família
Marina Moreira
Iris & Fausto
Juntos há 31 anos, os jornalistas Fausto José Barbosa, 58 anos, e Iris Cary, 49, conheceram-se por meio de amigos na faculdade de jornalismo, em Santos (SP). Fausto tinha visto Iris em duas ocasiões: na praia e em uma vernissage. Iris diz que ao esbarrar em Fausto sentiu um choque. Fausto achava que Iris era a mulher perfeita. Iris deixa claro que não faltava paixão.
Tiveram duas filhas – Naomi, 22, e Tainá, 21. Criaram as meninas em Santos e, depois, vieram para Brasília atrás de novas perspectivas, uma delas que elas pudessem tentar entrar na UnB pelo sistema de cotas, oportunidade que o casal julga muito importante.
Atualmente, as duas são alunas da Universidade de Brasília. Naomi cursa antropologia e Tainá artes cênicas. Na época da primeira filha prestar o vestibular, abriu-se uma ampla discussão em casa, porque o casal sempre defendia o direito das cotas e a filha mais velha não quis se inscrever por cotas. Hoje ela reconhece que foi um ato despolitizado.
Iris teve poucos namorados, mas chegou a se relacionar com homens brancos. Fausto foi mais namorador e se relacionou com muitas mulheres brancas.
Temos que analisar uma série de aspectos. Naquela época, eu era um dos poucos negros na universidade, era raridade mesmo. Vivia muito em um universo branco. Não era como hoje, que as universidades têm a mistura de raças. Negro que ia para a universidade era bancado pelos esportes ou algo assim e havia poucas mulheres negras, eu não tinha muito contato
Fausto Barbosa
Para ele, amadurecer a própria negritude no Brasil é muito difícil por ser um processo dissimulado. “O preconceito é evidente, mas a discriminação é dissimulada. Racismo então…”, diz.
Iris lembra que a sogra é de família tradicional e católica, e fazia muito gosto do filho ter encontrado e casado com uma mulher negra.
Sem misturas
Fausto teve mãe empregada doméstica e pai pedreiro. Sabendo como a violência na periferia negra é cruel, a mãe sempre tentou tirar o filho dessa realidade, levando-o para boas escolas e inserindo-o em outros ciclos de amizade. Iris cresceu em uma família de classe média e não teve a negritude discutida em casa até muito tarde. “Eu não me reconhecia como negra, não era uma pauta da família. Éramos negros de classe média. Só quando comecei a namorar com o Fausto esbarrei nessa questão”, relembra.
Tudo mudou no momento em que se tornou mãe, foi quando deu o estalo dessa e outras questões. Para ela, a obrigação de deixar algo melhor para os filhos se tornou concreta. Embora não tenha sofrido preconceito, conhecia muita gente que passava por situações de racismo.
Como pais, fizeram questão de firmar a negritude das filhas. Desde pequenas assistiam animações com pessoas negras nos papeis principais, tinham bonecas negras, usavam cabelo com trancinhas. O tema é discutido em casa cotidianamente.
Naomi e Tainá têm uma autoestima bem elevada e não deixam ninguém tratá-las de forma inferior. Há seis meses, uma das filhas do casal estava na lanchonete da universidade e o celular de uma garota sumiu. A filha foi acusada publicamente de ter roubado o celular, mesmo falando que não tinha feito nada. A garota que perdeu o celular levou dois seguranças dentro da sala e continuou com as acusações. A família abriu um B.O ao saber do ocorrido. O celular foi encontrado em seguida e a acusante nunca pediu desculpas.
Iris acredita que o racismo ainda é tabu e defende que se todo mundo tiver oportunidades iguais vai dar certo.