Destruição de museu era “tragédia anunciada”, dizem pesquisadores
Dirigentes e cientistas reclamam de falta de recursos para preservar patrimônio nacional
atualizado
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O incêndio no Museu Nacional revela a falta de cuidado do poder público com o acervo histórico e científico do país e foi classificado como um desastre anunciado por pesquisadores e dirigentes de instituições ouvidos pela reportagem nesse domingo (2/8). “A dúvida não era se algo assim poderia acontecer, mas quando iria acontecer”, disse Walter Neves, antropólogo conhecido como “pai da Luzia”, por ter descrito o material que é considerado o fóssil humano mais antigo das Américas, com 11 mil anos – item do acervo do local.
“O museu estava jogado, apodrecendo, inclusive a parte elétrica”, criticou Neves, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ainda abalado com a notícia. O incêndio, diz, “é uma consequência direta do descaso do poder público.” O pesquisador criticou ainda o destino dos recursos. “Gastaram milhões para construir um museu do futuro (Museu do Amanhã), enquanto um museu centenário, que guarda a história do Brasil, ficou largado às traças.”
Segundo relatos de pesquisadores e funcionários da instituição, os problemas se acumulam há vários anos. Frequentadora do prédio histórico há 21 anos, como estudante, pesquisadora e professora, a antropóloga Adriana Facina disse que desde que lá chegou os funcionários relatam a falta da manutenção que a construção merece. “É um descaso total com a pesquisa, o conhecimento e a cultura. É muito triste ver o prédio em chamas”, disse aos prantos, ao ver as imagens do incêndio.
Entre as dezenas de funcionários que acompanharam o incêndio, o clima era de desespero. “Minha vida toda estava aí dentro”, disse o bibliotecário Edson Vargas, de 61 anos, que trabalha há 43 anos na instituição.
Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ligado ao Ministério da Cultura, Kátia Bogéa resumiu em uma frase o incêndio que consumiu o Museu Nacional: “Uma morte anunciada”. Sem conseguir esconder a tristeza, sentenciou: “Patrimônio não tem como reconstruir. Acabou, acabou.”
Ela disse que se o Museu Nacional tivesse feito a obra de restauração pleiteada, que foi aprovada há três meses pelo BNDES, isso não teria acontecido. “Ia ter todo um sistema de prevenção e combate a incêndio, diminuiria em muito a destruição”, afirmou.
“Não tem investimento nessas áreas”, reclamou. “É o acervo de memória do país inteiro, mas não tem recursos.” O Iphan, segundo ela, tem discutido com os grupamentos do Corpo de Bombeiros de cada estado a aprovação de um protocolo para orientar a atuação nos prédios históricos e acervos. “A gente perdeu nossa memória, nossa história”, continuou a presidente. “A gente não vai ter mais Luzia. Luzia morreu no incêndio.”
Segundo o zoólogo e paleontólogo Hussam Zaher, que foi aluno do museu nos anos 1980, houve um incêndio na ala de herpetologia que só não se espalhou para a instituição inteira porque era um ambiente fechado. “Foi uma tragédia anunciada”, lamentou ele, que também viu de perto o incêndio que destruiu quase toda a coleção de cobras do Instituto Butantã, em São Paulo.
“É a ciência brasileira indo embora”, resumiu o físico e historiador da ciência Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência. “A possibilidade de acontecer desastres como esse aumenta a cada dia. O patrimônio brasileiro está sendo destruído todos os dias pelo descaso.”
Para o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o físico Luiz Davidovich, professor da UFRJ, foi um “golpe duro na ciência nacional”. Segundo ele, é um desastre irrecuperável, com repercussão internacional. “É uma consequência do descaso das autoridades com a ciência, que afeta agora não apenas o futuro, mas a memória do país.”
Ele lembrou que o museu vinha lutando há tempos para se recuperar dos cortes orçamentários. “É mais um capítulo da triste história do desmonte da ciência brasileira.”
Emergência
No Rio, outros museus com acervos importantes correm risco. O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) tem adotado providências para reformar ou restaurar prédios antigos que abrigam coleções históricas. Um exemplo é o Museu Nacional de Belas Artes, que recebeu impermeabilização em sua cobertura e torre de arrefecimento. O Museu da República teve igualmente obras emergenciais realizadas, sendo recuperada a varanda e restaurada a claraboia.
O Palácio Rio Negro, em Petrópolis, também passou por escoramento emergencial da varanda. Já o Museu Imperial, na mesma cidade da região serrana fluminense, passou por obras emergenciais no telhado da biblioteca.