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Descendentes escrevem cartas a Cartola, Carolina Maria de Jesus, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez

A convite do Metrópoles, familiares de grandes personalidades negras da história do Brasil escrevem cartas em memória dos entes queridos

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Os ventos que sopram são diferentes, mas o mundo ainda é um moinho. Cartola não viu a Mangueira levar seu 20º título no carnaval carioca com um samba-enredo sobre heróis esquecidos, levando para a avenida o Brasil “que não está no retrato”, em 2019.

Abdias Nascimento, símbolo do combate à discriminação no Brasil, partiu em 2011, após viver 97 anos em um mundo que permanece desigual. A escritora Carolina Maria de Jesus, famosa pela obra Quarto de Despejo, morreu em 1977 e não presenciou o livro mais vendido no Brasil ser de uma mulher preta falando sobre racismo — a filósofa Djamila Ribeiro conquistou o feito com seu Pequeno Manual Antirracista, em 2020. Lélia Gonzalez, pioneira nas discussões sobre a relação entre gênero e raça, morreu em 1994, e também não pôde comemorar esse feito.

O que eles diriam sobre o mundo atual? O que gostariam de saber e o que os faria protestar? Como quem manda mensagens em garrafas lançadas ao mar, descendentes dessas personalidades escrevem as cartas a seguir.

“A fome é amarela”

As mãos de Carolina Maria de Jesus remexiam o lixo em busca de comida, enquanto os três filhos esperavam pelo que sairia dali. Por um momento, aquelas mãos deixavam de revirar os restos para apoiar-se na cabeça. “Tenho que escrever agora”, dizia. 

A professora Vera Eunice, filha de Carolina, hoje com 66 anos, lembra-se da urgência que a mãe sentia em colocar no papel as palavras que brotavam em sua mente, uma das mais brilhantes do Brasil, da onde saiu a obra-prima Quarto de Despejo, traduzida em 13 idiomas, para mais de 40 países. 

“Sentávamos na guia da calçada, ela tirava um lápis de dentro do bolso e ali, num pedaço de papel que pegava de qualquer lugar, escrevia o que lhe vinha na mente”, relata Vera.

“15 de julho de 1955 

 

Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente, somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar…”

Trecho de abertura do livro O Quarto de Despejo, 1960

Carolina Maria de Jesus vendeu mais de 1 milhão de livros e, ainda assim, morreu pobre. Como relata o jornalista Tiago Rogero, no podcast Vidas Negras, naquele tempo, entre os anos 1960 e 1970, era difícil ter controle sobre o que e o quanto era vendido no exterior, por exemplo. Muitas vezes o dinheiro não chegava ao bolso de Carolina.

“Tenho várias cenas na minha memória, principalmente quando morávamos na favela. Me lembro bem dela magérrima, sempre malvestida, da luta que ela tinha para trazer alimentos para nós, os filhos, e quando não tínhamos nada para comer chamava-nos para cantar. Cantávamos e dormíamos sem comer”, relata Vera Eunice.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento, Minas Gerais, em uma comunidade rural. Teve infância difícil e frequentou a escola somente durante 1 ano e meio, o suficiente para despertar nela a paixão pela escrita.

Em 1937, após a morte da mãe, Carolina mudou-se para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e grávida, passou a viver na favela do Canindé, na zona norte da capital paulista. Ela registrava com crueza o cotidiano da favela nos cadernos que encontrava no lixo.

“Ela sentia-se muito mal nas ruas catando papéis, pois saíamos todos de casa sem comer nada, então ela sentava-se na calçada e vomitava bílis, amarela, e via tudo rodando e amarelo. Daí a expressão: ‘a fome é amarela’. Até na fome ela conseguia colocar o lirismo”, relembra a filha.

Carolina Maria de Jesus tornou-se reconhecida como escritora após contato com o jornalista Audálio Dantas, que, em 1950, levou seus manuscritos para publicação – ainda hoje há questionamentos sobre edições que teriam sido feitas, descaracterizando parte do estilo original de Carolina.

Na carta a seguir, Vera Eunice anuncia que os manuscritos da mãe serão publicados com o conteúdo original. Ela também fala sobre as lembranças mais marcantes que guarda de Carolina.

“Ela me carregava no colo, levava um saco de papéis na cabeça, outro nas costas e uma sacola amarrada na cintura com um barbante onde carregava fios e alumínios. Sempre falava que a cabeça era a parte mais forte que tinha, pois com ela carregava latas com água, sacos com papéis e ainda escrevia.”

Escrever era o refúgio de Carolina, seu maior talento e o que a salvava da escuridão. “Na adolescência, me lembro dela sempre escrevendo dia e noite. Durante o dia, escrevia debaixo de uma árvore no sítio e, à noite, na cama. Como sempre dormi na sua companhia, eu a via escrevendo à luz de velas ou com uma lamparina.” A luz maior vinha de dentro.

“Quem inventou a fome são os que comem.” 

“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”

Carolina Maria de Jesus

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Carolina Maria de Jesus e Vera Eunice

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“SÃO PAULO, 19 DE NOVEMBRO DE 2020

DONA CAROLINA MARIA DE JESUS,

Estou lhe escrevendo esta carta em terceira pessoa, pois sei que a senhora não me pertence mais, mas sim ao Brasil e ao mundo. Quando a senhora se tornou uma escritora, com seu nome grafado na capa do seu livro Quarto de Despejo, em 1960, colocou vários problemas pelos quais passávamos, mas devo lhe informar que estamos em 2020 e os problemas continuam muito semelhantes. 

Ainda temos muitas pessoas passando fome, muitas mães criando seus filhos sozinhas, hoje chamadas de mães solo, mas o negro está mais empoderado, procura sempre se aprimorar nos estudos, e aqui a senhora se tornou uma referência para a comunidade negra que mora em comunidades que no seu tempo eram chamadas de favelas.

No seu centenário, lhe fizeram muitas homenagens, e agora o seu nome está em várias bibliotecas, escolas e ruas. Os adolescentes e as crianças adoram ouvir a sua história, e tenho realizado muitas palestras falando da nossa vida na favela, na casa de alvenaria e depois no sítio, e como a senhora sofreu a vida toda, mesmo depois de ser uma escritora renomada.

Olha, uma notícia muito importante que vai lhe deixar muito feliz. Todos os seus manuscritos serão editados, mas como a senhora escreveu!!!!!! São muitos, mas eu tenho acompanhado, e como são lindos os seus romances, os poemas, as peças teatrais, os contos, os provérbios e as letras de músicas. Quanto àquela carta que me deixou e me fez vários pedidos, estou procurando contemplá-los.

Cuidei do João José até a sua morte, como me pediu, preservei o seu sítio, procuro deixá-lo tal qual me pediu, estou propagando a sua memória aos quatro ventos do mundo, no seu túmulo tem um livro como sempre quis e me formei professora, pois sei bem como a senhora valoriza esta profissão, porque se não fosse aquele um ano e meio de estudo que aquela professora lhe proporcionou, a senhora não seria uma escritora renomada.

Hoje, o meu objetivo de vida é colocar a senhora na literatura junto com Clarice Lispector, Jorge Amado e outros, mas aconteceu um fato muito importante. O Conselho de Coordenação do CFCH, em sua 880ª reunião, aprovou por unanimidade o título de doutora honoris causa à escritora Carolina Maria de Jesus. 

Na justificativa, a comissão destaca a relevância da escritora nascida na década de 1910 e falecida em 1977, que é tema de 58 teses e dissertações nos últimos seis anos, de acordo com o portal da Capes. Aqui vou terminando. Percebeu como o seu sonho foi alcançado? O seu exemplo de vida é seguido por várias mulheres, e todos aqui admiram a sua literatura, os ricos, os pobres, os adolescentes, as crianças, os negros, os brancos, e a senhora hoje é conhecida no mundo todo.

Ahhh!!! Ia me esquecendo. A senhora é muito politizada. A POLÍTICA NÃO MUDOU MUITO NÃO. OS PROBLEMAS AINDA CONTINUAM.

 

“O meu sobrinho capitalista”

A história da família Nascimento é marcada por idas e vindas. Órfãos de mãe logo no começo da vida, sete irmãos se separaram, cada um migrou para uma região do país. Um deles, Abdias Nascimento, que se tornaria um ícone do movimento negro no mundo, indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2010, foi de Franca (SP) para a capital São Paulo, depois para o Rio de Janeiro. Mais tarde, de 1968 a 1981, foi forçado a viver nos Estados Unidos, como exilado durante a ditadura militar. Os outros familiares se espalharam por diferentes localidades do Brasil.

Naquele tempo, não havia facilitadores da comunicação, como telefone celular, internet e WhatsApp. Era comum que famílias perdessem contato e durante muito tempo buscassem seus parentes. Por anos, os irmãos só souberam de Abdias por algumas poucas notícias na imprensa.

No começo dos anos de 1970, César do Nascimento, sobrinho de Abdias, adolescente naquela época, soube que o tio faria uma exposição em São Paulo. “O destino faz as suas brincadeiras. O irmão da minha mãe ouviu no rádio que o Abdias estava no Brasil e tinha uma exposição dos quadros dele na Avenida Paulista”, relata. Filho único, César foi “intimado a ir buscar o Abdias”. O pai de César, Antonio, era o irmão caçula de Abdias, e já não tinha as pernas, devido a uma amputação.

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César encontrou o tio desmontando a mostra de arte. “Ele estava de costas, na galeria, coordenando a retirada dos quadros. Foi a primeira visão que tive dele”, lembra. Abdias voltou-se para trás e disse: “Não vai me dizer que é meu sobrinho”. “Ele estava cansado de as pessoas procurarem por ele mentindo. Quando eu disse: sou o filho do Antonio, ele começou a chorar”. Após décadas de desencontros, César tornou-se o elo entre familiares e o tio.

Abdias voltou para os Estados Unidos, mas não perdeu o contato com César. Eles criaram o hábito de se comunicarem por cartas. Os dois compartilhavam notícias de casa, provocações intelectuais e reflexões sobre política. O sobrinho promoveu uma palestra histórica de Abdias Nascimento na PUC, no fim dos anos 1970, com o processo de abertura política.

Dia da Consciência Negra. César Nascimento, sobrinho de Abdias do Nascimento

Sobrinho e tio tinham muito em comum e também algumas diferenças. Abdias era neto de africanos escravizados. Seu pai era sapateiro e músico; sua mãe doceira. A família era tão pobre que, mesmo sendo filho de sapateiro, o menino passou a infância descalço.

Vieram da mãe, Josina Georgina Ferreira do Nascimento, seus primeiros exemplos de resistência e autoafirmação, na longa trajetória que fez dele um símbolo do movimento negro brasileiro. Abdias trabalhou desde os sete anos de idade e tem currículo extenso: era ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos.

Com o Teatro Experimental do Negro, em 1944, alfabetizou pessoas negras, falando sobre diversidade e autoafirmação. Formou um grupo composto por domésticas, analfabetos, operários e desempregados, todos negros, para estudar teatro e montar peças.

Já César seguiu o caminho corporativo, tornando-se executivo de grandes multinacionais. “Nunca fui o militante típico dos anos 1970, alguém que não dá bola para as convenções de vestimenta, de comportamento. Eu era executivo, andava de paletó e gravata, falava inglês. Abdias me apresentava como o sobrinho capitalista”, conta.

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César é formado em Ciências Contábeis, com pós-graduação lato sensu em gestão financeira, controladoria e gestão de custos. Tem uma carreira extensa e variada, com atuação em empresas internacionais. Começou como auditor na PricewaterhouseCoopers e depois seguiu o caminho de executivo de alto nível. Foi o primeiro CFO da Microsoft e se reunia com Bill Gates. Depois de 20 anos nessa área, decidiu criar a própria empresa e sentiu mais de perto o racismo.

“Nesse meio, a pessoa te engole pela corporação que você está representando. Ele tem dúvidas sobre sua capacidade individual, mas se a Price deu o amém alguma coisa de boa tem ali. O negro não tem estereótipo do empresário. Estamos evoluindo nisso, mas ainda não tem. Imagina 30 anos atrás.”

César fundou então o Integrare – Centro de Integração de Negócios, criado para aumentar as oportunidades de negócios para descendentes de índios, afrodescentes e pessoas com deficiência junto às grandes corporações.

 

Entre 2000 e 2019, as empresas envolvidas movimentaram em volume de negócios meio bilhão de reais. Atualmente, a entidade tem 800 associadas, denominada Empresa Fornecedora Integrare (EFI).

Em todo esse processo, César inspirou-se na determinação do tio Abdias, que, no fim da vida, passou a referir-se a ele de maneira diferente. “Esse é o meu sobrinho inteligente”, dizia.

“O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume, e por isso não tem culpa nem autocrítica”, Abdias Nascimento

20 de novembro de 2020

Querido Abdias,

Há muito não nos comunicamos. Que saudade de ti e de nossos bate-papos, vez ou outra! 

Estou certo de que você está bem e ao lado de todas nossas grandes lideranças antepassadas. A troca de ideias e análises de nossos pedidos devem ser intensas por aí… e vocês nossos ancestrais têm muito que nos iluminar em nossas ações por aqui.

Estamos todos bem, Aurea, Gustavo, Leandro, Felipe e o mais novo herdeiro dos Nascimento da Casa Verde – o Pedro, meu querido neto que nos enche de alegria e admiração pelos lampejos, já demonstrados, de inteligência aguda, apesar da pouca idade.

O Brasil tem mudado muito nos últimos anos, você sabe, e o triste é que em nosso campo de batalha não só não melhorou como dá sinais de que estão conseguindo ferir gravemente aquilo que você tanto lutou para conseguir: estão “arrancando pedaços” e “estocando com arma branca” a essência da nossa tão desejada e suada conquista que foi a Fundação Palmares.

E o tragicômico dessa, que faz com que pareça estória, é que o algoz é filho de nosso jornalista, poeta, autor e membro vibrante do movimento negro, o grande Oswaldo Camargo. E infelizmente essa pessoa leva junto ao seu nome o nosso sobrenome e pelo que faz não o é merecedor. Ele desqualifica as lutas, não só de seu pai, mas de todos os afrodescendentes ao longo de todos esses quase século e meio pós “abolição”, totalizando mais de 500 anos de árdua labuta na construção desse país com o suor e sangue de nossos ancestrais, que além disso contribuíram com o enriquecimento dessa cultura que pretende-se europeia, apenas.

É difícil crer, mas ele nos classificou como “escoria maldita” e não reconhece e não dá suporte ao dia 20 de novembro. Tudo isso me parece apenas uma postura para agradar seu chefe, o qual, apesar de tudo que a ciência já provou e demonstrou, crê – não dê aquele seu sorriso maroto por favor – que a terra é plana e que essa pandemia que vivemos é apenas uma gripezinha, apesar das evidências que “povoam” nossos cemitérios, com mais de 165 mil mortos até o momento, no País.

Sabe, nossas lideranças – tenho essa convicção, como num passado que você vivenciou e sofreu – sentem muito a sua combatividade e determinação e por certo os seus conselhos.

Mas a boa notícia é que indivíduos como esse não irão nos derrotar, muito pelo contrário, eles, sem saber, nos fortalecem. O Integrare – lembra-se dele? Então, gerou mais de meio bilhão de reais de negócios entre as grandes empresas e as empresas de afrodescendentes, pcd´s e descendentes de índios brasileiros nos últimos 10 anos, e, nesse novembro, ele completou 21 anos de existência formal. Isso demonstra que a economia de mercado tem muito a contribuir com os processos inclusivos aqui no Brasil.

Nos últimos anos, alguns fatos trouxeram consciência a muitos executivos e empresários que agora não só consideram a nossa proposta, mas de verdade implantam programas de inclusão da diversidade em suas atividades empresariais, sem considerar isso caridade apenas. Dia desses houve uma “crise” social por quê uma grande empresária, filha da querida Franca (SP), decidiu e aplicou a prática de contratar, como trainees de executivos em seu programa anual, apenas afrodescendentes.

Foi uma grita geral por parte daqueles que não compreendem ou não querem compreender o quanto o racismo estrutural está instalado nas estruturas da sociedade brasileira. Por outro lado, no “Roda Viva” da TV Cultura de algumas semanas atrás uma outra empresária – fundadora de um banco digital, fez uma afirmativa leviana à suposta falta de afrodescendentes capacitados para assumirem posições de destaque em sua organização e teve como resposta um grande protesto por parte da comunidade preta, perda sensível de correntistas, etc.

Isso resultou em retratações por parte de sua organização na imprensa, além de pouco dias atrás ter anunciado uma verba de algumas dezenas de milhões de reais para apoiar programas de diversidade nos negócios na expectativa de reverter o dano causado à sua imagem!

Eu estive ano passado em Franca para recarregar as baterias, e visitei a Casa da Cultura e do Artista Francano Abdias Nascimento, que estava muito linda. Eu fui beber um pouco da história de nossa ancestralidade por aquelas terras e foi muito bom encontrar com gente nossa por lá.

Agora, “escuta” essa história risível: após o STF determinar a distribuição das verbas de campanha eleitoral de forma equitativa entre candidatos brancos e negros, o número de candidatos que alterou sua “raça” de branca para “pardo” e de “pardo” para negro ou preto foi enorme!

Veja só, agora para muitos é bacana ser “preto”, como qualificados pelo IBGE, a soma de pardos e negros. Quem diria hein tio, ser preto passou a ser conveniente! O Ministro Luiz Roberto Barroso foi um dos que votou a favor dessa medida já para as eleições de 2020. E outro dia, ele me surpreendeu positivamente – gosto dele, em uma participação no “Roda Viva”, fazendo comentários elogiosos e saudosos sobre você. Meus cumprimentos a ele.

Com um grupo de amigos – liderados pelo Gil Marcos, estamos formalizando um instituto exatamente hoje denominado Instituto UAB – União Afro Brasil, cujo objetivo é atuar na formação, apoio, articulação – dentre outras coisas, para aumentar a participação dos afrodescendentes nos escalões políticos institucionais e partidários, nas estruturas dos três poderes no Brasil. Trabalhamos muitos nessas eleições municipais que ocorreram no último dia 15.

Tem gente muito boa conosco que nem dá para citar todos. O que mais me atraiu na proposta é que ela é supra partidária e entre nossos candidatos há representantes de várias partes do país: temos gente de esquerda, direita e de centro. Ainda estamos apurando quantos de nossos candidatos foram eleitos, mas estamos muito otimistas com o futuro. Essa gente – feito esses que nos desprezam, não tem a menor ideia daquilo que estamos engendrando e que iremos conquistar. Nos aguardem, pois entre os apoiadores dessa proposta há muitos não negros, com certeza, antirracistas.

É, vou ficando por aqui, pois essa comunicação é por carta e hoje em dia é tudo através desse tal de “zapzap”. Tenho muito mais para te escrever, mas fica pra uma outra oportunidade.

Saudades de todos. Fique bem e lembre-se sempre de nós.

De seu sobrinho cheio de saudades e admiração e com amor de todos nós, os Nascimento de Sampa.

Beijos!

“A sensação é que estamos em um filme hollywoodiano”
Se tivesse de narrar o mundo atual à tia-avó Lélia Gonzalez, Gabriela de Almeida, 37 anos, daria contornos de roteiro cinematográfico ao relato. As duas conviveram intimamente, pois dividiram o mesmo lar ao longo da vida, e teriam muito para conversar. O ditado de que “em casa de ferreiro o espeto é de pau” não se aplica aqui.

A proximidade com o pensamento vanguardista de Lélia Gonzalez influenciou mulheres da família a seguirem os passos da intelectual brasileira pioneira em estudos que trazem interseccionalidade entre raça, gênero e classe. Gabriela é assistente social e fala sobre a influência da tia.
“Lembro dela ter uma estante gigante cheia de livros em casa. Ela nos despertou desde cedo para a luta contra o racismo e em defesa das mulheres negras, do público LGBTI+”, relata.

Ela também se lembra com carinho dos passeios no Planetário da Gávea, dos álbuns de fotografia que Lélia fazia para as sobrinhas e de ter aprendido a andar perseguindo o gato da tia Lelé, como a chamava, pela casa.

Uma das netas de Lélia, Melina Lima, 35 anos, tornou-se historiadora. “Quando minha avó morreu, eu tinha 9 anos e não tinha noção de quão grande ela era, do legado dela como mulher negra. A gente sempre aprendeu sobre igualdade, sobre reagir à violência racial. Só existir é uma luta”, afirma Melina.

Foi Lélia quem a fez querer entender as estruturas do racismo no Brasil e no mundo. “Fui buscar embasamento teórico para lutar contra isso. Ela era essa força de estudar, lutar, quebrar barreiras e apontar a disparidade social e racial nesse mundo”, acrescenta.

Nascida em Belo Horizonte, Lélia era filha de um operário negro e de uma empregada doméstica descendente de indígenas. Mudou-se para o Rio de Janeiro, formou-se em história e filosofia. No doutorado se especializou em antropologia política. Seu trabalho tem raízes também na psicanálise e no candomblé, o que ajudou a formar uma identidade afro-latino-americana dentro do feminismo.

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O sobrenome Gonzalez foi herdado do espanhol Luiz Carlos Gonzalez, com quem se casou no final da década de 1960. Lélia teve amplo envolvimento político, participou dos debates referentes à Constituição de 1988 e integrou o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Sua voz ecoou pelo mundo quando ela representou o Brasil em conferências do continente africano à América Latina, passando pelos Estados Unidos. “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, afirmou Angela Davis, referência do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019.

Atualmente, Lélia Gonzalez dá nome a um prédio da ONU Mulheres, no Setor de Embaixadas, em Brasília, tornou-se nome de uma escola pública estadual no bairro de Ramos, no Rio de Janeiro, de um centro de referência de cultura negra, em Goiânia, de um coletivo de alunos do curso de Relações Internacionais da USP, e de uma cooperativa cultural, em Aracaju.

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“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada”, Lélia Gonzalez

Rio de Janeiro, 13 de Novembro de 2020.

Carta à tia Lélia – vou te contar…

Primeiramente não tem como não falar em saudades e de agradecer por tanto amor e ensinamentos. Sem contar do orgulho que temos por seu legado e sua visibilidade mundial.

Quando falo(para poucos) que sou sua sobrinha-neta as pessoas piram de alegria. Mas vim aqui lhe contar um pouco como está este mundo terreno. A sensação é que estamos em um filme hollywoodiano. Tantas coisas loucas que contanto parece mentira.

Temos um presidente da República fascista, homofóbico, racista e tantos outros adjetivos que humilham a raça humana. Para ele chegar lá um dos caminhos foi prender o Lula, imagina o resto.

Um preto chegou a Presidência dos Estados Unidos, ao topo da Fórmula 1 e de outros esportes. Temos um casal preto também na novela das nove, nas propagandas da TV e capas de revista.

Chegamos também na universidade, mas para isso foi preciso criar cotas raciais. Mas não se engane, pois o racismo ainda nos assola e nos mata muito todos os dias. Ainda morremos de fome e de tiro e chicotadas. Ainda tem negros que não sabem que são pretos e brancos achando que racismo não existe.

A mulherada segue firme na luta apesar de ainda nos falarem todos os dias que não somos capazes ou que somos subalternas. Pasme: o discurso machista e sexista ainda é muito forte em pleno século 21.

Seu nome é citado em todas as rodas de conversa, entrevistas, seminários, livros ou qualquer outro veículo para contar a trajetória da luta negra. Você é uma referência importantíssima e suas escritas ainda são muito atuais. A comunidade LGBTQI+ vem buscando seu espaço com honraria.

Você acertou quando disse que eu iria salvar vidas pela área de humanas e minha irmã pelas áreas médicas. Formei-me em Serviço Social e busco ser uma assistente social garantidora de direitos e em busca da dignidade humana, acho que estou conseguindo. Isis é bióloga e também se engaja para seguir cuidando de vidas.

Obrigada por nos guiar também no caminho de nossa ancestralidade. Encontramos na umbanda e no candomblé o nosso lugar de pertencimento.

Concluo dizendo que de seu tempo para cá as coisas mudaram pouco. Só parece que mudou, pois modernizou alguns pontos. Hoje, interagimos mais
virtualmente e o mundo é altamente globalizado, tanto que estamos sendo assolados por uma pandemia. Seguimos lutando e sobrevivendo.

Temos também notícias boas: a Seleção Brasileira de futebol foi tetra campeã uma semana depois de você encontrar Olorum. De todo modo sei que não veria o jogo, pois ganhamos nos pênaltis de forma eletrizante. Sei que iria sair da frente da TV, pois ficava bem nervosa… rsrs.

Teria muito mais a contar, mas deixe para quando nos encontrarmos no astral. Sei que só com este trecho de novidades escreveria uma tese. As saudades são muitas e o amor continua em nossos corações.

Obrigada por tudo e siga no seu caminho de luz. Obrigada tia Lelé, tia Lélia, tia Lélia de Almeida Gonzalez!!!!

Gabriela de Almeida Braga das Neves!

“Ele nunca soube que eu tocava violão”
Quando era menino, Reizilan Cartola Neto, 65 anos, encostava o ouvido na porta para ouvir o avô tocar violão. Dentro de um quartinho, com um maço de cigarros e o instrumento, Cartola fazia o que mais gostava. “Passar as férias na casa dele era como ir para outro universo. A gente não tem consciência, até certa idade, do que aquele cidadão representa para o mundo”, relembra.

Reizilan, que é músico e produtor no Rio de Janeiro, lembra-se de Cartola como o avô cuidadoso que o levava pela mão até a quadra da Mangueira. “A música já estava entranhada em mim desde criança. Eu tinha até vergonha de tocar violão na frente dele. O avô não me intimidava, mas a pessoa músico me dava uma timidez terrível. Ele nunca soube que eu tocava violão”, diz.

O neto lembra-se da ocasião em que, a caminho da casa do avô, o encontrou sentado num canto na rua, perto de uma ponte. “Eu perguntei o que ele estava fazendo ali sozinho, ele disse: estou aqui pensando umas coisas, não posso pensar em casa que lá está cheio de gente, não tenho tempo para pensar. A fama de certa forma não fez muito bem a ele”, avalia.

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Reizilan é filho de Creusa Cartola, filha adotiva de Cartola e Deolinda, a primeira companheira do sambista. “Minha mãe cantava com ele, os dois cresceram musicalmente juntos”, relata.

Na carta que escreveu para esta reportagem, o neto menciona uma das passagens mais marcantes que guarda do avô: o dia em que Cartola sentou-se no meio da rua como forma de protesto quando a polícia quis acabar com um ensaio da Mangueira, em 1976, na rua Visconde de Niterói, no Rio de Janeiro.

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Em Iconografia da História, Joel Paviotti relata que, “apesar do Carnaval já aquecer a economia da cidade, o samba era considerado pelas forças policiais como bagunça. Antes da construção do Sambódromo, os ensaios e desfiles ocorriam nas ruas do Rio, e a reunião das escolas eram constantemente interrompidas pela Justiça, Polícia e Ministério Público.”

“Continuam nossas lutas. Podam-se os galhos, colhem-se as frutas”, Cartola

 

Oi vô, como você está?

Desculpe em atrapalhar o seu descanso, sei que agora o senhor tem mais tempo para pensar, só queria contar como estão as coisas por aqui. Lembra aquela música “Amanhã”, que o senhor fez ?, vou colocar ela aqui pra lembrar.

“Amanhã

A tristeza vai transformar-se em alegria

E o sol vai brilhar no céu de um novo dia

Vamos sair pelas ruas,

Pelas ruas da cidade

Peito aberto, cara ao sol da felicidade

E num canto de amor assim

Sempre vão surgir em mim novas fantasias

Sinto vibrando no   ar   e sei que não é vã

A cor da   esperança,

A esperança do amanhã

Do amanhã, do amanhã”.

Essa música é tudo que eu queria nesse momento que estamos vivendo, pois veio um vírus poderoso e nos deixou sem um amanhã, as pessoas estão morrendo, os governantes não estão fazendo quase nada, só querem dinheiro, sim vô, estão trocando vidas por dinheiro. Lembra da outra música que os homens cantavam para as mulheres “mulher não pode com serviço de roça” e elas respondiam “ não há trabalho que mulher não possa”. 

O senhor estava defendendo as mulheres negras de uma forma tão forte, em uma época de muito sofrimento para elas, nos dias de hoje as coisas ficaram piores meu avô, tanto para as mulheres, como para os homens negros, só falta a chibata. Em outros países estão matando os negros por qualquer coisa, aqui no Brasil os negros estão cada vez mais pobres, com a pobreza vem a fome, as doenças e as mortes. Mas também houve uma contra posição, nós estamos com mais consciência.

Já sabemos que isso veio lá de traz, que é estrutural, agora os negros estão ficando mais fortes, derrubaram alguns muros e até um presidente, mas continuam as coisas de racismo, até eu passei por isso, estava sentado de manhazinha numa cafeteria na Tijuca, tomando um café com croissant, esperando um amigo, de repente ouvi um som, parecia ser de macaco, olhei para a calçada, um homem um pouco à frente virou e deu uma olhada pra mim, eu poderia tomar uma atitude, mas preferi não fazê-lo, pensei “ele queria estar no meu lugar, como não conseguiu tomou essa atitude baixa”.

Sabe, meu avô, estamos precisando daquele seu jardim, onde se beijaram dois amantes, onde as rosas preferiram murchar a ter que falar o que o senhor queria, nós sabemos que elas voltaram depois para o senhor se queixar com elas, nem sequer questionou sobre aqueles amantes, estamos precisando da sua luta silenciosa, quando a polícia de uma forma racista não deixou o povo se divertir naquele bar, sua foto deixa claro (imagem acima), o senhor sentou na calçada e não deixou eles se aproximarem do povo. Sinto muito orgulho desse momento, hoje em dia eu ficaria com medo se o senhor fizesse o mesmo movimento pois a policia está matando muitos negros inocentes.

Pra terminar, sei do seu espirito muito evoluído, sei que Deus não vai querer que o senhor volte para cá, peço que receba muito bem meu padrinho Lan e depois me diz como está minha mãe… não sei como vou alcançar essa plenitude, mais sei que algum dia ainda vamos fazer mais músicas juntos.

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