Desempregadas pela Covid, as quatro irmãs Marias usam reciclagem para sobreviver
Após demissões, irmãs acharam na reciclagem o “ganha pão” diário; elas sonham com cooperativa na comunidade onde moram, em Goiânia
atualizado
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Goiânia – Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego foi recorde no trimestre encerrado em março, com taxa de desocupação de 14,7% e um total de 14,8 milhões de pessoas sem trabalho. Personificação destes números são as irmãs Maria das Dores, de 57 anos, Maria Selma, 50, Maria Jusclena, 48, e Maria Domingas, 43, moradoras da capital goiana há cerca de 30 anos.
Com a ajuda e incentivo da sobrinha Paloma, as quatro Marias encontraram na reciclagem uma alternativa para sobreviver em meio à insegurança causada pela pandemia de Covid-19.
As cinco trabalhavam com carteira assinada, mas foram demitidas após a chegada do coronavírus ao Brasil, no início de 2020. Maria Selma era cozinheira; Das Dores e Domingas trabalhavam em limpeza/serviços gerais; e Jusclena era lavadeira de panelas (a sobrinha Paloma era saladeira).
Com a necessidade batendo à porta e um total de 22 pessoas morando em três barracos lado a lado, elas, que são o sustento e força motriz do local, precisaram sair às ruas em busca de dinheiro para o básico.
“Antigamente, todo mundo trabalhava, mas, com a pandemia, ficamos desempregadas. Nós somos cinco mulheres, todas mãe de família, moramos de aluguel, todo mundo tem contas e cadê o dinheiro? Aí tivemos que recorrer a reciclagem. ‘Nóis’ pega o carrinho de supermercado e vai para a rua. Às vezes, as crianças pedem algumas coisas, querem ir no supermercado, aí nós temos que lutar e conseguir né?”, diz Paloma Rodrigues de França, de 21 anos, filha de Maria Selma.
As irmãs moram com as famílias na Vila Lobó, uma ocupação antiga encravada na região do Jardim Goiás, um dos bairros de classe alta de Goiânia. Em meio a prédios de luxo, elas lutam dia e noite para driblarem as dificuldades impostas pela falta de renda.
Cooperativa de reciclagem
O analfabetismo não impediu que as Marias absorvessem as noções básicas das empresas pelas quais passaram e se organizassem para o trabalho com reciclagem. Entre as regras estabelecidas por elas, estão turnos de trabalho, limpeza, cuidados com os filhos, separação de materiais e vendas.
Elas saem em duplas ou trios já ao nascer do dia, por volta das 6h, e retornam às 11h para uma refeição, enquanto as outras cuidam das crianças. Mesmo com o sol intenso do cerrado goiano, elas voltam às ruas no início da tarde, sem horário certo para chegaram em casa. “Às vezes, a gente chega às 19h, 20h, depende do dia. Aí temos que limpar tudo, jogar água sanitária, tomar um banho. Vez ou outra o cansaço é tanto que deixamos de comer para deitar”, conta Paloma.
“No começo, a gente comprava engradado de água que vendia no feirão [feira de carro que ocorre próximo ao bairro]. Um dia, o rapaz lá falou: ‘Por que vocês não vendem as garrafas?’ Aí nós começamos a vender e vimos que era melhor, porque não era todo dia que a gente tinha dinheiro para comprar as garrafas d’água. Com isso, estamos aqui na reciclagem até hoje”, relata a sobrinha, a única do grupo que concluiu o ensino médio.
Segundo Maria Jusclena, até hoje ninguém nunca pegou coronavírus, em razão da proteção usada por elas. “A gente se protege e usa duas máscaras, calça, luva, tênis ou bota. Levamos água sanitária, álcool para passar nas coisas e, quando chegamos em casa, nós limpamos tudo. Tem uma mulher dos prédios aqui perto que dá máscara e álcool pra gente toda semana. Nós ganhamos muita coisa e achamos muita coisa também. Trabalhamos só aqui nesse bairro mesmo, nunca saímos daqui”, disse ela.
Ampliação
Agora, as irmãs que fazem do quintal da casa o espaço de armazenamento dos materiais reciclados, sonham com a montagem de uma cooperativa de mulheres na comunidade. De acordo com elas, as mulheres se entendem e sabem se colocar no lugar da outra. “Aqui na Vila Lobó tem muita mulher desempregada que tem filho. Tem muita criança, então a gente quer fazer a cooperativa para colocar essas pessoas para trabalhar também. A gente sabe a dificuldade que é trabalhar quando se tem filhos, quando não consegue creche. Os homens conseguem emprego mais fácil, tem muita obra, mas mulher? Até para lavar pratos tem que ter algum estudo”, afirma Maria Selma, que na escala de trabalho, passa momentos com os netos e sobrinhos.
Com sorriso no rosto e falas de agradecimento, elas afirmam que conseguem encher o carrinho rápido e, por isso, precisam fazer várias viagens, para conseguirem transportar todo o material que recolhem, mas seguem acreditando no potencial do que realizam. “A gente precisa é de um espaço, pode ser um galpão só, para colocar tudo isso, tem dia que fica só o espaço da gente passar, esse quintal fica muito cheio de coisas. A gente limpa e separa tudo, lata com lata, plásticos brancos e coloridos, fios, metais. A dona cobra um aluguel barato, a gente não quer atrapalhar os vizinhos também, batemos veneno de vez em quando, mas sabemos que pode juntar algum bicho, dar mal cheiro”, ressalta Jusclena.
Conforme explicação das irmãs, todo o material recolhido é vendido para um rapaz de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital, que se dispõe a buscar os reciclados sem nenhuma cobrança. Elas afirmam que já ficaram conhecidas na região e algumas pessoas param na porta da casa para deixarem doações e produtos a serem reaproveitados.
Trabalho relevante
Ao ficarem sabendo da iniciativa das irmãs, os advogados Matheus Tavares e Patrícia Centeno se encantaram com a história de superação das Marias. Interessados em ajudar o grupo e a concretizar o sonho da cooperativa, a dupla ofereceu assessoria jurídica gratuita para a criação da associação.
“Ao tomarmos conhecimento de todo o trabalho realizado pelas Marias, especialmente, o empenho que elas impõem a esse trabalho diariamente, nos sensibilizamos e decidimos, dentro do que nós é possível profissionalmente, auxiliar gratuitamente essas grandes mulheres. Elas devem servir de exemplo para todos, pois pessoas com esse nível de dedicação merecem ser vistas pela sociedade”, diz o jurista.
Futuro melhor
As quatro irmãs nasceram no município de Oeiras, no Piauí, e desembarcaram em Goiânia há cerca de 30 anos, em busca de melhores condições de trabalho, já que na cidade natal, trabalhavam na roça. Inicialmente, moraram com uma tia, até buscarem a independência. “Quando a gente veio pra cá, nosso primeiro aluguel foi a patroa da Selma que pagou, a gente trabalhava de doméstica. Depois as coisas foram caminhando e, mesmo que sem dinheiro para comprar um pedaço de carne, a gente sempre mandava um dinheirinho para a mãe lá no Piauí”, contou Maria das Dores.
Ainda segundo Maria das Dores, mesmo tendo que lidar com os percalços da vida, os dias têm sido melhores. “Depois que começamos com a reciclagem nós nunca chegamos no ponto de passar necessidade. A gente viu na reciclagem a possibilidade de ganhar o pão de cada dia e nós temos o que comer. Eu acho que Deus é tão bom com ‘nóis’, porque mesmo na dificuldade a gente sempre se ajudou, ajudou minha mãe e ajuda outras pessoas também”.
A força e a união das irmãs, que formam uma rede de apoio familiar, é o que dá o tom do trabalho realizado por elas. Sempre muito próximas, respeitando os limites de cada uma e, principalmente, a atividade que escolheram para dar continuidade na vida, elas vislumbram um futuro melhor com a cooperativa fortalecida e o emprego de outras mulheres.